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PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

1.4. Gramática e interdiscurso, definição e contradição

Em nossa dissertação de mestrado, desenvolvemos um estudo sobre a definição na gramática, quando nos dedicamos a compreender como uma dada definição torna- se uma formulação singular que passa a fazer parte do interdiscurso. Desse modo, procuramos refletir como a definição contribui para que a gramática constitua-se como um espaço de saber estabilizado – que aparenta ser a-histórico –, onde parece não haver lugar para a interpretação.

Esse efeito de estabilidade do saber produzido na gramática, que parece ser da ordem da repetibilidade pode ser entendido como efeito da determinação do interdiscurso no discurso do sujeito gramático, dada a posição que ele ocupa na gramática. Considerando que todo sujeito não enuncia senão de uma dada posição ideológica, ele está determinado a dizer e a pensar aquilo que não pode deixar de dizer e pensar. A posição-sujeito gramático, portanto, está determinada historicamente de forma que os elementos do interdiscurso são reinscritos no discurso do sujeito, o qual, pelos esquecimentos, acredita ser a origem do seu discurso. Trata-se, pois, de uma identificação com a forma-sujeito de uma dada formação discursiva, que produz um efeito de transparência do sentido, dissimulando o interdiscurso que faz o discurso do sujeito significar.

Desse modo, é preciso considerar dois aspectos que constituem a gramática enquanto tal e que podem contribuir para produzir esse efeito de estabilidade, que são: a) “o conteúdo das gramáticas é relativamente estável: ortografia/fonética (parte opcional), partes do discurso, morfologia (acidentes da palavra, compostos, derivados), sintaxe (frequentemente muito reduzida: conveniência e regime), figuras de reconstrução” (AUROUX, 1992, p. 67).

b) “entre todas as disciplinas científicas, a gramática é sem dúvida a que possui o

gramaticais, e, mais especialmente, das classes de palavras ou partes do discurso” (AUROUX, 1992, p. 101).

Especificamente no caso da gramática do português no/do Brasil, desde a implementação da NGB (1959), a gramática brasileira passou a ser dividida em três grandes partes, a fonética, a morfologia e a sintaxe. No entanto, nem todas as gramáticas limitam-se a essas três partes, tampouco seguem essa ordem. Dentro dessas grandes partes, a gramática subdivide-se em uma categorização das unidades que, por sua vez, subdividem-se em sucessivas classificações. Os termos teóricos mostram-se pouco variáveis, sobretudo, após a implementação da NGB (1959), enquanto as definições apresentam variações, isto é, efeitos parafrásticos que permitem inscrever tal enunciado como próprio do domínio de saber do gramático.

Além disso, é preciso considerar que a gramática, assim como o dicionário, é uma obra para consulta e apresenta uma organização peculiar que não se assemelha às obras para leitura, isto é, não se trata de um texto que apresenta uma leitura linear com início, meio e fim. Desse modo, enquanto instrumento de consulta, os enunciados apresentam-se de forma concisa, e a definição é uma das formulações mais recorrentes, por produzir um efeito de guardar em seus limites o sentido da palavra. Nesse sentido, a própria organização da gramática parece determinar o discurso do sujeito, de forma que, uma vez inscrito na posição-sujeito gramático, ele está determinado pelo próprio discurso.

A gramática, enquanto instrumento linguístico, parece exercer uma coerção sobre o sujeito, não só o sujeito gramático – aquele que produz conhecimento sobre a língua e tem seu discurso determinado pela posição-sujeito que ocupa –, mas também o sujeito falante – aquele que consulta a gramática/o dicionário como instrumento como parâmetro de “bem falar” e “bem escrever”. Segundo Auroux (1992), a ausência de intervenções tecnológicas, sobretudo a ausência da cultura escrita, contribui para um acentuado nível de variações linguísticas. É por esse viés que o autor afirma que “a gramatização, geralmente se apoiando sobre uma discussão do que seja o ‘bom uso’ vai reduzir essa variação” (AUROUX, 1992, p. 69, grifos do autor).

Desse modo, cabe ressaltar que, no presente estudo, nos interessa compreender esse instrumento linguístico na forma de conhecimento produzido por um sujeito, não

como um objeto acabado. Interessa-nos a constituição do sujeito gramático na sua relação com a produção do conhecimento.

A definição na gramática, tal como a compreendemos em nosso estudo de dissertação, constitui-se uma formulação singular que historiciza um dado gesto interpretativo e o inscreve na ordem do interdiscurso. Através do processo de retomada e citação, uma dada definição pode ser constantemente retomada no fio do discurso ao ser (re)significada e (re)definida pelo processo de reformulação e paráfrase. Desse modo, esse deslocamento de uma formulação a outra permite o jogo da metáfora, produzindo um deslizamento de sentido.

Tendo em vista, segundo Orlandi (2005 [1999]), que o trabalho do analista é explicitar os mecanismos de funcionamento do discurso para compreender a produção dos sentidos, pode-se, por meio da noção de efeito metafórico, distinguir quais gestos de interpretação estão constituindo os sentidos. Pêcheux (1997 [1969], p. 96, grifos do autor) chama de “efeito metafórico o fenômeno semântico produzido por uma substituição contextual, para lembrar que esse ‘deslizamento de sentido’ entre x e y é constitutivo do sentido designado por x e y”. Esse dispositivo analítico permite ao analista descrever a passagem de uma formulação a outra, apontando os deslizamentos de sentido determinados por gestos interpretativos. Entretanto, é preciso destacar que a passagem de uma formulação a outra não se dá apenas por uma única substituição, mas por uma série de efeitos metafóricos. Desse modo, a partir dessa noção, em nosso estudo de dissertação procuramos explicitar como a definição atribuída à designação “sintagma” foi sendo constantemente retomada e (re)definida a cada (re)formulação e, desse modo, singularizada pelo gesto interpretativo do sujeito.

A par dessa reflexão, compreendemos que a definição na gramática constitui-se uma formulação singular que assegura um dado gesto interpretativo do sujeito, deixando de ser apenas mais uma formulação qualquer no processo discursivo e passando a fazer parte do interdiscurso. Dando continuidade à reflexão já iniciada sobre o processo de produção do conhecimento na gramática, no presente estudo de tese, nossa proposta é compreender como se constitui o funcionamento da contradição

que se estabelece entre as diferentes tomadas de posição do sujeito gramático. Desse

um dado saber que é colocado em confronto com a tomada de posição com a qual sujeito se identifica. É importante ressaltar que a contradição que estamos considerando não se estabelece entre dois sujeitos, mas entre duas posições de sujeito de uma dada formação discursiva, o que pressupõe que não se trata de um confronto individual, mas de um confronto que se estabelece entre práticas discursivas. Além disso, também não se trata de posições antagônicas, onde uma seria o avesso/contrário da outra, mas de uma contradição que é desigual e dissimétrica em relação a si mesma.

A fim de explicitar como se estabelece a relação de contradição entre as tomadas de posição do sujeito gramático, mobilizamos, principalmente, as noções de discurso-transverso e as modalidades de funcionamento subjetivo. Tendo em vista que a contradição constitui-se pela relação entre duas tomadas de posição do sujeito diferentes, consideramos a noção de discurso-transverso para explicitar como se estabelece a relação de contradição por meio do processo de articulação e encadeamento de saberes que são linearizados no fio do discurso. A reflexão proposta por Pêcheux (2009 [1988]) sobre as modalidades de funcionamento subjetivo permite- nos explicitar as tomadas de posição do sujeito e as divergências em relação à forma- sujeito do discurso tal como ela se dá na gramática.

PARTE 2