Como anotado previamente, a Constituição de 1988 foi a primeira norma fundamental, no
Brasil, a garantir expressamente como direito fundamental do cidadão a inviolabilidade à
privacidade e à intimidade, bem como a inviolabilidade do sigilo das comunicações e dos dados,
nos incisos X a XII do seu art. 5º.
A doutrina nacional debateu extensamente sobre estes dispositivos, procurando dar-lhes
conteúdo
94– uma vez que, como se viu, o constituinte não conceituou privacidade e intimidade,
conferindo-lhes apenas o status de invioláveis. Outra problemática se deu quanto à natureza dos
termos privacidade e intimidade; se seriam sinônimos ou significariam bens jurídicos distintos.
Quanto à denominação, tanto doutrina como jurisprudência parecem concordar tratarem-se
de termos sinônimos
95, havendo quem estipule
96, com base na teoria das esferas, ser a privacidade
uma esfera maior, estando nela inclusa a da intimidade, ambas contendo informações e aspectos da
vida de um indivíduo que este considere necessário manter distante da esfera pública. Parece-nos
esforço infrutífero distinguir tais termos, haja vista que, como demonstrado no item anterior, a
94 “Nesse contexto, protege-se o direito à privacidade que se configura ora como norma-regra, ora como norma- princípio – a depender do caso concreto em exame. A privacidade do domicílio e a privacidade das comunicações – previstas nos incisos XI e XII do art. 5o da CF – mais se parecem com regras diante da alta densidade normativa, do baixo grau de abstração e da possibilidade de aplicação imediata. De outro lado, também se configuram como princípios ao se contatar que as garantias se estendem para além das hipóteses expressamente previstas nos dispositivos constitucionais […]” VIEIRA, op. cit., p. 63
95 “Da mesma maneira, a Constituição Federal e o direito infraconstitucional estabelecem uma série de normas voltadas à proteção da privacidade, considerada de modo abrangente, englobando os conceitos vistos anteriormente – direito a ser deixado só, resguardo contra interferências alheias, segredo, sigilo, controle sobre informações e dados pessoais, entre outros. José Afonso da Silva destaca que prefere usar a expressão direito à privacidade, ‘num sentido genérico e amplo, de modo a abarcar todas essas manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade, que o texto constitucional (...) consagrou’. […] Nesse ponto, a distinção entre intimidade e vida privada torna-se uma discussão preponderantemente acadêmica, sem repercussão prática. Considere-se o disposto no art. 5º, X, da Constituição Federal: ‘são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação’”. LEONARDI, op. cit., p. 80-81
96 “Entre os autores que preferem efetuar tais distinções, é possível verificar uma certa confusão e ausência de critérios específicos entre elas: haveria uma diferença fundamental entre os termos, e vida privada seria o mais amplo de todos; a intimidade seria ‘a parte mais recôndita da privacidade, onde o cidadão pode excluir tudo e todos, sendo o mais exclusivo dos direitos, representando o direito de não ser arrastado para a ribalta contra a própria vontade’; a intimidade seria aspecto parcelar da privacidade, nos quais a reserva da atuação individual é mais intensa, abrangendo as esferas da confidência e do segredo, e como tal resguardável mesmo perante pessoas a quem não se possa opor a privacidade”. Ibidem, p. 81
conformação do seu conteúdo dependerá intimamente do contexto em que encontra-se inserido,
sendo o uso da expressão “privacidade” plenamente satisfatório
97.
Neste diapasão, faz mais sentido pensar a privacidade em termos amplos do que, por
exemplo, limitá-la a um “direito de estar só”, a um mero direito ao sigilo, ao segredo ou a um
controle sobre informações e dados pessoais – sobretudo em se tratando de um direito fundamental,
relacionado a vários outros valores
98.
Como já se pôde anotar, novas situações demandam novas soluções, ainda mais em um
mundo cada vez mais interconectado e que testemunha a perda de preponderância do Estado
99como
único regulador e editor de normas, máxime pela capacidade das redes em superar fronteiras
geográficas e, logicamente, jurisdições
100, demandando maior esforço da ciência jurídica e da
jurisprudência para interpretar as previsões constitucionais de privacidade em consonância com esta
realidade
101.
De toda forma, de suma importância foi a previsão do art. 5º da CF/88, que estendeu as
bases
102nas quais se deitam os demais diplomas que tutelam a privacidade.
Importa, aqui, ressaltar a previsão constitucional e fundamental da privacidade na
perspectiva da analogia luz-sombra, sem o intuito de preencher seu conteúdo, mas sim denotar sua
importância e dimensão; não é demais reforçar a necessidade de contextualização
103para este
97 “Por fim, pode-se dizer que a utilização do termo privacidade é adequada também pelo fato de que possui uma amplitude incomum, em comparação com os termos anteriormente mencionados, tendo sido denominada
inclusive como ‘palavra-ônibus’ e ‘noção guarda-chuva’”. MENDES, 2008, op. cit., p. 20-21
98 “A Constituição prevê diversas disposições que se relacionam à proteção da privacidade e dos dados pessoais, como a inviolabilidade da vida privada e da intimidade (art. 5º, X), a proibição da interceptação de comunicações telefônicas, telegráficas ou de dados (art 5º, XII), a vedação da invasão de domicílio (art. 5º, XI) e de correspondência (art. 5º, XII) e a possibilidade de impetração do habeas data (art. 5º, LXXII)”. Ibidem, p. 119
99 “Importa observar que, no decorrer do século XX, a transformação da função do Estado, aliado à revolução tecnológica, contribuiu para modificar o sentido e o alcance do direito à privacidade”. Ibidem, p. 17
100 “Um dos aspectos mais significativos e conhecidos do fenômeno da globalização é o crescente predomínio dos sistemas financeiro e econômico mundiais sobre os sistemas nacionais e locais. À medida que o livre comércio se generaliza, as disputas pelo mercado se tornam mais acirradas e as empresas transnacionais passam a atuar como sistemas integrados, os processos decisórios nacionais são submetidos a pressões desregulamentadoras […] Diante do progressivo predomínio da lógica financeira sobre a economia real, as fronteiras tendem a se tornar mais porosas, e os espaços tradicionalmente reservados ao direito e à política tendem a não mais coincidir com o espaço territorial”. FARIA, José Eduardo. Sociologia jurídica: direito e conjuntura. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 37
101 DONEDA, 2006, p. 106
102 “Por outro lado, a Constituição Federal brasileira estabeleceu que os direitos e as garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Isso é extremamente relevante, porque a privacidade é reconhecida como um direito fundamental em praticamente todos os tratados e convenções internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil.”. LEONARDI, op. cit., p. 95
103 “O inciso X do art. 5o da CF, de outro lado, mais se parece com uma norma-princípio, diante do elevado grau de abstração e generalidade, embora seja passível de aplicação direta quanto à sua parte final que prevê a possibilidade de ‘indenização por dano material ou moral decorrente de sua violação’. Enfim, a análise dependerá de cada caso concreto, apresentando-se o direito à privacidade tanto como norma-regra como uma norma-princípio. Essa perspectiva é de particular importância no desenvolvimento da temática apresentada, devendo nortear os operadores técnico-jurídicos na interpretação e aplicação desse direito fundamental, em especial na resolução dos conflitos com outros preceitos constitucionais”. VIEIRA, op. cit., p. 63