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Este estudo assume os pressupostos teóricos da abordagem sócio-histórica em Psicologia, especialmente as concepções de Vygotsky, para quem o psiquismo humano é socialmente constituído, à medida que o ser humano transcende sua natureza biológica e se constitui como ser cultural e histórico. Rego (2003) discute as principais idéias de Vygotsky, presentes em toda a obra do autor. A primeira delas refere-se à relação entre o indivíduo e a sociedade. Para esta tese, Vygotsky afirma que as características tipicamente humanas não estão presentes desde o nascimento, nem resultam de reações ao meio externo. Elas são o resultado da interação dialética entre o homem e o seu meio sócio-cultural. Assim, ao mesmo tempo que o sujeito transforma o seu meio para atender a suas necessidades básicas, transforma-se a si mesmo. Rego analisa, neste princípio, a integração dos aspectos biológicos e sociais do indivíduo, mencionados por Luria (1992, p. 60):

[...] as funções psicológicas superiores do ser humano surgem da interação dos fatores biológicos, que são parte da constituição física do Homo sapiens, com os fatores culturais, que evoluíram através das dezenas de milhares de anos de história humana [...].

A segunda tese decorre da anterior e refere-se à origem cultural das funções psíquicas. Para Vygotsky, as funções psicológicas especificamente humanas se

originam nas relações do indivíduo e seu contexto cultural e social. Não podemos pensar o desenvolvimento psicológico como um processo abstrato, descontextualizado, universal; o funcionamento psicológico, especificamente no que se refere às funções psicológicas superiores, tipicamente humanas, está baseado nos modos culturalmente construídos de ordenar o real.

A terceira tese diz respeito à base biológica do funcionamento do psicológico: o cérebro, visto como principal órgão da atividade mental. O cérebro não é um sistema de funções fixas e imutáveis, mas um sistema aberto, com plasticidade, cuja estrutura e modos de funcionamento são modificados ao longo da história da espécie e do desenvolvimento individual. A quarta idéia central refere-se à mediação presente em toda atividade humana. A relação do homem com o mundo não é uma relação direta, mas uma relação mediada, sendo os sistemas simbólicos os elementos intermediários entre o sujeito e o mundo. Vygotsky confere à linguagem um papel de destaque, considerando-a um signo mediador, pois carrega em si os conceitos generalizados e elaborados pela cultura humana. O quinto postulado de Vygotsky aponta para a conservação das características básicas dos processos psicológicos, exclusivamente humanos. Conforme mostra Rego (2003, p. 43):

Este princípio está baseado na idéia de que os processos psicológicos complexos se diferenciam dos mecanismos elementares e não podem, portanto, ser reduzidos à cadeia de reflexos. Estes modos de funcionamento psicológicos mais sofisticados, que se desenvolvem num processo histórico, podem ser explicados e descritos. Assim ao abordar a consciência humana como produto da história social, aponta na direção da necessidade do estudo das mudanças que ocorrem no desenvolvimento mental a partir do contexto social.

3.7.1 Desenvolvimento e aprendizagem

Vygotsky considera fundamental o papel da interação social no desenvolvimento do ser humano. A concepção de desenvolvimento humano, destacada no manuscrito de 1929, é diferenciada pelo caráter histórico a ela atribuído. Silva e Davis (2004) concordam com Vygotsky:

A interação com outros indivíduos tem, para Vygotsky, um outro caráter que não cumpre apenas a função de desenvolver a tolerância

ou a solidariedade. Ela é uma necessidade ontológica, ou seja, é por meio da relação do homem com outros, com a natureza e com a história dessas relações, que este se humaniza (SILVA; DAVIS, 2004, p. 639)

Davis e Oliveira (1994), ao explicarem a construção social do sujeito a partir da perspectiva sócio-histórica, defendem que, por meio do convívio social, a criança aprende a planejar, direcionar e avaliar a sua ação. As atividades práticas que realiza criam as condições necessárias para o aparecimento da consciência, entendida como a capacidade de distinguir entre as propriedades objetivas e estáveis da realidade e aquilo que é vivido subjetivamente. Na ótica de Baquero (1998:26) “... o desenvolvimento é concebido como um processo culturalmente organizado”. O processo de desenvolvimento é a apropriação ativa do conhecimento acessível na sociedade em que a criança vive. O sujeito forma-se pela apropriação gradual dos instrumentos culturais e pela internalização progressiva de operações psicológicas na vida social. Este processo não é uma simples acumulação, mas uma reorganização da atividade psicológica do sujeito, que se dá como produto de sua participação em atividades e situações sociais.

