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2 CAPÍTULO I – HISTÓRIA E CONTEXTUALIZAÇÃO: FEMININOS E

3.2 Entendendo a Lei Maria da Penha

Comigo não, violão Na cara que mamãe beijou "Zé Ruela" nenhum bota a mão Se tentar me bater

Vai se arrepender Eu tenho cabelo na venta E o que venta lá, venta cá Sou brasileira, guerreira Não tô de bobeira Não pague pra ver

Porque vai ficar quente a chapa...

Você não vai ter sossego na vida, seu moço Se me der um tapa

Da dona "Maria da Penha" Você não escapa

O bicho pegou, não tem mais a banca De dar cesta básica, amor

Vacilou, tá na tranca

Respeito, afinal, é bom e eu gosto Saia do meu pé

Ou eu te mando a lei na lata, seu mané Bater em mulher é onda de otário Não gosta do artigo, meu bem Sai logo do armário

Não vem que eu não sou

Mulher de ficar escutando esculacho Aqui o buraco é mais embaixo

A nossa paixão já foi tarde Cantou pra subir, Deus a tenha Se der mais um passo

Eu te passo a "Maria da Penha" Você quer voltar pro meu mundo Mas eu já troquei minha senha Dá linha, malandro

Que eu te mando a "Maria da Penha" Não quer se dar mal, se contenha Sou fogo onde você é lenha Não manda o seu casco

Que eu te tasco a "Maria da Penha" Se quer um conselho, não venha Com essa arrogância ferrenha Vai dar com a cara

Bem na mão da "Maria da Penha" (Maria da Penha - Alcione)

Para dar continuidade à revisão bibliográfica que dá embasamento a esta análise, nesse momento será descortinado o texto disposto na Lei Maria da Penha, fazendo uma retomada de como seus artigos são estruturados, trazendo trechos da legislação e esclarecendo a forma com que se dá a aplicação prática desta Lei, que em consonância com os documentos anteriormente elencados, atua por meio de uma rede de atendimento às mulheres vítimas de violência. Essa rede de atendimento, que materializa a relação do Estado com a Lei Maria da Penha, possui nuances específicos de acordo com cada estado e município e será desdobrada no subtítulo posterior, tomando como foco a cidade de João Pessoa.

Como mencionado acima, a Lei nº 11.340, foi aprovada em 7 de agosto de 2006 pela Câmara dos Deputados do Brasil, dispondo sobre mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Calazans e Cortes fazem um balanço geral, indicando:

A Lei Maria da Penha reafirmou os serviços existentes e previu a criação de novos, perfazendo o total de onze serviços: i) casas abrigo; ii) delegacias especializadas; iii) núcleos de defensoria pública especializados; iv) serviços de saúde especializados; v) centros especializados de perícias médico-legais; vi) centros de referência para atendimento psicossocial e jurídico; vii) Juizados de violência doméstica e familiar contra as mulheres; viii) equipe de atendimento multidisciplinar para auxiliar o trabalho dos Juizados; ix) núcleos especializados de promotoria; x) sistema nacional de coletas de dados sobre violência doméstica; e xi) centros de educação e de reabilitação para os agressores (CALAZANS e CORTES, 2011, p. 58).

Nesse sentido, caracterizando o papel da Lei Maria da Penha no contexto pessoense, a partir da percepção da ativista Margarida Maria Alves:

A Lei Maria da Penha, ela conseguiu popularizar essa discussão da violência contra as mulheres no Brasil, acho que ela chegou, provocou um debate em torno da mudança de comportamento e mentalidade do patriarcado, no poder dos homens sobre as mulheres, o poder do macho. [...] Isso provocou, a priori, promoveu essa coisa de trazer pra essa roda que esse homem, ele não é dono dos corpos das mulheres, que as relações afetivas elas não são relações que podem cotidianamente tá sendo permeadas por diferentes tipos de violência. Acho que teve essa ruptura e essa popularização (ENTREVISTA 1 – MARGARIDA MARIA ALVES).

Organizada em VII títulos e desdobrada em 46 artigos, a Lei Maria da Penha altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal, de acordo com os termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, bem como, dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher além de outras providências (BRASIL, 2006a).

O título I trata das disposições preliminares em 4 artigos, no qual pode ser evidenciado que:

Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social (BRASIL, 2006a, p. 1).

Para assegurar tais condições, cabe ao poder público realizar políticas que visem à garantia de direitos humanos das mulheres, estando aliado com a família e a sociedade para efetivar o pleno exercício de tais direitos.

No título II – Da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, são desmembrados dois capítulos e 3 artigos, definindo esse tipo de violência como uma violação de direitos humanos. A respeito da configuração do termo exposto no título, o Capítulo I, das disposições gerais, compreende violência doméstica como qualquer ação ou omissão embasada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, ocorrido no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família ou em qualquer relação intima de afeto, independente de coabitação e de orientação sexual (BRASIL, 2006a). O artigo 7, compondo o Capítulo II, classifica as essas violências em cinco formas:

I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. (BRASIL, 2006a, p. 1-2).

