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A bomba atômica assustou o século XX, mas hoje a degradação do ambiente fala mais alto. Todos somos responsáveis, diariamente, a cada compra, a cada embalagem aberta, em cada saquinho plástico, em cada desejo, neste imenso universo de resíduos que nos ensinaram a descartar. Quando olhamos para o resto, passamos a perceber outros “restos” e assim por diante percebemos outras formas de separação que mostram desigualdades de forças que definem relações de poder. Por exemplo, formas de ser e pensar, em identidades fabricadas no consumo de um sistema capitalista com imensa capacidade de produção e que não pode parar, senão o caos se instalará ainda mais. O capitalismo criou um mundo irreversível, um trem-bala que não pode parar que se desloca rapidamente para o próprio fim, quando não haverá mais recursos naturais. Anoto a importância do texto sobre o consumo produtivo, que age invisível, e com alto poder de destruição do ambiente e do custo humano, na importância dos anônimos atores urbanos, em suas íntimas motivações que agem na cidade e suas presenças trazem esperança contra as utopias instaladas, dominantes e hegemônicas. Os entendimentos trazidos sobre questões de espaço e práticas do cotidiano de uma cidade mostram que a vida sempre poderá ser diferente. E nesta experiência, neste texto, nesta pesquisa, vimos a progressão da deteriorização alertada por Guattari em 1989. Não faltam notícias preocupantes, não faltam mídias explorando estas notícias terríveis, não faltam poderes ocultos promovendo estas notícias recheadas de violência, vemos os seres humanos formatados em modelos hegemônicos; nos discursos de raça, religião, nação, pátria, gênero, virilidade, moda, performance, ranking, pureza, competição, identidade, entre outras reduções.

Não são apenas as notícias em si, mas a edição delas, a sequência escolhida entre assuntos categorizados, correlatos que sugerem sempre a continuidade da atenção. Bizarras linhas de tempo entre manchetes de violência, que demonstram uma intenção midiática na disseminação do medo ou promoção de idéias de segurança. Esta multiplicidade de eventos assustadores está visível entre tantos canais. Até mesmo a guerra pode ser acompanhada nas redes sociais dos combatentes e sobram imagens de batalhas e enfrentamentos. Nunca antes a

humanidade produziu tantas imagens e em diferentes meios luminosos e impressos. O Youtube não permite cenas de sexo mas sobram cenas de morte e matança.

Vemos as pessoas cabisbaixas olhando e interagindo com seus remotos interesses através da tela luminosa em dispositivos de informação/opinão. A rede sem fio é buscada nos espaços públicos. Nos aeroportos vemos as filas de corpos sentados, cabeças baixas arrastando os dedos nas telas luminosas. Sentimos e respondemos ao excesso de informação, à retórica que constitui sujeitos informados, buscadores de informação ou atualizações, periódicas, incessantes na vida contemporânea dos smartphones. Quando os dedos passam na tela (já existe algum verbo para esta ação?), os dedos buscam atualização. Diz Larrosa, que o saber da experiência é separado do saber das coisas; quanto mais opinião, menos experiência. Sem experiência, nada nos acontece. O autor separa o par

informação/opinião da experiência. Alerta para o que parece condicionar

conhecimento sob forma de informação, ou aprender seria apenas adquirir e processar a informação?

Larrosa cita Walter Benjamin, que fala do periodismo que é o grande dispositivo moderno para a destruição generalizada da experiência. Chama de “aliança perversa entre informação e opinião”. Este sujeito é o suporte informado da opinião individual e ainda um sujeito coletivo, suporte informado da opinião pública. Um sujeito fabricado e manipulado, incapaz da experiência. Isso deriva do efeito das mídias na conformação de nossas consciências. Quem sou quando falta energia elétrica? Vemos a proliferação das propagandas em conteúdos luminosos sempre mais abundantes e populares. O smartphone é a “cultura popular global” e para ele abaixamos nossas cabeças e assim permanecemos muito tempo enquanto nossas mãos adquirem, buscam, novos jeitos de segurá-lo, manuseá-lo enquanto operam- se suas funções inexplicáveis há trinta anos. Somos catadores em outros corpos celestes. Já fomos à Lua e estamos em Marte70. Coletamos rochas, radiações, imagens, sons, dados. A pesquisa das palavras-chave “coleta” e “marte” revela muito conteúdo no assunto. Já falam em missão tripulada para coleta de amostras

70

http://mars.nasa.gov/mer/home/

em busca de microorganismos. Mas há o risco de trazerem também vírus desconhecidos.

