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2 CAPÍTULO I – HISTÓRIA E CONTEXTUALIZAÇÃO: FEMININOS E

4.1 Constituição e garantia dos direitos humanos

É!

A gente quer viver pleno direito, a gente quer é ter todo respeito, a gente quer viver numa nação, a gente quer é ser um cidadão! É...

(É - Gonzaguinha)

Há pouco mais de cem anos, defendia-se que a escravidão era algo “natural” prevalecendo a noção de que “ser pessoa e ter direitos” dependia de certas condições (BENEVIDES, 2007). 400 anos de escravidão é uma herança muito pesada, o que reflete até os dias atuais, onde prevalecem noções muito semelhantes a este passado não muito distante. Assim, os direitos humanos constituem-se como uma expressão moderna de uma conquista da civilização, mas sua cultura possui raízes distantes, para além da modernidade (MAUÉS e WEYL, 2007, p. 103).

O período da segunda guerra mundial, por exemplo, foi um divisor de águas na história dos direitos humanos, justamente devido à acentuada ocorrência de violação destes direitos. Após esse período, com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945 e com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) em

1948, desencadeou-se uma sucessão de instrumentos e mecanismos legais na busca pela garantia dos direitos humanos, como pode ser contemplado no capítulo anterior.

Na América Latina, a experiência das ditaduras militares também foi um fator que levou a mobilização da sociedade para a defesa dos direitos humanos (MAUÉS e WEYL, 2007). “No caso do Brasil, o enfrentamento ao autoritarismo e a reorganização da sociedade civil ocorreu ainda em plena ditadura através das lutas em defesa dos direitos humanos” (VIOLA, 2007, p. 127).

O pensamento moderno restaurou a dimensão humana da política e esse resgate consigna o nascimento da versão contemporânea de direitos humanos (MAUÉS e WEYL, 2007, p.104). Nessa lógica, Benevides (2007) afirma que direitos humanos são aqueles comuns a todos, que decorrem do reconhecimento da dignidade intrínseca de todo ser humano, sendo caracterizados como naturais, universais e, ao mesmo tempo, históricos. Do ponto de vista histórico, a autora aborda fases da história em que os direitos humanos são reconhecidos, explicando que há uma distinção a qual comporta três momentos, isso é, três dimensões dos direitos humanos, que podem ser subdivididos da seguinte forma: a primeira dimensão é a das liberdades individuais ou dos direitos civis; a segunda dimensão é a dos direitos sociais, marcados pelas lutas dos trabalhadores; a terceira dimensão é a dos direitos coletivos da humanidade, desta e das gerações futuras – direitos sem fronteiras (BENEVIDES, 2007).

Na multiplicidade dos direitos humanos, Tosi (2004) elucida que esse conjunto de direitos implica em dimensões ética, política, jurídica, econômica, social, histórica, cultural e educativa, as quais devem estar interligadas e indissociáveis. Silveira (2007) corrobora trazendo que a formulação dos direitos humanos, emergente a partir do século XX, se distingue das elaborações anteriores, pois abarca uma universalidade que se postula para toda espécie humana, além de sistematizar uma perspectiva mais ampla dos direitos, indo além das experiências liberais e das lutas socialistas, corporificada nos seus princípios de universalidade, integralidade, interdependência, indivisibilidade e inviolabilidade, expressando-se através de uma cultura que deve tranversalizar as particularidades culturais.

Os direitos humanos são fruto de uma história. Ainda que existam discordâncias sobre o início desta história, é possível reconstruir a trajetória dos direitos humanos na cultura ocidental tomando por base dois ângulos de análise: a história social que enfatiza os acontecimentos, lutas, revoluções e movimentos sociais, que promoveram os direitos humanos, e a história conceitual que se debruça sobre as doutrinas filosóficas, éticas, políticas,

religiosas que influenciaram e foram influenciados pelos acontecimentos históricos (TOSI, 2004, p. 9, grifo do autor).

