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SOBRE O(S) OBJETO(S): CECI N’EST PAS LA LANGUE

3.2. Constituição de um dispositivo analítico:

Em nosso estudo, que se inscreve na articulação entre a História das Ideias Linguísticas e a Análise de Discurso, buscamos compreender a constituição dos gestos de interpretação no processo de produção do conhecimento sobre a língua na gramática, tomando como ponto de partida a contradição. Para nós, portanto,

[...] a relação entre esses dois campos tem contribuído de forma ímpar no desenvolvimento de nossas pesquisas e tem nos ajudado a avançar a e na reflexão sobre a importância de se entender de que maneira instrumentos linguísticos elaborados por linguistas estão afetados, de um lado, pelo lugar ocupado por esses sujeitos e, de outro, pelo entendimento do que seja científico na relação teoria e prática (SCHERER, 2012, p. 158).

Inscrito nesse entremeio, o nosso estudo repousa sobre o pressuposto de que o saber sobre a língua apresentado em instrumentos linguísticos não pode ser indiferente ao gesto interpretativo do sujeito, nem às condições históricas. Desse modo, da posição teórica em que nos filiamos, entendemos que a interpretação não está apenas no

objeto de análise, mas também no próprio gesto de quem analisa. Colocamo-nos avessos à pretensão da objetividade e à negação de nosso próprio gesto de interpretação; em contrapartida, assumimos um posicionamento teórico que nos permite constituir um dispositivo de leitura capaz de explicitar as posições e os gestos de interpretação face a um texto, pois, segundo Orlandi (2005 [1999], p. 61), “o que se espera do dispositivo do analista é que ele lhe permita trabalhar não numa posição neutra mas que seja relativizada em face da interpretação”. Desse modo, segundo a autora, a interpretação é constitutiva do objeto de análise e também do gesto e do dispositivo teórico do analista, de forma que não há como contorná-la ou dela fugir. A partir desse olhar sobre a interpretação, questionamos a objetividade e o distanciamento do sujeito na produção do conhecimento, pois entendemos que:

[...] no próprio texto, em sua constituição, há gestos de interpretação que mostram a ou as posições do sujeito que produziu. Compreender significa então explicitar os gestos de interpretação feitos pelo sujeito, gestos inscritos no texto. “Gesto”, aqui significa ato no domínio simbólico (PÊCHEUX, M. 1969), o que ao mesmo tempo distancia a questão do sentido tal como é tratado na pragmática e valoriza material do símbolo (ORLANDI, 2012, p. 171).

Nesse sentido, é importante destacar que o gesto de interpretação do analista é orientado por um dispositivo teórico enquanto o gesto do sujeito, e esse sujeito, entendido aqui como categoria discursiva, é determinado por um dispositivo ideológico. Isto quer dizer que estamos compreendendo que o sujeito não reconhece o seu próprio gesto de interpretação, uma vez que, ao ser interpelado pela ideologia, identifica-se com um dado discurso cujo sentido parece-lhe natural e evidente. A posição do analista caracteriza-se por construir um dispositivo de análise que permite compreender o movimento da interpretação, o que significa que “ele não se coloca fora da história, do simbólico ou da ideologia. Ele se coloca em uma posição deslocada que lhe permite contemplar o processo de produção de sentidos em suas condições” (ORLANDI, 2005 [1999], p. 61). Reconhecer o lugar da interpretação é compreender o sentido e o sujeito como um processo e não como uma evidência.

Desse modo, o analista constrói um dispositivo analítico a partir da questão que se coloca face aos materiais de análise que constituem o corpus da pesquisa. A delimitação do corpus também obedece a critérios teóricos, uma vez que “decidir o que

faz parte do corpus já é decidir acerca de propriedades discursivas” (ORLANDI, 2005 [1999], p. 63). Dessa forma, a delimitação do corpus e a constituição do objeto não são alheios ao gesto interpretativo, nem à posição teórica do analista. O próprio gesto de delimitar o corpus já é orientado pela perspectiva teórica em que o analista se situa, pois:

[...] descrever e interpretar um conjunto textual é se interrogar sobre o seu funcionamento, colocando em jogo forma e sentido, forma e função; é, por consequência, entender as suas regularidades, mas também as suas variações semânticas, funcionais, retóricas, em síntese, suas variações discursivas. Isso supõe um gesto de interpretação, que parte de uma observação construída de um corpus inicialmente exploratório, depois mais e mais elaborado, a partir de um aparato teórico de interpretação (SCHERER, 2006, p. 13).

Uma vez definido o corpus, é preciso passar da superfície linguística, que é o material bruto tal como é recortado, para o objeto discursivo, o que significa que é preciso:

[...] converter a superfície linguística (o corpus bruto), o dado empírico, de um discurso concreto, em um objeto teórico, isto é, em objeto linguisticamente de- superficializado, produzido primeira abordagem analítica que trata criticamente a impressão de “realidade” do pensamento, ilusão que sobrepõe palavras, ideias e coisas (ORLANDI, 2005 [1999], p. 66).

