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Entre as tendências contemporâneas do pensamento museológico destacam-se os estudos relacionados ao campo do patrimônio, que por sua natureza interdisciplinar atraem um grupo considerável de pesquisadores. Chagas e Nascimento Junior (2007), ambos estudiosos do campo da Museologia, acreditam que as relações entre museus e patrimônio não nasceram e não se esgotaram no século XX. Assim, na atualidade as categorias museu e patrimônio podem ser consideradas complementares e, consequentemente, uma não se reduz obrigatoriamente a outra, ou seja, os museus não são apêndices do campo patrimonial. Para os autores é possível pensar que os museus “estão inseridos no campo patrimonial, mas, ainda assim, é forçoso reconhecer que têm contribuído frequentemente, de dentro para fora e de fora para dentro, para forçar as portas e dilatar o domínio patrimonial” (CHAGAS; NASCIMENTO JUNIOR, 2007, p.40). Já com relação ao patrimônio cultural é possível afirmar que a nossa visão sobre o mesmo foi ampliada graças às reflexões de Hugues de Varine-Boham que o categorizou em três grandes grupos: o primeiro compreende os elementos e recursos naturais; o segundo remete aos elementos não tangíveis tais como o conhecimento, as técnicas, o saber fazer; e o terceiro reúne todas as coisas, objetos, artefatos e construções. (LEMOS, 1985, p. 8-10). Como observamos acima, a diversidade de objetos de estudo do campo do patrimônio cultural nos dá uma pista da diversidade dos estudos que estão sendo realizados. Contudo, para tornar o tema ainda mais complexo precisamos considerar outro elemento: a própria museologia.

Tereza Scheiner (2005) identifica três grupos da teorização em Museologia: um que considera a teoria museológica como possível a partir de uma teoria do patrimônio, consequentemente, para existir a Museologia dependeria de uma outra área de pensamento; para o segundo grupo a teoria seria o resultado da prática museal, portanto, onde não há práxis não há teoria; e para o terceiro grupo a Museologia seria uma filosofia ou ciência. Nesse caso, a teoria seria a própria base da estrutura disciplinar. Scheiner é uma das pesquisadoras que mais se aproxima dos conceitos de patrimônio e patrimonialização, focando na diferenciação entre estes e os conceitos de museu e musealização. O ponto central para a compreensão do pensamento de Scheiner é o entendimento de que os conceitos de Museu e Patrimônio são apreendidos como constantemente em processo, tornando instáveis todos os demais conceitos relacionados. E, por estarem sempre em movimento, constituem-se na interface entre os demais saberes. O Museu seria o termo fundador do campo e este, em função de mudanças ocorridas na ciência e filosofia do mundo ocidental desde o final do século

XIX, apresenta uma mudança de sentido. Antes orientado para o objeto passa a ser orientado para a sociedade e entendido como um fenômeno. Para a autora:

Torna-se, então, possível admitir o Museu como fenômeno, independente de um local e de um tempo específicos, possível de existir simultaneamente em muitos lugares, sob as mais diversas formas e manifestações. Esta é a grande contribuição da pesquisa teórica em Museologia, [...] que permitirá o desenvolvimento da Museologia e a sua estruturação como campo disciplinar, dentro da ética da pluralidade (SCHEINER, 1997, p.94).

Apesar da importância da referência história não é possível deixar de observar que a categoria patrimônio, entendido como o resultado de valoração de um determinado recorte do Real, trouxe uma ampliação para o campo da Museologia facilitando a relação com outras categorias com as quais está intrinsecamente relacionado, tais como memória, sociedade, identidade, ética e representação. Entender as relações entre o Real e sociedade significa investigar os elementos históricos e antropológicos que articulam os diferentes recortes do Real, a relação entre o todo e a parte, assim como o estudo das dimensões material e institucional. Os conceitos de Real e identidade articulam-se a partir do momento em que a identidade é a apropriação do Real pelo pensamento, deixando a percepção sensorial em segundo plano. O que gera conhecimento gera verdade através do conhecimento das coisas em sua verdade. O nome das coisas define a identidade, havendo uma relação entre Ideia - Nome - Significado. Dizer o nome das coisas é uma forma de instituir o Real. Uma característica dos conceitos de identidade e identidade cultural, conceitos tão presentes no campo da Museologia e do Patrimônio, é a subjetividade. Ao contrário do senso comum, autores como Scheiner e Soares, argumentam que o conceito de identidade não diz respeito à semelhança, mas se refere à subjetividade humana. Nesse sentido, Scheiner e Soares, citando Heidegger, afirmam que;

