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Considerações sobre a Análise do Discurso

5 ENTRE MATERIALIZAÇÃO DOS DISCURSOS E IDEOLOGIAS NO LIVRO DIDÁTICO

5.1 Considerações sobre a Análise do Discurso

A Análise do Discurso (AD) em sua vertente francesa teve início durante a década de 1960. Autores apontam que as pesquisas postuladas por Michel Pêcheux deram origem aos estudos em AD; entretanto, Maingueneau (2006) defende que ocorreram diversos atos de fundação desta vertente como as correntes de etnografia da comunicação, as correntes pragmáticas, a linguística textual e as problemáticas de Foucault, além da sistematização de Pêcheux. Para os objetivos desse trabalho, o aprofundamento dessa discussão não é necessário, razão pela qual vamos direto à apresentação dos postulados básicos da AD.

A palavra discurso possui sentidos e significados variados na perspectiva de diferentes pensadores, como também no uso cotidiano da palavra. Compreendemos, a partir de Maingueneau (2005), que por discurso entende-se a linguagem e seu funcionamento, ou, a prática discursiva materializada em textos (verbais e não verbais) e ações. Pelo discurso, verificamos a relação entre sujeito e ideologia, mediada pela linguagem, e a AD

partindo da idéia de que a materialidade específica da ideologia é o discurso e a materialidade específica do discurso é a língua, trabalha a relação língua-discurso- ideologia. Essa relação se complementa com o fato de que, como diz M. Pêcheux (1975), não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido. (ORLANDI, 1999, p.17)

Aprofundando os modos pelos quais vai lidar com a língua, Maingueneau (1995, p.17) propõe que a AD

visa apreender a estrutura dos enunciados através da atividade social que os carrega. Ela relaciona as palavras a lugares. Através da multiplicidade de situações de comunicação, o discurso eclode numa multiplicidade de gêneros, cujas condições de possibilidade, rituais e efeitos se devem analisar.

Ao abordar a palavra lugares, Maingueneau se refere ao lugar no tempo histórico, ao lugar social, à posição no discurso, ao lugar discursivo em que o enunciado acontece..., ou seja, aos lugares de maneira ampla. O autor, então, chama a atenção para a estreita relação existente entre texto (situações de comunicação) e contexto (lugares). O texto abrange a comunicação verbal, escrita e oral, e a comunicação não verbal, imagens e gestos, e o contexto é a situação na qual o discurso está inserido, como aparece, onde aparece, em que período histórico, sob quais relações etc. Dessa forma a noção de lugar discursivo é essencial em nossas análises, na medida em que buscamos observar os deslocamentos da infância e da

criança ao longo dos LDs e na materialização de seus direitos.

A AD se constitui como área de entremeio, a saber: Marxismo, Linguística e Psicanálise. Da releitura de Marx feita por Louis Althusser, tem-se o conceito de ideologia e de Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE). Com a psicanálise de Jacques Lacan, tem-se o conceito de inconsciente (MAINGUENEAU, 2002; 2006). Embora Althusser não tenha se dedicado especialmente à Análise do Discurso, de acordo com Maingueneau (2002, p.4),

sua doutrina implicitou uma disciplina que buscou estudar o caminho em que a ideologia é revelada através da linguagem. A linguagem foi considerada enquanto relativamente autônoma à 'infraestrutura' e deveria ser estudada pelo significado de sua materialidade e não um simples veículo de transmissão de ideias. Tradução nossa97.

Nesta direção, identificamos que os fenômenos discursivos presentes nos LDs carregam valores ideológicos, não sendo possível, em Análise do Discurso, serem considerados neutros98, ou, “simples veículo de transmissão de ideias”. Os livros didáticos

corpus de nossa pesquisa, por exemplo, estão localizados socialmente no ambiente escolar e se destinam a um grupo específico, crianças, que desempenham um papel social também específico, que pode levar tanto à reprodução quanto à mudança das estruturas. Da mesma forma, os efeitos do discurso nas subjetividades humanas não demonstra necessariamente uma identificação direta com a intenção do autor, mas são o resultado de uma série de fatores interligados relacionados ao lugar e tempo histórico do sujeito interlocutor. Por essa razão foi necessário que abordássemos a construção da imagem do que é criança e do que é infância, tanto quanto sobre livro didático, por exemplo, pois é possível que rastros, vestígios de construções históricas antigas, anteriores, ainda estejam presentes nas concepções contemporâneas.