Esse processo de de-superficialização, segundo Orlandi (2005 [1999]), incide sobre a própria materialidade linguística, com base em questionamentos que reportam a uma exterioridade linguística e vão ser direcionados para o objeto discursivo, tais como: quem diz, para quem diz, o que diz, como diz, em que circunstâncias, etc. Esses questionamentos contribuem para compreender o jogo entre as formações imaginárias que são projetadas no discurso. Além disso, faz-se necessário também relacionar o que é dito nesse discurso com o que é dito em outro lugar, em outras circunstâncias, a fim de desconstruir o efeito de naturalização do que é dito pelo sujeito. A transformação da superfície linguística em objeto discursivo permitirá ao analista compreender como um objeto simbólico produz sentidos. Dessa forma, Orlandi (2005 [1999]) considera que:

[...] inicia-se o trabalho de análise pelo corpus, delineando-se seus limites, fazendo recortes, na medida mesma em que se vai incidindo um primeiro trabalho de análise, retomando-se conceitos e noções, pois a análise de

discurso tem um procedimento que demanda um ir-e-vir constante entre teoria, consulta ao corpus e análise. Esse procedimento dá-se ao longo de todo o trabalho (ORLANDI, 2005 [1999], p. 67, grifos nossos).

Uma vez definido o objeto discursivo, então é possível desenvolver a análise, de forma a buscar inscrever o objeto em um processo discurso, pois as palavras não significam em si mesmas, mas a partir da relação que se estabelece entre elas. Segundo a autora, nessa outra passagem, agora do objeto para o processo discursivo, é possível também delinear as formações discursivas em que o objeto discursivo inscreve-se e compreender como se constitui o sentido e como a ideologia materializa- se na língua. Desse modo, temos então um percurso que tem início na língua para chegar ao discurso, passando por três etapas analíticas:

Superfície linguística Objeto Discursivo/Teórico Processo Discursivo

É nessa medida que entendemos a relação entre a base (linguística) e o processo (discursivo). Processo discursivo deve ser entendido como “sistema de relações de substituição, paráfrases, sinonímias etc., que funcionam entre elementos linguísticos – ‘significantes’ – em uma formação discursiva dada” (PÊCHEUX, 2009 [1988], p. 148). Consideramos também que as palavras não significam por si mesmas, mas significam em relação a outras palavras, a outros dizeres já-ditos e esquecidos e em relação àquilo que não é dito. Courtine (2009) ressalta ainda que “se os processos discursivos constituem a fonte da produção dos efeitos de sentido no discurso, a língua, pensada como uma instância relativamente autônoma, é o lugar material onde se realizam os efeitos de sentido” (p. 32). Posto isso, compreendemos que a ideologia tem uma materialidade, e ela se materializa na língua através de mecanismos discursivos que geram a evidência do sentido.

Mobilizamos o conceito de recorte tal como propõe Orlandi (1984, p. 14), para designar uma unidade discursiva, isto é, “fragmentos correlacionados de linguagem-e- situação. Assim, um recorte é um fragmento da situação discursiva”. O recorte está vinculado à definição de texto como o todo em que se organizam os recortes. Nesse sentido, a autora distingue recortar de segmentar, principalmente quanto ao aspecto

sintático, na medida em que o conceito de recorte estabelece uma relação das partes com o todo que constitui o texto, de forma que a sua organização não segue o esquema sintático da segmentação da frase em Sujeito-Verbo-Objeto. A relação dos recortes entre si estabelece-se de forma não linear e não organizada previamente, e as retomadas e as repetições, por sua vez, não seguem esse esquema. O exemplo dado pela autora (X: Maria apanha do marido; Y: As mulheres vão ter de lutar muito para mudar um pouco essa herança histórica) cumpre o papel de ilustrar a não-linearidade do processo discursivo; por ele, Orlandi (1984) questiona não só a linearidade, mas também o processo de retomada e reformulação, o qual não se dá de palavra por palavra, nem de forma paralela.

Nos recortes que selecionamos para compor o corpus da nossa pesquisa, analisaremos como se constitui a relação de contradição a partir das diferentes tomadas de posição do sujeito gramático ao produzir conhecimento sobre a língua. Desse modo, cabe explicitar que entendemos como tomada de posição do sujeito a relação determinada que se estabelece em uma formulação entre um sujeito enunciador e o sujeito do saber de uma dada formação discursiva. Essa relação é uma relação de identificação cujas modalidades variam, produzindo efeitos-sujeito no discurso. A partir das noções de modalidades de funcionamento subjetivo (o bom, o mau e o feio), propostas por Pêcheux, explicitaremos como o sujeito constitui-se enquanto tal e toma uma dada posição ao produzir conhecimento sobre a língua. Interessa-nos, sobretudo, a relação de contradição que se estabelece entre essas tomadas de posição. Desse modo, trata-se de compreender como esses outros saberes são linearizados no fio do discurso, instaurando a relação de contradição. A noção de discurso-transverso permite expor como uma determinada memória é retomada através do processo de articulação, produzindo um atravessamento dos elementos do interdiscurso na ordem do discurso pelo retorno do já-dito.