Maués e Weyl (2007) sugerem que a consagração moderna de direitos humanos tem origem na emergência do conceito de um Estado soberano, aquele a quem todos devem obediência e que ele próprio não deve obediência a ninguém. O Estado brasileiro encontra sua máxima na Constituição Federal de 1988 que materializa toda a supremacia das Leis, e como lembram Maués e Weyl (2007) representa também um marco histórico para os direitos humanos, haja vista que um dos papeis fundamentais que é atribuído as Constituições democráticas é o estabelecimento e o desenvolvimento de uma cultura dos direitos humanos.

Para lograr tais objetivos, a pauta mais importante estabelecida por essa Constituição é a que trata dos direitos fundamentais. “Ao reconhecê-los como direitos inalienáveis de todos os cidadãos e cidadãs, o Estado incorpora o conteúdo dos direitos humanos ao seu ordenamento jurídico e se compromete a dispor de um conjunto de meios e instituições para garanti-los” (MAUÉS e WEYL, 2007, p. 109).

Logo no Título I, observando-se do primeiro ao quarto artigo, a Constituição estabelece entre os fundamentos do Estado Democrático de Direito: a dignidade da pessoa humana, a cidadania e o pluralismo político, determinando como objetivos do Estado a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, além de estabelecer a prevalência dos direitos humanos como um princípio reitor das relações internacionais do Estado (BRASIL, 1988). No seu Título II, entre os artigos 5 a 17, é possível visualizar um desmembramento dos direitos fundamentais em cinco capítulos, sendo definidos com as seguintes terminologias: Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, Dos Direitos Sociais, Da Nacionalidade, Dos Direitos Políticos, Dos Partidos Políticos (BRASIL, 1988).

Maués e Weyl (2007), afirmam que os direitos humanos ou direitos fundamentais abrangem a esfera privada, a ordem social e a ordem política, podendo ser separados em duas categorias: a primeira seria composta pelos direitos de defesa ou proteção, na qual o Estado deve abster-se de praticar atos que violem os direitos humanos. Nesse caso, na ocorrência de alguma ação inconstitucional por parte do Estado, os autores explicam que caberia acionar o Poder Judiciário para que este determine ao poder público que se abstenha de praticar ou continuar praticando tais ações. A segunda categoria que contempla os direitos humanos ou fundamentais, segundo Maués e Weyl (2007), traz em seu escopo os direitos a prestações, onde o Estado deve adotar medidas e por em

prática um conjunto de ações para promovê-los.

Nessa dinâmica, o caráter institucional das garantias dos direitos a prestações, corresponde especialmente aos poderes Legislativo e Executivo, os quais devem planejar e implementar as medidas necessárias, de modo que ao poder legislativo cabe a feitura de leis e ao poder executivo cabe a regulamentação dessas leis e a garantia de seu cumprimento (MAUÉS e WEYL, 2007). Além disso, ainda há a força dos tratados nos quais o Estado brasileiro assume responsabilidade perante a comunidade internacional ao cumprimento de um conjunto de obrigações em relação aos direitos humanos.

No funcionamento desse sistema, que é regido pela Constituição Federal através dessa engrenagem denominada de Estado, os direitos humanos deveriam ser garantidos e serem consolidados de modo universal. Contudo, há de se reconhecer que há muitos limites para que o Judiciário consiga obrigar e garantir que o Estado vá promover políticas universalistas. Ademais, convém destacar que o processo de globalização da economia também coloca novos desafios para a concretização dos direitos humanos (MAUÉS e WEYL, 2007).

Silveira (2007), explana que entre um horizonte universalizante e práticas pretensamente universalizantes, há uma cultura burguesa ocidental que deixa esta universalização mais longe ainda. Nessa conjuntura, a autora atenta para o fato que a questão dos direitos humanos no mundo globalizado comporta duas vertentes, sendo uma hegemônica e outra contra hegemônica.

Ainda quanto ao princípio da universalidade e garantia dos direitos humanos, Flores (2007), alerta que a armadilha do universalismo reside na existência de uma materialidade capitalista e imperialista que está muito além da universalidade. Nesse norte, um dos temas mais candentes, senão o principal dos direitos humanos, diz respeito às possibilidades de seu alcance espaço-cultural, ou em outros termos, ao “princípio de sua universalidade” (SILVEIRA, 2007, p. 245).

