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Considerações sobre os sentidos do pré-sal e do regime de partilha

PARTE 1 – O GOVERNO LULA E O PETRÓLEO NO BRASIL

3.6 Considerações sobre os sentidos do pré-sal e do regime de partilha

A presente seção tem como objetivo particular o cumprimento do objetivo geral deste segundo capítulo, qual seja, identificar e dimensionar o significado do regime de partilha em sua relação com a história da atividade petrolífera no Brasil. Nesse sentido, a seção será constituída por um conjunto de apreciações que visam constituir uma síntese interpretativa daquilo que foi apresentado até aqui.

Em termos práticos e significativos, a exploração petrolífera no Brasil só começa após a Revolução de 1930. Sua causa eficiente foi a substituição da hegemonia da burguesia agroexportadora pela hegemonia da, então ascendente, burguesia industrial. A causa

determinante – que desencadeou o imediato processo de desenvolvimento da indústria petrolífera – foi a iminência da Segunda Guerra Mundial, que conferiu ao petróleo qualidades estratégicas, fundamentais às políticas de segurança nacional típicas dos períodos de guerra.

A ascensão da burguesia industrial favoreceu a articulação de uma instável coalização entre determinadas frações da burguesia brasileira, da qual se intuía uma postura típica de burguesia nacional; entre setores importantes que ocupavam relevantes centros de poder, tais como oficiais das forças armadas e lideranças da envergadura de Getúlio Vargas e Joao Goulart; e por fim, entre o crescente proletariado urbano, para quem foi estabelecida a primeira legislação de proteção ao trabalho do País.

Essa concertação advogava no plano político e econômico um projeto nacional- desenvolvimentista orientado, sobretudo, pelo objetivo de “tornar a empresa industrial a unidade-chave do sistema” (OLIVEIRA, 2003, p.48). É nesse contexto nacional- desenvolvimentista que se tornou possível o estabelecimento do monopólio estatal sobre as atividades petrolíferas e a fundação da Petrobrás. Nesse sentido, o regime de monopólio e a empresa são produtos típicos do nacional-desenvolvimentismo, o qual ambicionava uma completa industrialização do Brasil que, superando o atraso interno, deveria alcançar o mesmo padrão de desenvolvimento das nações do capitalismo central. Não por acaso o Presidente Fernando Henrique Cardoso, ao sancionar a Lei 8.987/199515, resumiu-a como sendo o fim da Era Vargas (FOLHA DE SÃO PAULO, 1995, ONLINE).

O golpe de Estado de 1964 promoveu uma completa desorganização das forças nacional-desenvolvimentistas, substituindo a articulação Estado-capital nacional-proletariado urbano pela articulação Estado-capital nacional-capital externo, agora num padrão autoritário modernizante (LEME, 2015) que, ainda desenvolvimentista, garantia a hegemonia política de toda burguesia e, no cenário da guerra fria, integrava de vez o capitalismo brasileiro ao capitalismo estadunidense, além, é claro, de assegurar a manutenção do latifúndio e a expansão das taxas de exploração da força de trabalho. A emergência da Petrobrás como “Leviatã produtivo16”, nas palavras de Alveal (1994), combinada com o relativo desinteresse

das petroleiras internacionais na exploração das jazidas brasileiras, garantiu que a empresa não entrasse em conflitos significativos com o capital internacional pelo menos até a primeira

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A legislação regulamentou o estabelecimento do regime de concessão para a prestação de serviços públicos, abrindo caminho para a lei que, em 1997, estabeleceu o regime de concessão para o setor de petróleo.

16 De acordo com Alveal (1994, p.58), Leviatã produtivo constitui uma tipificação de um “Ator Estatal

Produtivo” que não pode ser reduzido a um instrumento passivo da política de governo. Suas características determinantes são a existência de uma identidade política própria, de um projeto estratégico próprio, de um elevado grau de autonomia relativa e de um baixo grau de dependência.

crise do Petróleo, quando as intervenções do Governo Geisel no setor de energia fizeram eclodir os primeiros pontos de conflito.

As intervenções de Geisel no setor de energia respondiam à combinação de duas crises principais, a crise internacional do petróleo de 1973 e a crise generalizada dos desenvolvimentismos. O aprofundamento dessa segunda crise a partir de uma reconfiguração do capitalismo mundial no fim dos anos de 1970 significou para o Brasil, durante toda a década de 1980 e 1990, uma alteração no seu padrão de desenvolvimento dependente. Se durante o período desenvolvimentista o padrão de dependência está vinculado a “importação de capitais estrangeiros” que acontece “por meio de investimentos nos ‘novos segmentos industriais’ e da instalação de filiais das empresas multinacionais” (MARTUSCELLI, 2018, p.55-56) no novo padrão de dependência estabelecido pela era do capitalismo neoliberal

as potências imperialistas impelem as economias dependentes a atrair investimentos externos sem garantir como contrapartida a promoção de ‘políticas ativas de desenvolvimento’. Ou seja, os capitais estrangeiros que chegam a esses países não se destinam à internalização de conhecimento e de tecnologias de ponta, tampouco à ampliação do mercado interno. Visam apenas ao apoderamento do que já existia, sem nada agregar de novo (MARTUSCELLI, 2018, p.55-56).

