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5. PROGRAMA DE RESGATE ARQUEOLÓGICO

5.2. METODOLOGIA

5.2.2. Laboratório

5.2.2.3. Considerações Teórico-Metodológicas na Análise do Material Cerâmico

Os materiais cerâmicos, em suas variadas categorias, apresentam um essencial potencial interpretativo para os estudos arqueológicos. Geralmente exumados dos sítios arqueológicos cerâmicos em grande quantidade, estes testemunhos materiais apresentam um importante número de características e questões passíveis de serem analisadas e interpretadas: podem-se inferir sobre sociabilidades, hábitos alimentares e higiênicos, padrões econômicos, trocas comerciais, relações de prestígio, relações diante da morte, questões de gênero, entre outros. Recentemente, os estudos relacionados ao material cerâmico tem se diferenciado, apontando para estudos tecnotipológicos associados à concepção de cadeia operatória (MEDEIROS, 2007). Neste sentido, a análise da cerâmica, para além de quantitativa e serial10, tem se tornando também qualitativa, assinalando para a técnica não como um modo de satisfazer as necessidades materiais de um determinado grupo, atuando como apenas uma estratégia de adaptação ao meio, mas, ao contrário, como integrante de um sistema social, feito de escolhas e associada aos demais subsistemas que fazem parte da composição de uma sociedade (MEDEIROS, 2007: 21- 22), contendo significados simbólicos e traços importantes da dinâmica cultural.

10 Tal metodologia de análise, ainda utilizada em pesquisas, foi amplamente utilizada pelo Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA), que se voltou, de acordo com Ana Nascimento e Suely Luna, aos estudos dos grupos ceramistas. Neste sentido, “para classificar a cerâmica, foram estabelecidos parâmetros que

identificavam os tipos, fases e tradições ceramistas a partir dos dados arqueológicos, utilizando-se também correlações etnohistóricas e etnolinguísticas”, tendo como principais elementos de classificação o antiplástico, a

decoração e as formas dos vasilhames (Cf.: LUNA & NASCIMENTO, 1994: 8). Com o encerramento do PRONAPA (1965-1970), iniciou-se um questionamento do quadro até então estabelecido em relação a aspectos teórico-metodológicos. Neste sentido, diante das críticas, novas propostas de análise e reflexão começaram a surgir, “onde a perspectiva principal é integrar a cerâmica em um contexto mais amplo” (LUNA & NASCIMENTO, 1994: 9), sendo necessário que, conforme Medeiros (2007: 21), o arqueólogo não compreenda a cultura material pela cultura material, mas que “estude o artefato dentro dos contextos sociais, culturais e tecnológicos, acima de

tudo buscando compreender como as escolhas estão inseridas nesses contextos: dos gestos técnicos que estruturam a manufatura de uma dada cultura material, perpassando pelo seu emprego social até o descarte”.

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Neste âmbito, várias técnicas instrumentais têm sido utilizadas para a análise e compreensão do material cerâmico com o intuito de compreender os grupos sociais pretéritos (GOULART, 2004; MEDEIROS, 2007). Dentre elas, ressaltam-se a microscopia óptica (GOULART, 2004) e a utilização da fluorescência induzida por raios ultravioletas. Por meio da microscopia óptica, “técnica que permite a caracterização dos materiais de interesse arqueológico, sejam as

matérias-primas, sejam os produtos cerâmicos [...]” (GOULART, 2004: 251), pode-se obter

informações valiosas sobre os materiais cerâmicos, tais como forma, constituição mineralógica da pasta, distribuição granulométrica, procedimentos técnicos de manufatura, presença de minerais corantes, utilização de aditivos – ou seja, de materiais adicionados à massa cerâmica para se conseguir técnicas propícias a uma boa secagem e cocção (GOULART, 2004: 257), tratamentos de superfície e a existência de fissuras ou quebras na pasta cerâmica, assim como bolhas de ar. Já com a fluorescência visível induzida por raios ultravioletas, técnica esta não destrutiva, pode-se obter informações a respeito de aspectos técnicos de execução e de constituição de materiais não mais visíveis a olho nu, como a presença de decorações muito desgastadas (IPINZA & POBLETE, 2011).

Ambos os métodos, assim sendo, são capazes de oferecer uma vasta quantidade de dados essenciais para se compreender as técnicas utilizadas por grupos sociais que as produziram e, conseqüentemente, as etapas de produção do artefato cerâmico, sem perda significativa do material a ser analisado.

Para a análise do material cerâmico, utilizaremo-nos da definição genérica de cadeia operatória, ou seja, da seqüência de operações para a realização da transformação da matéria-prima em artefato (PFAFFENBERGER apud MACHADO, 2006). A aplicação de tal conceito para a compreensão e em uma forma de classificação de conjuntos cerâmicos deve, portanto, considerar uma ampla gama de atributos relacionados a diferentes etapas desta cadeia, levando- se em consideração a percepção de combinações entre distintas escolhas tecnológicas no momento da manufatura, tais como matérias-primas selecionadas, técnicas de manufatura, tratamentos de superfície, resultados formais, técnicas decorativas e, até mesmo, atividades de uso e de descarte (MACHADO, 2006).

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Para obter tais informações, a análise do material cerâmico será executada em duas etapas: uma

quantitativa e outra qualitativa. Na primeira delas, ou seja, na qualitativa, levar-se-á em

apreensão de questões tipológicas e morfológicas, com o intuito de se estabelecer etapas de manufatura para os materiais exumados.

