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5 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS QUE PERMEIAM A LEI N.o 11.101/2005

5.1 CONSTITUCIONALISMO ECONÔMICO

Em face do acúmulo de capital decorrente da circulação de mercadorias em escala industrial, na segunda metade do século XVIII, surgiu na Inglaterra o capitalismo industrial que se alastrou pela Europa, América e Ásia, tornando flagrante a diferença econômica existente entre os detentores do capital e os assalariados. Era o triunfo do liberalismo clássico como ideologia do capitalismo, que possuía como principais características o individualismo e o egoísmo dos detentores de capital.

A escola econômica do liberalismo clássico fundava-se em quatro grandes princípios: liberdade de empresa, propriedade privada, liberdade de contratar e liberdade de câmbio.115

Na análise de Adam Smith, citado por Alvacir Nicz, o mercado foi concebido como a "mão invisível", que representava o interesse das empresas privadas, conduzindo todos a uma condição admirável. Do equilíbrio das forças privadas decorriam o equilíbrio e o progresso da economia nacional, com a abstenção da intervenção do Estado na economia, em respeito à livre concorrência.116

O impulso decorrente da Revolução Industrial e os ideais da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – acarretaram a degeneração das relações entre os empresários e seus empregados; estes, detentores da força de trabalho.

Chegou-se ao cúmulo de existirem jornadas de trabalho com 14 a 16 horas diárias.

Esse cenário coincidiu com o início da fase objetiva do Direito Comercial, na qual, sob o pretexto de serem eliminados os privilégios concedidos aos comerciantes,

115GASTALDI, J. Petrelli. Elementos de economia política. São Paulo: Saraiva, 1968. p.31 116NICZ, Alvacir Alfredo. A liberdade de iniciativa na constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. p.1.

foram extintas as corporações de oficio, em 1791, pela Lei Chapelier. Era o primado da liberdade de trabalho e de comércio.

No período compreendido entre 1860 e 1900, o desenvolvimento econômico propiciou, para alguns empresários, a construção de verdadeiros impérios, acentuando ainda mais a diferença de classes. A maximização dos lucros e minimização dos custos contribuíram para a eliminação das pequenas empresas e o fortalecimento dos monopólios.

A liberdade econômica absoluta pressupõe igualdade entre as partes, fato este inexistente nas relações econômicas e de trabalho, o que gerou protestos socialistas defendendo a supressão da propriedade privada do capital e o aparecimento de uma sociedade mais justa e fraterna. O socialismo, em suas diversas espécies117, primava pelo ideal de que a propriedade e o controle dos meios de produção deveriam estar em mãos do Estado.

Como crítica ao liberalismo, destaque-se também a "Doutrina Social da Igreja"

que condenava, entre outras práticas, a cobrança de juros exorbitantes, a usura, a não-valorização da mão-de-obra. Em 1891, o Papa Leão XIII firmou a proposta da Igreja pleiteando uma ampla reforma socioeconômica e de valorização da classe trabalhadora, por meio da publicação da Encíclica Rerum Novarum. Tal posicionamento foi reafirmado em 1931, com a publicação pelo Papa Pio XI da Encíclica Quadragésimo Anno, reconhecendo a função social do capital e

117As conquistas dos trabalhadores ocasionaram cisão no meio socialista, podendo-se destacar as seguintes espécies: a) socialismo de cátedra, surgido na Alemanha em 1872, no Congresso de Eisenach, e caracterizava-se por defender a intervenção do Estado para atenuar os efeitos do liberalismo econômico; b) socialismo científico, cujas bases encontravam-se definidas no Manifesto Comunista, redigido em 1848, e preconizava o afastamento do capitalismo burguês pela violência; c) socialismo utópico, surgido entre os anos 1820 e 1850, orientado por concepções utópicas para a busca de um sistema sócio-econômico ideal; d) socialismo de Estado, defendendo a intervenção direta do Estado na economia; e) socialismo corporativo que pretendia transferir ao estado a propriedade dos meios de produção, deixando para as corporações de classe a direção das industrias; f) socialismo bolchevista preconizando a propriedade coletiva da terra e coletivização dos bens de produção e serviços.

declarando que este nada vale sem o trabalho, da mesma forma que o trabalho sem o capital.

