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A Constituição e a Laicização do Ensino

No documento A laicização do ensino no Brasil (1889-1934) (páginas 161-178)

3 E A PALAVRA ESTAVA COM DEUS: QUAL LAICIZAÇÃO?

3.3 A Constituição e a Laicização do Ensino

A fim de tranquilizar a opinião pública e restabelecer a confiança do exterior, o Governo Provisório percebeu, desde logo, a necessidade de organizar constitucionalmente o novo regime. Por meio do Decreto n. 29, de três de dezembro de 1889 - data de aniversário do Manifesto Republicano de 1870 - foi incumbida uma comissão de juristas da elaboração do anteprojeto da Constituição. Integraram-no cinco homens públicos de crenças notadamente republicanas: Joaquim Saldanha Marinho, como presidente; Américo Braziliense de Almeida Mello, vice-presidente; Antonio Luiz dos Santos Werneck, Francisco Rangel Pestana e José Antonio Pedreira de Magalhães Castro. Iniciados os trabalhos em janeiro de 1890, resolveram que cada um elaboraria um projeto em separado, para depois conformar um documento unificado. No entanto, Rangel Pestana e Santos Werneck decidiram trabalhar juntos e apresentaram uma única proposta, enquanto que Saldanha Marinho, na qualidade de presidente dos trabalhos, absteve-se de manifestar sua opinião (RIBEIRO, 1917). Uma vez finalizados os trabalhos, houve a discussão coletiva dos três pré-projetos no âmbito da

Comissão e as propostas foram sintetizadas em um arquivo único. No Quadro 2, apresentamos excertos dos quatro documentos, com suas respectivas propostas de regulamentação sobre o ensino e as matérias religiosas.

Em se tratando da problemática da laicização do ensino – tema específico desta investigação – constata-se que nenhum dos juristas demonstrou preocupação com a questão da institucionalização do “ensino leigo” ou da “escola laica”. Nota-se, apenas, que Werneck e Pestana propuseram a extinção de qualquer espécie de privilégios acadêmicos e que Magalhães Castro defendeu, contraditoriamente, a continuidade da oferta do Ensino Religioso no ensino primário, embora fiscalizado pelo Estado com o fim de coibir o “fanatismo religioso”. Percebe-se, ainda, que o próprio campo do ensino, como um todo, foi tema de escassa consideração. Tratou-se das questões da obrigatoriedade, gratuidade e liberdade do ensino, sendo que somente o último aspecto foi consagrado no projeto final da Comissão.

Quadro 2 – Projetos de Constituição elaborado pela Comissão de Juristas Projeto A. B. de Almeida Mello Projeto A. L. dos S. Werneck e F. R. Pestana Projeto J. A. Magalhães Castro Projeto Final Comissão de Juristas

Regulamentação sobre o Ensino

Art. 19. Compete ao Congresso - legislar sobre as seguintes matérias:

7º Ensino das sciencias e artes uteis, especialmente as adequadas á industria

predominante em cada Estado. A competencia do Congresso, relativamente á materia do n. 7 será cumulativa com a dos Estados, podendo cada um d'estes legislar sobre instrucção secundaria e superior, estabelecer lycêus,faculdades, universidades, escolas agricolas e industriaes,e quaesquer instituições de

Art. 30. O governo federal não póde curar da

instrução primaria nos Estados.

Art. 57. E' ampla a liberdade de ensinar e de aprender, abolidos os privilegios academicos de toda especíe, sem prejuízo do ensino official que não viole a igualdade de condições com o ensino particular. O ensino não póde ser obrigatorio e a instrucção publica primaria

Art. 17. Todos [...] têm direito imprescriptivel: § 3° - á liberdade espiritual. Consequentemente:

c) todos podem ensinar e aprender livremente. Fica, porém, sujeito á fiscalisação do Estado o ensino religioso a menores, nos collegios, lyceus, escola, e outros quaesquer estabelecimentos de educação, quer publicos, quer particulares. Aquelles que, abusando da liberdade de ensino e da separação da Igreja e do Estado, fizerem propaganda e incutirem no espirito infantil de menores

Art. 89 - 4° - todos podem livremente aprender e ensinar ou fundar instituições de ensino;

ensino theorico e pratico, como a cada um parecer conveniente.

Art. 56. [Cada Estado] Organisará a instrucção primaria gratuita, e

estabelecerá as condições em que ella se possa tornar obrigatoria.

será sempre gratuita. qualquer fanatismo de seita ou religião, serão passiveis das penas, que as leis determinarem, de accôrdo com as circumstancias e a gravidade dos casos; Art. 22 Será gratuita e disseminada, quanto possivel, a instrucção primaria e cívica.