Tratando da Assistência à mulher em situação de violência, o Título III, subdivide-se em 3 capítulos e 5 artigos. O Capítulo I, traz o artigo 8, que discorre sobre as medidas integradas de prevenção, abarcando a integração operacional e articulação de todos órgãos públicos a fim de coibir a violência contra a mulher; a promoção de estudos, pesquisas, informações e estatísticas sobre essa temática; o respeito nos meios de comunicação social, reprimindo papéis estereotipados que exacerbem a violência doméstica e familiar; atendimento policial especializado; a promoção e realização de campanhas educativas; capacitação permanente aos agentes públicos; inserção de conteúdos relativos aos direitos humanos em todos os níveis de ensino (BRASIL, 2006a). O Capítulo II, traz o artigo 9, determinando que a prestação de assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar deve ocorrer “de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso” (BRASIL, 2006a, p. 2). O Capítulo III, através dos artigos 10, 11 e 12, orienta as providências a serem tomadas pela autoridade policial que atende ocorrências de violência doméstica.

No Título IV – Dos Procedimentos, em 4 capítulos e 16 artigos, destaca-se o Capítulo II, que especifica as condições das medidas protetivas, que podem ser concedidas pelo Juiz, requeridas pelo Ministério Público ou solicitadas pela vítima. As medidas protetivas de urgência se enquadram em dois formatos: aquelas que obrigam ao agressor (suspensão

de posse de arma, afastamento do lar, proibição de determinadas condutas, tais como: não se aproximar ou ter contato com ofendida ou com seus familiares, não frequentar locais a fim de preservar a vítima, dentre outras); aquelas destinadas à ofendida (encaminhamento a programas de proteção ou de atendimento, restituição de bens que lhe foram retirados, dentre outras). Ainda quanto à assistência judiciária, o Capítulo IV, explana que em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado, sendo oferecido os serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária de maneira gratuita, mediante atendimento específico e humanizado (BRASIL, 2006a).

O Título V, com 4 artigos, aborda a questão da equipe de atendimento multidisciplinar, especificando a competência dos profissionais e explicando que os “Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que vierem a ser criados poderão contar com uma equipe de atendimento multidisciplinar, a ser integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde” (BRASIL, 2006a, p. 5). Quando a complexidade do caso exigir avaliação mais aprofundada, o Juiz também pode solicitar tais serviços mediante indicação de equipe multidisciplinar.

Por conseguinte, o Título VI – Disposições Transitórias, traz o artigo 33 e por fim, o Título VII, traz 13 artigos compondo as disposições finais. Cabe destacar:

Art. 35. A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão criar e promover, no limite das respectivas competências:

I - centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e respectivos dependentes em situação de violência doméstica e familiar; II - casas-abrigos para mulheres e respectivos dependentes menores em situação de violência doméstica e familiar;

III - delegacias, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde e centros de perícia médico-legal especializados no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar;

IV - programas e campanhas de enfrentamento da violência doméstica e familiar;

V - centros de educação e de reabilitação para os agressores. (BRASIL, 2006a, p. 5).

A respeito da questão orçamentaria, o artigo 39, tipifica que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, “no limite de suas competências e nos termos das respectivas leis de diretrizes orçamentárias, poderão estabelecer dotações orçamentárias específicas, em cada exercício financeiro, para a implementação das medidas estabelecidas nesta Lei” (BRASIL, 2006a, p. 6). Ademais, vale sublinhar na íntegra o artigo 41, que faz a substituição da Lei 9099/1995 para a Lei 11.340/2006: "aos crimes

praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995” (BRASIL, 2006a, p. 6).

Entrando em vigor 45 dias após a sua publicação, “a Lei Maria da Penha, é resultado de um processo histórico de luta do movimento feminista e de mulheres no Brasil” (OLIVEIRA e TAVARES, 2015, p. 15). Esperança Garcia, referindo-se ao papel da Lei 11.340/2006, afirma:

Ela vai fazer a primeira problematização de violência e de gênero de uma forma jurídica, de uma forma judicial, ela vai fazer com quem os casos de violência contra a mulher sejam documentados e sejam julgados, ela vai dar essa seguridade. [...] Ela é importante, ela quebra paradigmas, ela vem estabelecer, vem dizer que não, não pode bater em mulher, bater em mulher é crime, violência contra a mulher é crime, mata, ela vem discutir isso, vem viabilizar isso de uma forma muito mais forte por entrar no âmbito jurídico, judicial e tal, eu acho que ela tem um papel muito importante nesse sentido. (ENTREVISTA 5 – ESPERANÇA GARCIA).