No cenário que se instalou com a Revolução Industrial, surgiu o que se denominou constitucionalismo econômico, que reconhecia entre as funções do Estado a realização da justiça social, propondo a inclusão, em nível de norma constitucional, dos direitos trabalhistas e sociais fundamentais.

Esse novo posicionamento constitucional118 – constitucionalismo econômico – teve como precursoras a Constituição Mexicana de fevereiro de 1917, a Soviética de outubro de 1917 e de Weimar, aprovada em 31 de julho de 1919.

A tendência das constituições posteriores à Primeira Guerra Mundial foi deixar de regular apenas a organização política do Estado, para inserir no seu texto questões socioeconômicas.

De modo geral, as constituições passaram a orientar a organização fundamental do Estado, política, econômica, jurídica e social.

No Brasil, sob a influência da Constituição de Weimar, a Revolução de 1930 buscou estimular a consciência social. Na seqüência, a Constituição de 1934

118CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 3.ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1999. p.333, ao tratar da constituição Português de 1933, que tratou da matéria econômica, sobre o termo constituição econômica explicou: "[...] o termo constituição econômica em seu sentido restrito, ou seja, o conjunto de disposições constitucionais que dizem respeito à conformação da ordem fundamental da economia. A Constituição em estreita conexão com o princípio democrático [ nas suas dimensões política e econômica ] consagrou uma 'constituição econômica' que embora não reproduza uma 'ordem econômica' ou um 'sistema econômico' abstracto e puro é fundamentalmente caracterizada pela idéia de democratização econômica e social. Neste contexto, o âmbito de liberdade de conformação político e legislativa aparece restringida directamente pela Constituição: a política econômica e social a concretizar pelo legislador é uma política de concretização dos princípios constitucionais e não uma política totalmente livre, a coberto de uma hipotética 'neutralidade econômica' da Constituição ou de um pretenso mandato democrático de maioria parlamentar. Por outras palavras: o princípio da democracia social e econômica quer na sua configuração geral, quer nas concretizações concretas, disseminadas ao longo da Constituição, constitui um limite e um impulso para o legislador. Como limite o legislador não pode executar uma política econômica e social de sinal contrário ao imposto pelas normas constitucionais; como impulso, o princípio da democracia econômica e social exige positivamente ao legislador [e aos outros órgãos concretizadores] a prossecução de uma política em conformidade com as normas concretamente impositivas da Constituição."

inseriu em seu texto um capítulo destinado a regular a ordem econômica e social.

Sobre esta influência Alvacir Nicz expõe

A Constituição não chega a ser estabelecida previamente em função da economia mas muitas vezes é condicionante, atuando direta ou indire-tamente no quadro econômico subjacente, de modo a orientar e dirigir aspectos econômicos dentro do Estado.119

As constituições brasileiras que a seguiram120 mantiveram a técnica adotada, estabelecendo as diretrizes e princípios aplicáveis à política social e econômica do País.

A Constituição de 1988 coloca, lado a lado, a livre iniciativa e a valorização do trabalho, dando especial relevância à dignidade da pessoa humana e aos direitos e garantias individuais. E, neste ambiente constitucional, aliado ao novo tratamento dispensado à empresa e ao empresário, individual e coletivo pelo Código Civil de 2002, chega-se à aprovação da Lei n.o 11.101/2005 – Lei de Falência e Recuperação da Empresa.

Para atingir o cerne da tese que se defende, faz-se necessário discorrer sobre a noção de princípios, ressaltando sua importância no ordenamento jurídico, para posteriormente examinar aqueles que regem a atividade econômica e os aplicáveis ao processo.

Na sua obra Teoria do Ordenamento Jurídico, demonstrando a necessidade um exame sistêmico, necessário à compreensão da tese que se defende, Norberto Bobbio afirma que "as normas jurídicas nunca existem isoladas, mas num contexto de normas com relações particulares entre si, que este contexto de normas costuma ser chamado de ordenamento"121. E conclui que a norma

119NICZ, op. cit., p.1.

120Constituições brasileiras que seguiram o modelo das constituições econômicas: Constituição de 1937, Constituição de 1946, Constituição de 1967, Emenda Constitucional n.1, de 1969 e Constituição de 1988.

121BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Polis, 1991. p.19, 49 e 159.

fundamental é responsável pela formação de um conjunto unitário de normas.