Em concordância com Viola (2007), a questão dos direitos humanos apresenta-se como um fenômeno multifacetado e se evidencia nas primeiras propostas de superar a desigualdade, todavia, convém salientar que sua origem e fonte se situam em nações que são centro do capitalismo, nas mesmas nações que os negavam para os povos de regiões colonizadas. “O inegável, quando se pensa as questões dos DH, é reconhecer que convivemos com discursos distintos quando se trata da defesa dos direitos humanos” (VIOLA, 2007, p. 125).

De todo modo, as questões dos direitos humanos no Brasil têm acompanhado os movimentos sociais em busca da real democratização da sociedade, propondo a construção de uma cultura de participação, na qual a comunidade não pode ser substituída pela dinâmica formalista da escolha, com representantes preocupados apenas com questões normativas (VIOLA, 2007). Dessa maneira:

Os movimentos sociais assumem a defesa dos direitos humanos como bandeira universal, com propostas de ação política, emancipada e autônoma, que pressupõe transformar o Estado convertendo-o em organismo de defesa dos interesses dos dominados. O que significa um Estado capaz de romper com as práticas clientelistas tradicionais e superar os limites impostos pela herança da legislação do período autoritário (VIOLA, 2007, p. 131).

Nesse embate, o adversário não é mais a ditadura do tipo militar, mas a ditadura através de um sistema econômico que se preocupa somente com os que dele se beneficiam, ao invés de buscar a possibilidade de construir a justiça social (VIOLA, 2007). Não só a ditatura toma novos contornos, como a escravidão, que decorre do sistema capitalista, o qual reproduz uma violência menos implícita, mas não menos intensa, tornando as pessoas meros instrumentos de acumulação de capital, dispondo da sua força de trabalho, as explorando e tornando alvo de uma violência extremada que conta com o amparo de um Estado burguês, que permite que classes dominantes (burguesia) escravizem e criminalizem classes populares (trabalhadores, mulheres, negros, indígenas, imigrantes, pobres, dentre outros).

Estigmatizando os direitos humanos e mantendo intactos os privilégios de uma “nova nobreza” criada pelo capitalismo, quando se afirma sobre a universalidade dos direitos humanos, é preciso reconhecer a necessidade de promoção e garantia dos direitos humanos através da organização popular pela base, afirmando-se também a possibilidade de intervenção, controle externo e questionamento da dita soberania nacional (BENEVIDES, 2007).

Pode-se pensar que para além das conquistas dos direitos civis e políticos a conquista dos direitos sociais e econômicos esbarra com outra dimensão, na medida em que seu adversário histórico é um sistema concentrador de rendas (VIOLA, 2007). Assim, os direitos humanos aparecem como alternativa para buscar e exigir que o Estado consiga suprir essas urgências da sociedade, que não se esgotarão se não forem combatidas com a pressão social organizada. Formar uma lógica de respeito à dignidade humana e aos direitos humanos, significa a busca de uma mudança econômica, social e cultural. A luz

de Benevides (2007, p. 348), “os direitos humanos terão sempre, nas sociedades contemporâneas, a dupla função de ser, ao mesmo tempo, crítica e utopia frente à realidade social”.

Pode-se considerar que os direitos humanos são fruto de uma tradição histórica, de uma construção humana que não se trata simplesmente de uma doutrina “teórica”, mas de uma doutrina “prática”, a qual conta com instrumentos e mecanismos para garantir juridicamente sua proteção (TOSI, 2004). Nesse paradoxo, as discussões e decisões jurídicas em torno da temática do gênero tecem o espectro dos direitos humanos, através de uma caminhada onde a Lei Maria da Penha merece notoriedade, haja vista que ela reflete, ao menos de modo teórico, os ideais e os princípios do viés dos DH. Assim sendo, ainda parece importante pontuar alguns aspectos a respeito desta convergência entre direitos humanos e gênero.