Regulamentação Matérias Religiosas

Art. 68 [...] Não poderão ser alistados eleitores:

VI. Os religiosos de ordens monasticas, companhias, congregações ou

communidades de qualquer denominação, uma vez que seus membros sejão ligados por voto de obediencia ou regra ou estatuto que importe, a perda ou o sacrificio irrevogavel da liberdade.

Art. 56. E' livre o exercicio de qualquer religião, respeitados a moral e os costumes, já conquistados pela civilisação. Em todo o territorio da Republica, será impedida subvenção official directa ou indirecta, a qualquer serviço religioso ou de culto; será garantida a liberdade das ordens religiosas, enquanto não

Art. 17. Todos [...] têm direito imprescriptivel: § 3° - á liberdade espiritual. Consequentemente:

a) todos pódem publicamente professar a religião que bem quizerem, sendo livres e permittidos todos os cultos, nos limites compativeis com a ordem publica e os bons costumes;

Art. 85 [...] Não poderão ser alistados eleitores para cargo federal ou de estado: 4º - os religiosos de ordens monasticas, companhias.

Congregações ou

communidades de

qualquer denominação, uma vez que seus membros sejam ligados por voto de obediencia ou regra, ou estatuto que importe a perda ou o

Art. 72 [...]:

IV Todos podem professar, privada ou publicamente qualquer religião, uma vez que não ataquem a soberania nacional, nem perturbem a paz publica.

offenderem a missão politica da Republica; e livres serão os templos e cemiterios religiosos, guardados os regulamentos sanitarios, policiaes e posturas locaes.

sacrificio da liberdade. Art. 89 - 2° - todos podem publicamente professar qualquer religião; nenhum serviço religioso ou de culto gozará na União, de subvenção official, e serão livres os templos e os cemiterios, guardados os regulamentos sanitarios e policiaes;

No que tange às relações Igreja-Estado e ao tema da liberdade religiosa, percebe-se que os juristas se limitaram a incorporar o teor do Decreto 119-A de 1890, assegurando o livre exercício dos cultos, a secularização dos cemitérios e vetando a subvenção oficial às confissões religiosas. Além disso, aceitou-se a proposta de Almeida Mello, que visava restringir os direitos políticos aos clérigos congregacionistas, uma estratégia para impedir que os ultramontanos adentrassem no campo político.

A Comissão entregou o seu trabalho ao Governo Provisório em 24 de maio de 1890. Desta data até o dia 10 de junho, o Ministério estudou e analisou a proposta. Foi nesse momento que Rui Barbosa elaborou as ementas ao projeto de Constituição. Sabedores que marechal Deodoro estava sendo influenciado por pessoas “alheias” ao Governo, e que pretendia impor certas ideias incompatíveis com o sistema republicano, os ministros reuniam-se com frequência na casa de Rui Barbosa para examinarem juntos a proposta dos juristas e decidirem coletivamente quais pontos deveriam figurar no projeto do Governo (RIBEIRO, 1917). A intenção era apresentar apenas uma opinião a Deodoro para evitar atritos e assegurar os princípios desejados. Por reunir as emendas, Rui Barbosa foi porta-voz dos conselheiros nas sessões de discussões junto a Generalíssimo, o que não lhe tira o mérito de ser autor de boa parte delas.79

As ementas de Rui Barbosa alteraram, acrescentaram e precisaram a redação de inúmeros pontos presentes no anteprojeto elaborado pela Comissão de juristas. A proibição da subvenção e de empecilhos ao exercício de cultos religiosos, o reconhecimento estatal somente do casamento civil, a secularização dos cemitérios, a exclusão do país da Companhia de Jesus e a proibição da fundação de novos conventos ou ordens religiosas foram temas de suas emendas. Em

79

A questão da autoria das emendas constituiu tema de um polêmico debate. O próprio Rui Barbosa declarou-se autor da Constituição republicana em várias ocasiões, afirmações que não passaram isentas de contestação. Calmon (1946, p. XIII e XIV), notadamente a favor do mérito do trabalho de Rui, assim pronunciou-se: “Foi sua a inicial escolha de rumos. Fixou-se na índole americana do federalismo. Apoiou-se à história deste govêrno-paradigma. Embebeu-se de suas lições. Ambicionou o seu equilíbrio, a balança dos poderes. A separação de esferas, a divisão de funções, o conteúdo popular e o esquema constitucional de seu regime centenário. Encerrara-se o ciclo do parlamentarismo de estilo europeu e cepa romântica. Inaugurava-se - e o inaugurou Rui - o presidencialismo rasgadamente americano”.

específico ao objeto em estudo, Rui foi responsável pela inserção de duas contribuições capitais: a primeira, a de que nenhum culto ou igreja gozaria de subvenção oficial nem teria relações de dependência com o Estado; a segunda, que o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos seria “leigo”.