Acerca dos princípios, elucida o autor que estes podem ser expressos ou não-expressos. Os princípios não-expressos caracterizam-se como sendo

aqueles que se pode tirar por abstração das normas específicas ou pelo menos não muito gerais: são princípios ou normas generalíssimas, formuladas pelo intérprete, que busca colher, comparando normas aparentemente diversas entre si, aquilo que comumente se chama espírito do sistema.

Robert Alexy, em sua obra "Teoria de Los Derechos Fundamentales", menciona que a distinção entre regras e princípios constitui a chave para a solução dos problemas centrais da dogmática dos direitos fundamentais. Ela é um marco de uma teoria normativo-material dos direitos fundamentais e um ponto de partida para responder às perguntas sobre a possibilidade e os limites da racionalidade no âmbito dos direitos fundamentais, sendo um dos pilares da teoria de aludidos direitos. Ensina que

tanto regras como princípios são normas, pois ambos dizem o dever-ser.

A distinção entre ambos é a distinção entre dois tipos de normas. Dentre os diversos critérios propostos para a sua diferenciação, cita aquele em que os princípios são normas de um grau maior de abstração, enquanto as regras possuem um grau menor de generalidade.122

Entre os critérios que fazem alusão à divisão das normas em regras e princípios, o autor manifesta como correta a que entre elas aponta não só uma diferença gradual, mas também qualitativa, permitindo classificá-los com segurança.

Canotilho123 aponta que os princípios representam papel fundamental no ordenamento jurídico, em face da sua importância estruturante dentro do sistema jurídico.

122ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002. p.81, 86.

123CANOTILHO, op. cit., 3.ed., p.1086.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho acerca da aplicação dos princípios faz alusão ao fato que os juristas os empregam em três sentidos, com alcances diferentes:

Num primeiro seriam supernormas, ou seja, normas (gerais ou generalíssimas) que exprimem valores e que por isso, são ponto de referência, modelo, para as regras que as desdobram. No segundo seriam standards, que se imporiam para o estabelecimento de normas específicas – ou seja, as disposições que preordenam o conteúdo da regra legal. No último, seriam genera-lizações, obtidas por indução a partir de normas vigentes sobre determinada ou determinadas matérias.124

Paulo Bonavides, após exame de diversos conceitos de princípios, ressalta a conceituação formulada por Crisafulli:

A normatividade dos princípios afirmada categórica e precursoramente, nós vamos encontrá-la já nessa excelente e sólida conceituação formulada em 1952 por Crisafull: "Princípio é, com efeito, toda norma jurídica, enquanto considerada como determinante de uma ou de muitas outras subordinadas, que a pressupõem, desenvolvendo e especificando ulteriormente o preceito em direções mais particulares (menos gerais) das quais determinam, e, portanto, resumem, potencialmente, o conteúdo: sejam, pois estas efetivamente postas, sejam ao contrário, apenas dedutíveis do respectivo princípio geral que as contém".125

Ana Paula de Barcellos, tratando da eficácia interpretativa dos princípios, menciona que ela é bastante ampla, em face da inúmeras situações abarcadas por eles, e ressalta

Isso ainda é mais nítido quando se cuida de princípios constitucionais, pois aqui estarão associadas as suas características de norma-princípio com a superioridade hierárquica da própria Constituição. Como conseqüência da eficácia interpretativa, cada norma infra-constitucional, ou mesmo consti-tucional, deverá ser interpretada de modo a realizar o mais amplamente possível o princípio que rege a matéria.126

124FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direito constitucional do trabalho: estudos em Homenagem ao Prof. Amaury Mascaro Nascimento. São Paulo: LTr, 1991. v.1. p.73.

125CRISAFULLI, La Costituzione e lê sue Disposizioni di Principio. Milão, 1952. p.15. apud BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15.ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p.257.

126BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.82.

Luis Roberto Barroso, em alusão aos princípios constitucionais, ensina que:

Passam a ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico.

Eles espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus fins. Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas. De parte disto, servem de guia para o intérprete, cuja atuação deve pautar-se pela identificação do princípio maior que rege o tema apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar a formulação da regra concreta que vai reger a espécie. Estes os papéis desempenhados pelos princípios: a) condensar valores; b) dar unidade ao sistema; c) condicionar a atividade do intérprete.127

Assim, tendo-se a noção conceitual de princípio, passa-se a analisar os fundamentos e princípios específicos da ordem econômica indispensáveis ao desenvolvimento da presente tese.