Construída pela ‘consciência de si’, a identidade diz respeito a um ‘pertencer’ que quer dizer estar atrelado à unidade de um sistema. O ‘pertencer junto’ a algo (Zusammengehören), desta forma, significa um ‘pertencer’ que está subordinado a este ‘junto’, e não o contrário, de modo que todo pertencimento só pode se dar na relação com o mesmo (HEIDEGGER apud SOARES & SCHEINNER, 2010, p. 13).

Partindo do pressuposto de que o Real jamais poderá ser apreendido em sua totalidade, e que só a partir de um dado recorte é possível analisá-lo, chega-se a conclusão de que as coisas só existem na relação com as outras coisas. Nesta perspectiva a ética não poderia ser imposta, pois reside no entendimento de que tudo

que existe é o que é. No campo da Museologia e do Patrimônio tal perspectiva aponta para o reconhecimento e o respeito ao patrimônio mundial como meio de valorização das diferenças culturais entre os povos, deslocando do centro do debate as noções de patrimônio como herança material e de cultura superior ou evoluída. Como consequência os agentes criadores e detentores de um dado patrimônio decidem os rumos que querem dar aos seus patrimônios, colocando em segundo plano os agentes estatais.

Na concepção de Scheiner, a Museologia já pode ser entendida como o campo disciplinar que trata das relações entre o fenômeno museu e as suas diferentes aplicações à realidade, configuradas a partir das visões de mundo dos diferentes grupos sociais. Integram o seu corpo teórico as análises de conjuntura, desenvolvidas a partir de uma visão transdisciplinar, interligando as diferentes visões de natureza, cultura e sociedade apresentadas pelos demais campos do conhecimento. “Nesse sentido, os limites da Museologia serão definidos também na relação, melhor dizendo, no cruzamento na interface com outros campos disciplinares” (SCHEINER, 2009, p.49). Ainda de acordo com essa autora, a Museologia não trata dos museus, mas do fenômeno museu, sendo um campo disciplinar específico com uma teoria própria. Nas suas palavras:

Museologia, portanto, já pode ser entendida como o campo disciplinar que trata das relações entre o fenômeno Museu e as suas diferentes aplicações à realidade, configuradas a partir das visões de mundo dos diferentes grupos sociais (SCHEINER, 2009, p.49).

Como contraponto ao pensamento de Scheiner, consideramos a concepção de Museu e Museologia apresentada por Loureiro (2005). Segundo o autor, os inúmeros estudos e reflexões acerca da Museologia não definem clara e profundamente o seu estatuto epistemológico. Não há consenso quanto àquilo em que se constitui a Museologia: alguns a consideram ciência enquanto outros a aproximam da Filosofia. Cabe lembrar que atualmente os cursos de graduação e pós-graduação em Museologia no Brasil são avaliados pela Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES/MEC como sendo uma subárea da Comunicação e Informação. Até o ano de 2016 a Museologia era classificada como uma subárea das Ciências Sociais Aplicadas. A mudança de área também provocou muitos questionamentos.