A entrevistada Margarida Maria Alves explica que a Lei Maria da Penha vem com o objetivo de garantir a coibição da violência contra as mulheres e tentar eliminar o máximo, coibir ao máximo a violência contra as mulheres. Para a participante Maria Quitéria essa legislação teria o papel de proteger integralmente a mulher. Na percepção de Maria Bonita, no que condiz a Lei Maria da Penha:

Ela tem a proteção, a prevenção, a assistência, medidas protetivas de urgência e tem, ela desenvolve o papel de cada setor, até da comunicação né. O papel da LMP é orientar todas essas instancias, dizer como é que cada uma tem que agir e todas elas tem que fazer isso: prevenção, assistência... Isso tudo que eu venho delegando. Aí, só que, elas têm que fazer interligadas, a gente chama de forma intersetorial, de forma integrada. [...] Ela não tem um papel, ela já cumpre o seu papel, tu entende? [...] O papel da Lei é ela ser essa Lei que orienta todo mundo, que orienta tudo, ela já cumpre o seu papel, o que não existe é o Estado efetivar isso. [...] Não tem um papel pra Lei cumprir, ela por si só, ela é a orientação, ela é o que tem o norte de tudo e ela é respaldada pela Convenção de Belém do Pará, por todas essas leis e tratados internacionais, ela é respaldada por ratificações que o país assinou, ela por si só já cumpre tudo” (ENTREVISTA 2 – MARIA BONITA).

“Considerada inovadora por reconhecer a violência contra as mulheres como uma violação dos direitos humanos, estabelecendo medidas de prevenção, proteção e assistência às mulheres e de punição aos agressores” (FERREIRA, BARBOSA e OLIVEIRA, 2015, p. 40), a Lei 11.340/2006 se efetiva por meio de uma rede de atendimento, cuja responsabilidade de garantir seu andamento cabe ao Estado.

Na realidade pessoense, a depoente Maria Bonita conta sobre a evolução trazida pela Lei em tela e pela criação dos serviços da rede de atendimento, que propiciaram que a mulher vitima de violência pudesse ter um mínimo amparo e uma proteção através da possibilidade de denunciar:

As pessoas já sabem que a hora que querem, podem recorrer a algum serviço né. Isso é fantástico, porque nos anos 80, as mulheres não tinham nem onde denunciar, a gente era obrigada ao silêncio. Quando a gente ia denunciar, porque aqui é importante ver a história junto com a Lei né, porque quando a gente denunciava, ia denunciar numa estrutura totalmente desacreditada, hoje a gente é desacreditada, mas a gente tem uma Lei pra proteger a gente e pra mostrar que é diferente (ENTREVISTA 2 – MARIA BONITA).

Nesse sentido, a participante 1 complementa com a seguinte reflexão:

Se a gente for pensar da década de 70 pra cá, são quase 50 anos e a gente fez um processo de criação de reivindicação de políticas que o Estado garantisse. A gente tem a garantia do marco legal da Lei Maria da Penha, a gente tem as convenções e tratados internacionais e isso é muito importante porque em algumas cidades do Brasil e em alguns estados, faz a diferença na vida das mulheres que estão sofrendo violência, faz. Então acho que é fundamental dizer isso. Por outro lado, ao mesmo tempo que a gente afirma que tem esse comprometimento do Estado, por outro lado a gente assume que tem essas fragilidades (ENTREVISTA 1 – MARGARIDA MARIA ALVES).

É notável que para olhar para a Lei Maria da Penha tem de se abordar o Estado, haja vista que, conforme a entrevistada Maria Quitéria avalia em sua fala, é ele quem cria as políticas públicas e cria os mecanismos de defesa.

Com o desafio de atuar de forma integrada para a proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, o Estado, fundado e estruturado em perspectivas androcêntricas, deve interpretar e aplicar uma legislação que rompa com as ideologias patriarcais, o que demanda uma postura que considere as especificidades das mulheres que estão em situação de violência doméstica, assim como as condições objetivas e subjetivas em que elas se desenvolvem (OLIVEIRA e TAVARES, 2015, p. 16).

Indo de encontro com a citação acima, tomando o Estado como foco, a entrevistada 1 corrobora:

O Estado tem um papel fundamental, o Estado tem que garantir políticas públicas de eliminação e erradicação da violência contra as mulheres, através de serviços públicos e aí a gente percebe que através da Lei Maria da Penha isso ficou muito mais forte, porque a maioria dela consegue articular vários serviços da rede de atendimento. O Estado brasileiro eu acho que é um dos Estados que tem um marco legal muito importante, poderoso e forte que consegue refletir toda a complexidade da Lei Maria da Penha. Acho que é

nesse sentido de realmente fomentar serviços que garantam qualidade na assistência. Aí é serviços de vários tipos, é segurança pública, é serviço de assistência social, é defesa, educação, como preconiza a Lei Maria da Penha. Então, o Estado brasileiro ele tem esse papel. [...] Mas na verdade existe uma cultura patriarcal, machista e racista que reflete no sistema que a gente vive, que mesmo com a garantia das políticas públicas dos serviços, eles não garantem efetividade do ponto desse sistema que está posto. [...] Então, o Estado brasileiro tem esse papel, mas tem esse papel também de estar desconstruindo esta cultura (ENTREVISTA 1 – MARGARIDA MARIA ALVES).

Nessa perspectiva, buscando aprofundar o entendimento sobre a atuação dos serviços que preveem a garantia da efetividade da Lei 11.340/2006, por conseguinte, a última parte desse segundo capítulo, irá contemplar a relação do Estado com a Lei Maria da Penha.