A ascensão do neoliberalismo significou para a Petrobrás o fim do regime de monopólio e seguidas tentativas de privatização que, devido aos processos de mobilização política, até o momento, somente tiveram força para atingir as suas subsidiárias. A abertura do mercado petrolífero brasileiro ao capital internacional, até a descoberta do pré-sal, não causou grandes prejuízos à empresa, pois, a operação dos campos no Brasil exigia a mobilização de vultosos recursos, sendo também os riscos relativamente altos. Dessa maneira, a manutenção do regime de concessão após a descoberta do pré-sal atestaria a empresa como um “núcleo integrado de expansão”, cujas funções são de:

favorecer, completar ou criar as condições para o desenvolvimento do capital privado, [pois] o capital estatal não se implanta onde as perspectivas de lucro são mais promissoras, mas onde a indústria privada deixou vazios a preencher, e estes vazios encontram-se nos setores de produção onde a rentabilidade do capital é menos certa (HIRATA, 1980, p.66).

A retirada dos blocos do pré-sal da 9º Rodada de Licitações da ANP no ano de 2007 e o estabelecimento do regime de partilha em 2010 frustraram, pelo menos em parte, essa expectativa acerca do papel típico desempenhado pelo capital público. Portanto, se o regime de partilha não significou a afirmação do capital público como “núcleo integrado de expansão”, o que ele significou?

Para que seja possível dar uma resposta satisfatória a essa questão recorre-se aqui ao texto Imperialismo, dependência e capitalismo associado, de Angelita Matos Souza (2008).

No referido artigo a autora faz uma análise dos processos de transição ao neoliberalismo pelos quais passaram Argentina, Brasil e Espanha. Nas observações de Souza, ela conclui que a Argentina representa um caso extremo de capitalismo dependente-subordinado, marcado por um processo intenso de desnacionalização, desindustrialização e especialização produtiva. A radicalidade do neoliberalismo argentino se deveu a incipiente industrialização do país portenho, a qual não legará a existência de “uma burguesia local e/ou uma burocracia tecnocrática capaz de opor resistências às reformas neoliberais dos anos 90” (SOUZA, 2008, p.18).

No polo oposto ao caso da Argentina, encontra-se o caso da Espanha, que a partir da fusão entre grandes grupos nacionais privados do setor financeiro e de infraestrutura, conseguiu consolidar um núcleo duro do capital financeiro espanhol que conduziu o processo de internacionalização da economia desde dentro, impondo limites à participação do capital internacional. Dessa maneira, “as inversões estrangeiras em empresas nacionais, menos que à compra/controle, destinaram-se à sociedade/associação com o capital local, favorecendo, política e economicamente, o poder internacional dos grupos espanhóis” (SOUZA, 2008 p. 19). Assim, mesmo sendo uma economia dependente, a economia espanhola distingue-se qualitativamente das economias dependente-subordinadas, constituindo um padrão de dependência-associada. O Brasil, de acordo com Angelita Souza, embora dependente- subordinado, não tem um grau de subordinação tão acentuado quanto o argentino, pois

a herança desenvolvimentista dificultou ajustes neoliberais radicais, ao legar um parque industrial relativamente integrado, um setor bancário robusto, uma diversificação comercial e um dinamismo exportador sem paralelo no continente. Uma burguesia local no setor financeiro, agrário (agrobusiness) e industrial; jornalistas, intelectuais, economistas de oposição, bem como representantes da alta burocracia, [os quais] conseguiram opor resistências à radicalização das reformas à maneira argentina (SOUZA, 2008, p.26).

Dessa maneira, o Brasil seria o único país da América Latina com condições de, no processo de abertura econômica, ter alcançado a posição de dependente-associado, o que não aconteceu mais por questões de ordem política do que por questões de ordem econômica (SOUZA, 2008).

Essa pequena explanação sobre o texto de Angelita Souza oferece instrumentos para que se descubra o significado da instituição do regime de partilha. Como destacado no capítulo I, o Governo Lula foi sustentado por uma frente política orientada pela aplicação de um programa neodesenvolvimentista. Esse programa poderia ser resumidamente caracterizado como o “desenvolvimentismo da época neoliberal” (BOITO Jr, 2012, p.6), pois se o desenvolvimentismo original ambicionava a superação do subdesenvolvimento

perspectivando a transformação do Brasil numa economia capitalista completa. O neodesenvolvimentismo, limitado pelo modelo neoliberal, não poderia manter tal ambição. Dessa maneira, não visava à ruptura com a dependência, mas uma alteração de um padrão de dependência subordinada para um padrão de dependência associada. É nesse contexto que se insere a instituição do regime de partilha, que sem romper com o modelo neoliberal17, impõe, como originalmente aprovado, limites à participação do capital externo garantindo o controle nacional sobre o processo de produção e de apropriação das rendas. As políticas de conteúdo local instituída por cada um dos editais da conjuntura neodesenvolvimentista completam essa política na medida em que, tal como o regime de partilha, frustra o padrão de acumulação por expropriação típica do neoliberalismo, exigindo, com isso, que a presença do capital externo legue à indústria doméstica um mínimo de investimento produtivo.

Portanto, o regime de partilha significa um reordenamento do padrão de ação estatal no setor de petróleo, alterando o regime exploratório típico do neoliberalismo para um regime exploratório que, embora não rompa com o modelo neoliberal, estabelece uma adequação do setor ao projeto neodesenvolvimentista.

17 Um regime de exploração que indicaria um tensionamento com o modelo neoliberal seria o regime