Para Loureiro (2005) a Museologia é um conjunto multidisciplinar de saberes e discursos de caráter teórico e instrumental voltado para a medição das redes de significados e sentidos produzidos pelos seres humanos. Assim, para o autor, Museologia pode ser definida como:

O território de interdiscursos de ordem histórica, cultural e estética. Este recorte objetivamente, por outro lado, postula processos modelizadores de criação da linguagem museológica que originam os discursos expositivos museológicos. Enfatiza-se o discurso expositivo tendo em vista ser a exposição elemento essencial do museu e determinante das práticas museológicas (LOUREIRO, 2005, p.29).

De acordo com o pensamento de Loureiro, a Museologia possui um solo teórico ainda pouco cristalizado e em permanente mudança. Desse modo, tem a possibilidade de reunir e organizar diferentes lógicas e esferas do conhecimento dispondo-as a serviço de objetivos comuns. Sobre qual seria o objeto de estudo da Museologia, o autor questiona o “real” enquanto objeto de estudo. Para o autor, as referências ao objeto de estudo da Museologia devem ser feitas no plural: “objetos de estudo”. Neste caso, pluralidade não significa totalidade, mas pressupõe uma articulação vinculada orgânica e essencial.

A pesquisadora Marilia Xavier Cury (2009) entende a Museologia a partir de um ternário: homem/sociedade, patrimônio/objeto e cenário/território. Em suas palavras: “Assim, a produção da museologia pode ser considerada aquela em que o objeto de estudo trata do ternário, mesmo que considerando uma de suas partes, sem perder, no entanto, a perspectiva do todo” (CURY, 2009, p.29). A autora argumenta que a Museologia é uma transdisciplina em formação fazendo com que a aproximação e reciprocidade com outras áreas seja essencial para a construção da transversalidade, da estrutura epistemológica transdisciplinar e do quadro teórico-conceitual (CURY, 2009, p.29). Sobre o objeto da museologia e sua conservação, esse é aquele que foi retirado do contexto natural ou circuito econômico e/ou funcional, adquirindo um estatuto diferenciado. Para Cury “O objeto museológico não é um objeto em um museu e sim aquele que sofre as ações que compõem a musealização por meio do processo curatorial” (CURY, 2009, p.33).

Suely Moraes Cerávolo (2009), outra pesquisadora do campo, considera que como área de conhecimento a Museologia conta com uma história a ser rememorada. Os delineamentos para a formação da teoria museológica foram gerados no plano internacional, principalmente no decorrer das décadas de 1970 e 1980. De acordo com a autora:

A museologia como área de conhecimento científico se concretiza sobre indícios variados do patrimônio Cultural e natural (o objeto), em qualquer lugar que eles se apresentem (o lugar), através de procedimentos de preservação, conservação, documentação, exposição, educação, divulgação de conhecimentos (os instrumentos) (CERÁVOLO, 2004, p.207).

Rangel (2015) afirma que “O museu no século XXI se apresenta como uma instituição paradigmática das atividades culturais. São espaços altamente complexos que devem ser compreendidos em todas as suas nuances”. Para o autor a museologia não possui uma concepção que seja comum a todos que se debruçam sobre a discussão da área:

[...] o museu é “uma estrutura altamente complexa, diretamente relacionada ao homem e ao seu processo de desenvolvimento social, político, científico e cultural.” [...] A rejeição do museu como objeto de pesquisa foi o sintoma de determinada conjuntura sociocultural que não cabe nos dias atuais. Cada vez mais o museu se apresenta como um objeto múltiplo e complexo e exige nossa análise sobre a discussão da área (RANGEL, 2015, p 416).

Para finalizar é possível afirmar que tanto a Museologia como o Patrimônio estão em constante reelaboração e transformação. Desta forma, todas as discussões sobre Museologia, Patrimônio ou sobre “os objetos de estudos da museologia” nos levam a perceber que a preservação e a conservação do patrimônio constitui uma importante estratégia para que possamos compreender parte da história e da cultura dos grupos e dos atores sociais. Por outro lado, a Museologia e o patrimônio estão sujeitos, muitas vezes, às manipulações políticas e/ou a serem usados ideologicamente.

1.4 A interface entre Museu, Conservação, Museologia e Preservação: as bases da