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Constituição do texto sincrético e análise semiótica

Capítulo VI: A Análise

6.1. Descrição do objeto

6.2.3. Constituição do texto sincrético e análise semiótica

A nossa análise parte do texto verbal para o texto não-verbal, sendo que no texto verbal temos o título A Vida como ela é... e O Homem fiel e outros contos.

O uso de “outros contos” é comum no que podemos chamar de “tradição editorial” e desta forma podemos pensar que nada acrescenta ao texto, restando- nos apenas o título do conto “O homem fiel”.

Resumidamente, o conto18 tem como tema a fidelidade, como o título indica. Malvina, uma moça católica e atormentada pelo medo de ser traída, namora Simão, asmático e ateu. Antes de Simão, Malvina havia namorado Quincas, um jovem de porte atlético e esbelto, porém infiel. Embora ela o amasse muito, sua infidelidade fez com que Malvina desistisse de se casar com ele.

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Durante o namoro de seis meses com Simão, Malvina foi convencida por ele que jamais a trairia: “Quando eu me casar, hei de ser fiel. Mas podes ficar certa: - como tudo o mais, a minha fidelidade há de ser de fundo asmático (...) O asmático é o único que não trai!” (RODRIGUES, 2001. p.170).

Ficaram noivos e durante o noivado, numa das crises de Simão, Malvina teve a confirmação de que um asmático não poderia mesmo ter amantes: Simão ficava imprestável. Gabava-se com as amigas: “Descobri que o marido doente é uma grande solução. Pelo menos, não anda em farras!” (Ibidem, p.171). O noivado seguiu morno, sem grandes beijos e tentações, pois um novo médico havia recomendado a Simão moderação nas emoções. O amor poderia provocar uma crise.

No dia das bodas, após o enlace, Simão teve uma crise e a asma o impediu de consumar o casamento. E assim foram os quinze dias subseqüentes.

No décimo sexto dia, Simão disse à Malvina: “Descobri, minha filha, que o beijo provoca asma. Vamos rifar o beijo!” (Ibidem, p. 173). Malvina concordou, mas três dias depois, telefonou a Quincas, seu antigo namorado, marcando, para o dia seguinte, um encontro amoroso em um apartamento em Copacabana.

O conto revelou-se extremamente importante para nossa análise. É ele que nos propõe a temática do livro e respectivamente da sua capa. Percebemos que o homem fiel, realmente é fiel, mas por ser doente. Como conseqüência de sua doença, sua mulher, que a princípio tinha horror ao adultério, acaba se revelando adúltera. Assim compreendemos a princípio que, se o homem que é fiel é doente

(asmático), ser fiel não é natural, é uma doença. Ser infiel é o normal, é o estada esperado.

Desta forma cria-se uma regra, confirmada por Ruy Castro, na contra-capa do livro, de que numa relação amorosa entre homem e mulher, um deles deve ser adúltero: “o casal típico – e, de certa forma, perfeito – compunha-se do marido, da mulher e do amante” (Ibidem, orelha direita).

Se na capa temos o homem fiel no plano verbal, temos então, por uma oposição pressuposta, a mulher infiel no plano não-verbal. O tema da infidelidade está condensado nessa relação homem-mulher e a leitura do conto só confirma essa impressão.

Se em nossa cultura a infidelidade é condenada pela religião e pela moral, vemos que se trata, aqui, de um tema certamente obscuro. O próprio Nelson Rodrigues disse, numa entrevista (CASTRO, 1997, p.238-239) que A vida como ela é... era uma coluna triste e que a pessoa que só reconhece a face rósea da vida e ignora a face negra, é uma pessoa mutilada. E é isso que parece haver nesses contos. Tudo o que é ignorado nos lares das boas famílias brasileiras, aqui, vem à tona. A moça jovem e tensa da capa, de classe média, cercada pela escuridão, condensa em si, de maneira muito peculiar, essa face negra da qual nos fala Nelson, revelando toda a sordidez da infidelidade19.

Não é à toa que a frase A vida como ela é... venha acompanhada de reticências. Elas permitem que o enunciatário se torne narratário. Essas palavras, intencionalmente não ditas, seriam as situações que Nelson desenvolvia em suas

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Podemos lembrar, por exemplo, de um outro texto de Nelson, muito famoso, que trata este tema da mesma maneira, e que também faz parte do livro que analisamos: “A dama do lotação”.

histórias: o lado obscuro e triste da vida. Mas Nelson não inventava nada, ele apenas observava a realidade e a reproduzia em suas crônicas. Ele fazia, como Sábato Magaldi (1998, p.23) diz, “o retrato sem retoques do indivíduo”

Ainda no conto, temos um Simão caracterizado pela “sinceridade brutal e desenfreada”. A partir dessa sinceridade surge o tema da fidelidade. É ele quem diz que, quando se casar, será fiel, despertando em Malvina a excessiva preocupação com a fidelidade. Mas no fim do conto, descobrimos que é ela que, pela ausência do marido, deixa de ser sincera e torna-se infiel. A idéia de sinceridade está intimamente ligada à idéia de fidelidade: o fiel é sincero.

A isotopia da fidelidade surge não apenas pela repetição de lexemas como fidelidade ou fiel. O campo semântico dos próprios títulos gira em torno da relação homem-mulher, marido-esposa. Há homogeneidade no livro: a isotopia da fidelidade e da relação conjugal é formada já a partir dos títulos: Casal de três, Para sempre fiel, A mulher do próximo, O marido sanguinário, Ciumento demais, O marido silencioso, Um chefe de família, Marido fiel, A futura sogra, O homem fiel, A esposa humilhada, Os noivos. Mesmo sem ler os contos todos e tendo como base apenas a capa do livro em questão, já podemos perceber essa isotopia.

Para que possamos reconhecer que semanticamente a capa e o conteúdo do conto (e do livro) são equivalentes, comprovando o fenômeno de condensação da temática do livro em sua capa, podemos tentar demarcar como essas características da mulher infiel se manifestam na figura feminina da capa. O nível figurativo, para ser compreendido, precisa estar ligado a um tema. Dessa forma confirmamos que a seriedade, o mistério, a tensão, presentes na moça da capa

somados ao seu olhar perdido e reticente, parece justamente confirmar certos traços comuns a uma adúltera em potencial.

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