Investigar a relação entre ideologia, inconsciente e a historicidade nos discursos é a base da AD, na qual o momento presente é o resultado de transformações históricas sociais. Dessa forma, os discursos vão assumindo novas roupagens, abrindo ou fechando sentidos, ao longo do tempo, de acordo com as mudanças no pensamento e na ação social de cada época, como a concepção de infância, já exemplificada antes, que passou por alterações históricas e ideológicas em diferentes períodos a partir de processos de ressignificação do lugar da criança 97 Do original: “Although Althusser did not specifically work in the field of discourse analysis, his doctrine implied a discipline that would aim to study the way in which ideology is revealed through language (see Althusser, < Lire le Capital>, 1968). Language was considered to be relatively autonomous from ‘infrastructure’ and should therefore be studied by means of its ‘materiality’ (matérialité) and not as a simple vehicle for conveying ideas”.

98 Esta questão foi, também, tratada na seção anterior a partir de Freire (1997) o qual destaca que não há educação neutra; até a pretensão da neutralidade demonstra um posicionamento político frente ao ato educativo.

na sociedade até ser identificada enquanto sujeito de direitos, como já observado nesta pesquisa. Portanto, devemos considerar que “um discurso nunca começa nele mesmo. Já há sentidos que sustentam os sentidos que se constituem nele” (ORLANDI, 2007, p.304), num refazer constante de significados. Por essa razão, problemas como o da invisibilidade da criança atravessam diferentes momentos históricos, ainda que, por vezes, provocando efeitos de sentido diversos.

Pela AD, portanto, buscamos identificar o efeito de sentido do discurso que não é traduzido apenas em palavras, mas produzido por meio de gestos, imagens e palavras, e também, por um não dito, um silenciamento implícito na escolha do que é explícito (MAINGUENEAU, 2005; ORLANDI, 1995).

O discurso opera a partir de formações discursivas (FDs) que estão localizadas social e historicamente, mas nem por isso são fixas. Elas são atravessadas por outras FDs que conferem um caráter heterogêneo e uma infinitude de possibilidades de atribuições de sentidos a depender do sujeito enunciador, ou coenunciador, e sua localização histórico-social (GREGOLIM, 2007). Daí que as formações discursivas não sustentam um sentido único; são carregadas de sentidos atravessados por formações ideológicas (FIs) sendo esses os “sentidos que sustentam sentidos”, conforme mencionado por Orlandi (2007). Segundo Gregolim (2007, p. 157), apoiada em Pêcheux, a FD é “aquilo que determina o que pode e deve ser dito, em uma determinada formação ideológica, a partir de uma posição dada em uma conjuntura determinada pelo estado da luta de classes” fundada pela contradição. As formações discursivas é que conferem sentido às formações ideológicas e são interpretadas por uma memória discursiva.

Em termos práticos, para nós, temos que não há um discurso único produzido no e pelos livros didáticos a favor de uma ideologia única, assim como não há uma interpretação única. Os LDs, neste sentido, apresentam uma diversidade de formações discursivas ancoradas em formações ideológicas oriundas de diferentes enunciadores (autor, ilustrador, editor dos livros didáticos e enunciadores do PNLD), e interpretada por diferentes interlocutores (crianças e adultos de variados lugares sociais). Uma vez que os sentidos não são deterministas, a função do analista será de interpretação dos sentidos, tendo a clareza de seu lugar histórico-social, sendo as análises, dessa forma, resultado do próprio processo de inserção do analista no mundo.

Adequada à abordagem de fenômenos discursivos encontrados e encontráveis em livros didáticos, a AD, enquanto vertente de análise, congrega uma diversidade de elementos para a interpretação de um discurso, pois o discurso não vai operar sobre a realidade de fato,

mas sim, sobre outros discursos. Assim, encontramos na obra de Maingueneau alguns desses elementos que se aplicam com propriedade à análise de livros didáticos ao considerar que o conteúdo nunca está dissociado da forma, de seu significado, da história, nem da ideologia do sujeito discursivo.

Entre outros elementos conceituais, em uma primeira aproximação com o corpus da pesquisa, três fenômenos se mostram salientes: a imagem de si, construída pelo enunciador no discurso (ethos); o solo no qual esses discursos serão/são encenados (cenografia); e a relação que os discursos mantém com a memória social (interdiscurso). Nesta direção, as noções de ethos, cenografia e interdiscurso, discutidas por Maingueneau e apresentadas a seguir, nos auxiliam na identificação de marcas discursivas que corporificam aspectos ideológicos relacionados tanto à manutenção de estereótipos e preconceitos, quanto na identificação de avanços em direção à uma educação em direitos humanos e ao reconhecimento da criança enquanto sujeito de direitos.

As indagações sobre como os LDs apresentam os temas de análise, em que lugar a criança é colocada, qual é a concepção de direitos defendida, entre tantas outras questões, encontram na vertente da Análise do Discurso francesa espaço para serem identificadas, e por esta razão, é a linha teórico-metodológica adotada.