Percebemos objetos quando resolvemos, por exemplo, arrumar a casa, o armário ou uma gaveta. Percebemos que sempre estiveram ali, mas invisíveis. Atenção no olhar e perceber que está diferente. A experiência da acumulação exige uma tentativa de organização porque sempre pode surgir uma nova categoria no repertório. Resto é energia, esta inevitável experiência de consumo e da acumulação exige refletir. Por isso, comecei olhando a cidade e sua paisagem nos detalhes do pensamento do descarte. Essa inquietação tem afectos próprios com a questão espacial urbana, olha os objetos, o consumo, a velocidade da circulação das coisas, elege uma unidade pós-industrial e dela segue para a experiência dos encontros em resultados agora compartilhados. A experiência desta ação criativa aproxima e prepara para novas práticas artísticas.

A idéia do reaproveitamento está no ar. Neste percurso percebo a simpatia que a proposição da reciclagem afeta as pessoas. Todos parecem dispostos a contribuir, mas não é bem assim que agem. A ação do reaproveitamento pede um modo de vida, ou seja, uma prática diária seletiva no contato com o material que passa por nós. As tampinhas se mostram como elementos de uma potência capaz de coletar grande quantidade de material e neste conjunto que agrega sempre novas peças, se atraem e participam reciprocamente uma das outras. Vemos o acontecimento de um modo social. Nas infinitas maneiras de olhar para si mesmo e refletir nossa parte nesta invisível cadeia, de produção e circulação do consumo, a tampinha nos sinaliza para outros agentes abundantes no cotidiano. E não é uma ação isolada ou inédita, porque não faltam exemplos de novas práticas na reutilização destes insumos, da sucata, na internet. A linha criativa da experiência da instalação das tampinhas plásticas, sintetizada no tubo colorido que fala de ambiente, relações sociais e subjetividade. Oferece nesta experiência, um território de singularidade, que isola, blinda, o assédio do mundo lá fora. O resultado parcial deste trajeto mantém o horizonte inicial da ecosofia explorando a sucata como olhar direcionador na reinvenção necessária, e urgente, nos modos de vida hoje. Desenvolve um capital criativo em cada pessoa, em saberes e práticas singulares que podem render dinheiro também. E você? Separa o que?

O modo de vida contemporâneo orientado pelo consumo continua em “potência máxima” quando atentamos aos impactos ambientais, à deteriorização das

relações sociais e à subjetividade produzida pelos dispositivos do CMI que age na construção de identidades, de perfis de consumidores. A energia da sucata é o agente consciente na invisível tessitura em processos, de subjetivação ou singularização, por onde a vida acontece em infinitas e sucessivas sinapses, criativas ou reativas aos acontecimentos que assiste ou cria.

A sucata é um devir neste modelo de realização rizomático, invisível aos olhos panorâmicos humanos. Devires brotam da singularidade e buscam acontecimentos que desejam acontecer, pois já existem enquanto potência. A carniça é pura energia para outros seres e assim a natureza nos mostra seus movimentos. Mesma inerte, a sucata é potência, uma criatura que opera e pode agir até contra o criador que a fabricou. Exige cuidados, pode machucar. Fora dos modelos disponíveis (moda, estilo, consumo, marcas, etc) quem somos nós? A sucata sugere reflexões, possibilidades, dúvidas, numa pergunta inesperada a si mesmo. Quem sou eu sem isso tudo?

O consumo, ao criar a necessidade de uma nova produção, constitui ao mesmo tempo o motor e o motivo dessa criação. Tal é a virturde primordial do ready-made: estabelecer uma equivalência entre escolher e fabricar, entre consumir e produzir” (BOURRIAUD,2009,p.20)

Esta dissertação afirma que a sucata é um bom negócio: é coletar, separar, armazenar, processar e transportar. Tira daqui e leva para lá. Leva para onde está o mercado. Há o interesse comunitário em se desfazer dos objetos e até separá-los. Há o interesse do sucateiro em comprar ou ganhar o material; “anexação ao mundo da arte de formas até então ignoradas ou desprezadas”. A sucata transforma a idéia de originalidade quando se produz a partir de objetos preexistentes. Mostra que a criação não é sobrenatural, mas uma continuidade, um movimento contínuo e sensível neste fluxo atravessando códigos ou crenças, tradições que insistem em isolar a atmosfera do mundo.