O desenvolvimento do ser humano dá-se a partir das interações com o meio físico e social em que vive, considerando que as formas psicológicas mais sofisticadas emergem da vida social. O desenvolvimento do psiquismo humano é sempre mediado pelo outro, pelo grupo cultural, que atribui significados à realidade. Para Vygotsky, este não é um processo solitário. No desenvolvimento da criança, toda função psicológica aparece duas vezes: primeiro no plano social (regulação interpsicológica) e, depois, na esfera do individual (regulação intrapsicológica). O sujeito apropria-se de um conhecimento, de uma ação, e partilha essa experiência com outros; desta ação partilhada resulta um contexto de significação no qual são negociados significados. O que o sujeito apreende não é o significado, mas a significação, a qual é dada pelo contexto. Esta significação será negociada no espaço interpsicológico e internalizada de acordo com as vivências do indivíduo, passando a fazer parte dele (BARTALOTTI, 2004).

Conforme aponta Rego (2003), os membros imaturos da espécie humana vão se apropriando dos modos de funcionamento psicológico, do comportamento, da cultura, do patrimônio da história da humanidade. Quando estes processos são internalizados, começam a surgir sem a intermediação do outro. Vygotsky chamou

de internalização a reconstrução interna de uma operação externa. Ao internalizar as experiências fornecidas pela cultura, a criança reconstrói individualmente os modos de ação realizados externamente e aprende a organizar seus próprios processos mentais. Emerge, então, a percepção da criança sobre a realidade, por meio de recursos internalizados (imagens, representações mentais, conceitos). Bartalotti (2004, p. 46) analisa como se dá este processo na criança com deficiência mental e afirma:

Ela vive este mesmo processo! No entanto, sua peculiaridade envolve dificuldades específicas na compreensão, na generalização, nos processos de atenção e memória. Estes fatores não podem ser desconsiderados, nem analisados de maneira descontextualizada (BARTALOTTI, 2004, p. 46).

A autora defende que não basta acreditar que a repetição garantirá partilhar os significados de maneira adequada: isso não ocorre. O que acontece é uma mecanização de uma resposta que, dificilmente, se transformará em um instrumento de mediação interna (de auto-regulação da conduta). Na perspectiva de Vygotsky, o desenvolvimento de todas as crianças deve caminhar em direção à independência e à autodeterminação. Para tanto, elas precisam desenvolver instrumentos psicológicos que lhes permitam maior flexibilidade frente às demandas do meio. Estes seriam, para Vygotsky, os processos psicológicos superiores. O desenvolvimento das funções psicológicas superiores é, em um primeiro plano, uma construção coletiva; posteriormente, transforma-se em funções psíquicas da personalidade. Nesta perspectiva, Vygotsky (1998) explica a constituição dos processos psicológicos por duas linhas: a natural e a cultural. A linha natural refere- se à constituição dos processos elementares - regulados por mecanismos biológicos, envolvendo formas elementares de memorização, a atividade sensório- perceptiva e a motivação instintiva - determinados pela estimulação ambiental. A linha cultural refere-se aos processos sociais, que focalizam os processos de apropriação da cultura.

Na mesma direção, Sirgado (2000, p. 54) vale-se de Vygotsky para explicar como ocorre a constituição das funções psicológicas superiores:

Segundo Vygotsky, o desenvolvimento cultural passa por três estágios: desenvolvimento em si, para os outros, e para si mesmo Neste contexto, a expressão “em si” quer dizer ‘aquilo cuja existência

não depende da ação do homem’; a expressão “para si” é o “em si” como objeto da consciência do homem; e, o “para os outros”, é o equivalente do “para si”, mas com a consciência do outro. Isto significa, que “nós nos tornamos nós mesmos através dos outros.

Com estas formulações, Vygotsky sugere que o desenvolvimento cultural passa, necessariamente, pelo “outro”. Esse é o motivo pelo qual seu fator dinâmico não reside na natureza biológica do homem e, sim, em algo externo a ela: o mediador entre o ser humano e o “outro” é, assim, a significação que este outro atribui às ações naturais do primeiro (SIRGADO, 2000). Para Vygotsky, os processos psicológicos superiores são subdivididos em dois:

a) os rudimentares, adquiridos na vida social em geral, mediados por signos, produzidos pela internalização da atividade social;

b) os avançados, caracterizados por um grau maior de independência do contexto, são voluntariamente regulados e conscientes. Sua aquisição ocorre em processos específicos de socialização como, por exemplo, nos processos de escolarização.