Em relação à morfologia, nossas observações se encontram consorciadas ao sistema de classificação cerâmica de Birkhoff (1933) e adaptada por Shepard (1965). Conforme Machado embasada nos escritos de Shepard (2006: 90), “a classificação [...] baseia-se na observação e

descrição dos pontos considerados chaves do contorno do pote, a partir dos quais é possível se ter uma idéia das dimensões”, onde devem ser observados (MACHADO, 2006: 90):

a) O ponto final da curva, na base ou lábio;

b) Os pontos que medem o diâmetro máximo e mínimo da curvatura; c) O ponto que marca uma mudança abrupta na curvatura;

d) O ponto que marca a inversão na direção da curvatura

O emprego de tal sistema de pontos-chave do material cerâmico proporciona a compreensão da morfologia dos instrumentos cerâmicos, facilitando também sua projeção e reconstituição a partir de fragmentos específicos, como no caso das bordas (MACHADO, 2006).

Na análise cerâmica aqui proposta, tendo-se em vista a lida não com vasos cerâmicos inteiros, mas sim com fragmentos cerâmicos, tais categorias serão simplificadas, adotando-se como parâmetros de análise a base, o bojo e a borda. Aqueles elementos que não apresentarem características para se afirmar que pertençam a alguma destas três categorias, serão classificados como fragmentos de cerâmica (MEDEIROS, 2007: 84). Importante também para a análise a ser desenvolvida são as classificações de estruturas de potes propostas por Shepard (apud MACHADO, 2006), onde podem ser de:

a) Orifícios restritivos (“restricted orifice”); b) Orifícios irrestritivos (“unrestricted orifice”); c) Pescoço ou gargalo (“neck”).

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Os orifícios restritivos são, normalmente, definidos como tendo o diâmetro de seu orifício menor que o maior diâmetro das vasilhas; já os irrestritivos, possuem nos seus orifícios o maior diâmetro das vasilhas; e os pescoços ou gargalos são marcados por um ponto de inflexão abrupto que delineia o fim do corpo do pote e o início do gargalo (MACHADO, 2006: 90). Conforme Machado (2006: 90), mesmo que essas divisões não impliquem fundamentalmente em funções específicas, cada uma das formas se adapta melhor a diferentes tipos de utilizações. Assim sendo, de acordo com a estudiosa, os potes que apresentam orifícios irrestritivos, teriam um fácil acesso ao seu interior e uma grande visibilidade do mesmo, podendo ser grandemente utilizados para ações que exigissem um manuseio de seu conteúdo, ou para que este ficasse à mostra ou secasse; já aqueles que contêm orifícios restritivos, dificultariam o acesso ao seu conteúdo retendo-o e conservando-o melhor; e, por último, os potes que possuem

gargalo/pescoço possuiriam o atributo de proteger o líquido de seu interior de ser derramado

para fora, tendo ainda seu manuseio facilitado.

Ainda com relação à morfologia e à análise quantitativa, serão observadas e anotadas a espessura das paredes de borda, de bojo e de base; os tipos de borda, bojo e lábios; os ângulos de cada uma das três categorias; os tratamentos de superfície, tanto em paredes internas quanto externas; a pasta e a queima.

Com os dados referentes às espessuras das paredes11, poderemos levantar questões sobre etapas da cadeia operatória, tanto em seu processo de manufatura quanto em seu emprego utilitário, ou seja, seu uso no preparo de alimentos. Já as informações acerca dos ângulos da borda, do bojo e da base, assim como de seus tipos12, auxiliarão na reconstituição do vaso cerâmico, apontando dados relevantes sobre tamanhos e volumes. Ainda, com o estudo das marcas de utilização, do tratamento de superfície e da queima, buscaremos recorrências que indiquem modos de se fazer.

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As espessuras serão analisadas a partir dos critérios propostos por Alves (1992), onde:  A parede muito fina possui medidas ≤ a 06 milímetros;

 A parede fina possui medidas entre 07 e 09 milímetros;  A parede média possui medidas entre 10 e 14 milímetros;  A parede grossa possui medias entre 15 a 20 milímetros;  A parede muito grossa possui medidas maiores a 20 milímetros.

12 Os tipos de borda, bojo e base serão classificados conforme os termos técnicos apontados pela Terminologia Arqueológica Brasileira para a Cerâmica (CHMYZ, 1976).

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Para auxiliar numa análise mais detalhada do material cerâmico, principalmente no que concerne aos tratamentos de superfície e aos elementos que formam o antiplástico, é de grande importância o uso da arqueometria, ou seja, das ciências físicas, nos estudos arqueológicos. Neste sentido, a utilização da fluorescência induzida por raios ultravioleta, pode colaborar, definitivamente, na visualização de detalhes relacionados à existência de pinturas de superfície já deterioradas ou não mais visíveis ao olho humano e à presença de elementos orgânicos e minerais; ainda, a visualização do material cerâmico através de um microscópico óptico permitirá, conforme Goulart (2007: 20) “com seus aumentos variando de 10 a 1000 vezes, [...] a

obtenção de dados amplos relativos à mineralogia, à forma dos grãos e à microestrutura (modo de interrelação dos diversos grãos da amostra) seja sob luz refletiva, seja sob luz transmitida”.

Assim sendo, as observações já delineadas acima, juntamente com utilização de técnicas arqueométricas, podem nos ajudar a obter dados mais precisos e com maior número de informações e, também, a compreender com mais profundidade quais eram as prioridades selecionadas em cada momento, colaborando no entendimento dos processos de manufatura, usos e descartes dos utensílios cerâmicos.

No que concerne à análise qualitativa, que poderá ser contraposta à quantitativa, realizar-se-á um agrupamento das recorrências em conjuntos. Tais conjuntos serão então descritos com o objetivo de se identificar o que lhes dá unidade, que pode ser decorrente tanto de uma padronização formal quanto de uma seqüência de manufatura. Ainda, serão relacionados estes dados com suas concentrações e distribuições espaciais nos sítios arqueológicos e setores de escavação a serem estudados.

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