Destaco um tampinha que recebeu maior atenção do público por ocasião da Instalação EqÜevo. Trata-se de um cone azul escuro gravado em relevo a palavra “adoçante”. Este objeto era valorizado nas composições que surgiam, era o mais disputado e nele foquei o interesse e descobri que se encaixa com precisão nas tampinhas básicas de águas e refrigerantes. Este fechamento consegue ser hermético quando bem pressionado nas tampas de Fanta. Serve como instrumento para medir as mínimas diferenças entre as tampinhas que parecem iguais. Em

algumas se ajusta melhor em outras se afrouxa. A forma logo sugere um peão, hoje chamado “spinner” entre as crianças. Girando com as duas mãos, nas pontas dos dedos, consigo fazê-lo girar no chão liso. Parece leve mas funciona bem, é divertido, é um brinquedo fácil. Talvez uma síntese funcional do processo artístico que não busca tecnologias.

Figura 66. Tampas de água e do adoçante líquido Linea Sucralose 75 ml

Estas formas de pensar e fazer novas relações artísticas remetem a uma poética de sucatas. A sucata pode ser um argumento lógico na estética relacional de Bourriaud. É um agente que nasce de afetos, desejos de consumo e depois segue outras rotas motivadas pela cultura do descarte. No desejo e no descarte está a arte do pós-consumo.

A estética relacional de Bourriaud teoriza o modo social na arte de “estar junto”, sem a presença humana nada acontece. De certa forma não é preciso apenas contemplar algo dito “belo”. Estas poéticas aproximam o público de novas maneiras e práticas de se pensar a vida e estar junto na arte. Os pensamentos sobre meio ambiente, relações sociais e subjetividade estão presentes nas poéticas aqui apresentadas.

Figura 66. Criações do público durante a Instalação Eqüevo 31 dias

E qual a nossa época? Parece a era da impermanência, ou seja, da velocidade alterada dos acontecimentos sobrepostos de um mundo colonizado, dominado, tensionado por linhas de poder que se confrontam incessantes, que orientam e criam seres humanos, distantes da natureza e preparados ao discurso do consumo (onde tudo se move para construir a figura do consumidor e seus desejos). Enquanto isso, as mentalidades coletivas mudam, e mudam cada vez mais rápido. Evoluímos para um estado de incompatibilidade com a vida na degradação do ambiente, nas explosivas relações sociais, na promoção do ódio e na produção de subjetividades nocivas à nossa singularidade necessária na experiência de viver, principalmente, na arte que hoje se espalha em novas e contínuas práticas, também no espaço cibernético conduzidas por hashtags indeléveis. Na experiência artística deste mundo acelerado, compartilhado, logado e sob vigilância, a criatividade é atitude com a própria existência, enquanto é obrigação do artista trazer o novo, inventar o que antes não existia, seja em qualquer matéria e espaço.

Na travessia desta pesquisa encontrei o jovem filósofo Miguel Bezerra que, em sua genialidade, gentilmente produziu e ofereceu o texto a seguir:

Catador de(s) contexto Miguel Bezerra *

Imerso em circuitos que fazem circular objetos fechados, fachadas bem delineadas, reais contornados, modelados e funcionalizados, entidades que operam segundo lógicas auto referendadas e auto legitimadas, eis que surge a figura do catador, ser onde resiste uma estranheza capaz de refigurar, reavaliar e recompor esses objetos inertes que se movimentam como sonâmbulos, obedecendo a uma gramática que se julgava inquestionável, inviolável; um coeso mundo orquestrado por leis gravitacionais, balanças invisíveis que harmonizam os desencontros do conjunto. Tudo segue bem até que surja a personificação do desencontro querendo expor sua voz em meio ao conjunto, querendo fazer de sua atonalidade a motriz de sua inserção no circuito, expondo o desconforto, o espanto, a dúvida, a distância dos bons tons que dão prosseguimento às inalteráveis leis de Newton (ou Smith).