Sirgado (2000) endossa esta idéia, afirmando que as funções psicológicas superiores são uma transposição para o plano pessoal das funções inerentes às relações sociais em que o ser humano está envolvido. Pontua que essas últimas são determinadas pelo modo de produção que prevalece no social, em um dado momento histórico.

3.7.2 O desenvolvimento dos conceitos científicos na infância

Vygotsky, quando se preocupou com a criação de métodos eficientes para a instrução das crianças em idade escolar, considerou fundamental entender como se dá o desenvolvimento dos conceitos científicos. O autor levantou as seguintes questões: “O que acontece na mente da criança com os conceitos científicos que lhe são ensinados na escola?” Qual é a relação entre a assimilação da informação e o desenvolvimento interno de um conceito científico na consciência da criança? (VYGOTSKY, 1998, p. 103).

A psicologia infantil apresenta duas respostas para essas questões. Uma escola de pensamento defende que os conhecimentos científicos não têm história interna, não passam por qualquer processo de desenvolvimento: são absorvidos já prontos, por meio de um processo de compreensão e assimilação. A outra escola não nega a existência de um processo de desenvolvimento na mente da criança em idade escolar, mas também não difere, em nenhum aspecto, do desenvolvimento dos conceitos formados pela criança em sua experiência cotidiana (VYGOTSKY, 1998). Mais adiante, o autor assinala o que já se sabe a respeito deste processo:

Como sabemos, a partir das investigações sobre o processo de formação de conceitos, um conceito é mais do que a soma de certas conexões associativas formadas pela memória, é mais do que um simples hábito mental; é um ato real e complexo de pensamento que não pode ser ensinado por meio de treinamento, só podendo ser realizado quando o próprio desenvolvimento mental da criança já tiver atingido o nível necessário. Em qualquer idade, um conceito expresso por uma palavra representa um ato de generalização (VYGOTSKY, 1998, p. 104).

Neste sentido, é importante destacarmos que um conceito não vai ser aprendido tal qual é ensinado, pois não existe um processo linear entre ensinar e aprender. A palavra representa uma função importante neste processo, pois um conceito expresso por uma palavra representa um ato de generalização. Ademais, os significados das palavras evoluem:

Quando uma palavra nova é aprendida pela criança, o seu desenvolvimento mal começou: a palavra é primeiramente uma generalização do tipo mais primitivo; à medida que o intelecto da criança se desenvolve, é substituído por generalizações de um tipo cada vez mais elevado – processo este que acaba por levar à formação dos verdadeiros conceitos. O desenvolvimento dos conceitos, ou dos significados das palavras, pressupõe o desenvolvimento de muitas funções intelectuais: atenção deliberada, memória lógica, abstração, capacidade para comparar e diferenciar. Esses processos psicológicos complexos não podem ser dominados apenas através da aprendizagem inicial (VYGOTSKY, 1998, p. 104).

Vygotsky diferencia os conceitos cotidianos dos conceitos científicos. Os primeiros são desenvolvidos no decorrer das atividades práticas da criança, de suas interações sociais imediatas. Já os conceitos científicos são adquiridos por meio do ensino e fazem parte de um sistema organizado de conhecimentos. Para o autor, o desenvolvimento dos conceitos cotidianos e dos conceitos científicos relaciona-se e

influencia-se constantemente.

A inter-relação entre os conceitos científicos e os conceitos espontâneos é um caso especial de um tema mais amplo: a relação entre o aprendizado escolar e o desenvolvimento mental da criança (VYGOTSKY, 1998, p.117).

O estudo dos conceitos científicos desempenha um papel importante na educação. Conforme aponta Vygotsky, é no início da idade escolar que as funções intelectuais superiores, com suas características tais como a consciência reflexiva e o controle deliberado, adquirem um papel importante no processo de desenvolvimento. Neste período, a atenção passa a ser voluntária e fica cada vez mais atrelada ao pensamento da criança; a memória mecânica transforma-se em memória lógica, orientada agora pelo significado.

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