O catador, esse ser que, de fora, aborda o circuito; que não tem muito bem assentadas as noções do que são ou para que servem as coisas; esse feixe de pulsões descontextualizadas, que cobra sua inserção sincopada no mundo; que faz as coisas mais corriqueiras e dadas como certas soluçarem, gaguejarem e tremerem em hesitante descompasso. Isto não é um passo, é sua inflexão. Escrevo sobre a sua escrita, sobre o seu circuito de comunicação, de circulação de bens e pessoas; escrevo como quem adiciona camadas incompreensíveis em sua maquinaria; inserção de peças de outras máquinas em suas engrenagens; curto circuitos; desvios nos trilhos; trans- semiótica; o catador e o circuito. Com seu magnetismo estrangeiro a qualquer legislação vai retirando peças aqui, reagrupando ali, dobrando, torcendo, virando ao avesso, aproveitando somente o que lhe serve para seguir sua trajetória, compondo novos senti(res)dos a partir do roubo e da captura de peças antes bem encaixadas. Compões processos à frankstein, capas de arlequim, remendos de toda parte.

Inimigo do engenheiro e de seu plano totalizante habita a linha de frente na produção do real tecendo as malhas microscópicas de um presente inventado permanentemente. É o encosto dos engenheiros de mundos fabricados em série e, quando enfim incorpora em tais corpos, com a força de sua aparição, fazem eles se contorcerem e falarem línguas estranhas a ponto de apagarem suas bem- comportadas fisionomias em nome de algo inominável. Pós.

VIDEOGRAFIA

Tubos Coloridos

MACP / https://www.youtube.com/watch?v=_AOZ5YrrZFY https://www.instagram.com/p/BCa_ZL-ikSe/?taken-by=lasegadas

Instalação Tampinhas

MACP/ Valda / https://youtu.be/zTfbszg1J-E https://youtu.be/RCV1hOyOh8U MACP / https://www.instagram.com/p/BB6XQTKCkaN/?taken-by=lasegadas Depoimentos Sinop Claudino / https://www.youtube.com/watch?v=jd6D4u-NBds Arara / https://www.instagram.com/p/BE3bQrQCkV-/?taken-by=lasegadas https://www.instagram.com/p/BE4AFZ3ikQa/?taken-by=lasegadas https://www.instagram.com/p/BEBrLpdikWj/?taken-by=lasegadas Intervenções Sinop https://www.instagram.com/p/BED9Sl0ikbS/ https://www.instagram.com/p/BEcaeiRCkci/?taken-by=lasegadas mapa : https://goo.gl/maps/857RkpcjsHo https://www.instagram.com/p/BEbRfTQCkds/?taken-by=

LED nas ruas de Sinop

https://www.instagram.com/p/BE4d08eikZ6/?taken-by=lasegadas

Depoimentos Rondonópolis

Aluna Onilda / https://www.youtube.com/watch?v=7Z8eI5EJzc4 Professora Elni / https://www.youtube.com/watch?v=YdaFutTYE3k Professor Marlon / https://www.youtube.com/watch?v=9aMm-iuyHMU Professora Marki / https://www.youtube.com/watch?v=AoDtg1Bmdok Professora Cecília / https://www.youtube.com/watch?v=tusvYor22EQ

Café Filosófico

Youtube // https://youtu.be/vQNvwKT1r50

Hélio Augusto – “Fiscal do Lixo”

https://youtu.be/A6Gi-SND8g8 As Três Ecologias https://youtu.be/En1c6N_UWg0 https://youtu.be/-sPW-26VAsg vídeo MACP https://youtu.be/_AOZ5YrrZFY

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Maria Thereza O. Poética do precário no filme O Bandido da luz

vermelha de Sganzerla, Anais do V ENECULT - Encontro de Estudos

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BAUDRILLARD, J. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 1968. BAUDRILLARD, J. A Sociedade de Consumo. São Paulo: Martins Fontes, 1970. BAUDRILLARD, J. A Simulacros e Simulação. São Paulo: Relógio d´Água, 1991.

BERTOLETTI, Andrea. Arte Relacional e Ensino de Arte: possibilidades e

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BOURRIAUD, Nicolas. La estética relacional. Buenos Aires: Adriana Hidalgo 2008. BOURRIAUD, Nicolas. BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção: como a arte

reprograma o mundo contemporâneo. 1 ed. São Paulo: Martins Editora, 2009.

CAMPOS, Haroldo. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1975

CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Freqüentar os incorporais: contribuição a uma teoria da arte