Ausente nos atos e discussões do Governo Provisório e nos projetos da Comissão de juristas, foi nesse momento que o termo “ensino leigo” foi inserido pela primeira vez em um documento oficial da República. Certamente, Rui Barbosa buscou inspiração em seus Pareceres de 1882, nos quais havia argumentado em favor da “escola leiga”, com base na análise da experiência desenvolvida neste campo em diferentes países. Diante de tais constatações, embasados pela literatura e fonte consultadas, indicamos nossa discordância quanto à afirmação de Luiz Antônio Cunha (2013, p.44), que em estudo publicado, afirma que o uso do termo “ensino leigo” tenha sido equivocado em sua qualificação, pois propõe que o correto deveria ser “ensino laico”. Sob nosso ponto de vista, não há nenhuma confusão em relação ao emprego do vocábulo “leigo”, haja vista que a literatura produzida nas décadas finais do Império não fazia uso dos termos “laico” ou “laicidade”.

Como demonstramos anteriormente, desde a década de 1850 havia iniciado o processo de laicização do ensino, na medida em que, progressivamente, os conteúdos religiosos foram condensados em “uma” entre um conjunto de disciplinas, de caráter facultativo, em programas e composições curriculares cada vez mais “científicos”. Esse movimento foi anunciado e defendido por distintas “vozes”, nem sempre convergentes, dentre as quais a de Rui Barbosa foi a mais audível e, em maior ou menor grau, incorporada aos estatutos legais exarados. Distante da pretensa confusão entre leigo e laico apregoada por Cunha (2013), Barbosa, como bom conhecedor do assunto – talvez o principal teórico do ensino leigo tanto do Império quanto da República - demonstrou sua perspicácia em utilizar um termo corrente junto à opinião pública brasileira do final do século XIX.

O projeto de Constituição, já contendo as emendas de Rui Barbosa, foi apresentado pelo colegiado ministerial ao marechal Deodoro em 10 de junho de 1890. A discussão foi finalizada oito dias após e, praticamente, todas as emendas de Rui Barbosa foram incorporadas ao projeto batizado de “Governo Provisório”, oficializado pelo Decreto n. 5, de 22 do mesmo mês. Rui Barbosa não somente foi encarregado da redação final do documento, como também acompanhou a impressão, fazendo modificações nas diversas provas que reviu (CALMON, 1946).

A Constituinte foi convocada para 14 de novembro de 1890. Ao principiar os trabalhos, elegeu-se uma comissão de 21 membros para opinar sobre o projeto do Governo ditatorial. Dos 21, aquele que causou maior influência foi o relator, o gaúcho Júlio de Castilhos. Adepto ao Positivismo, obteve a aceitação de muitas das suas doutrinas, tendentes a robustecer o poder executivo e a afrouxar os laços federativos (MAXIMILIANO, 1918). Em específico às matérias em estudo, o Congresso Constituinte derrubou as emendas de Barbosa que previa a exclusão da Companhia de Jesus e que proibia a fundação de novos conventos ou ordens religiosas.

Com o fim de consubstanciar a análise que efetuamos, assim como para fornecer subsídios para os argumentos concernentes à tese em tela, organizamos e apresentamos a seguir o Quadro 3, contendo um comparativo entre o projeto final da Comissão de juristas, o conteúdo das emendas de Rui Barbosa, o texto do Governo Provisório e os dispositivos aprovados na primeira Carta da República brasileira.

Quadro 3 - Comparativo dos Conteúdos dos Projetos de Constituição Projeto Final Comissão

de Juristas

Emendas Rui Barbosa Projeto Definitivo Governo Provisório

Projeto Aprovado pela Constituinte Regulamentação sobre o ensino

Art. 89 - 4° - todos podem livremente aprender e ensinar ou fundar instituições de ensino;

Art. Incumbe, outrossim ao Congresso, mas não privativamente: 1. Animar o progresso da educação pública [...]; 2. Criar instituições de ensino superior e secundário em qualquer Estado;

Art. 33 Incumbe, outrossim, ao Congresso, mas não privativamente: 1º Animar [no pais] o desenvolvimento da educação pública [...]; 2º Criar instituições de ensino superior e secundário nos Estados;

Art. 35 Incumbe, outrossim, ao Congresso, mas não privativamente: 2º animar, no país, o desenvolvimento das letras, artes e ciências [...]

Art. 72

5º Será leigo o ensino ministrado nos

estabelecimentos federais.

Art. 72

§ 6. Será leigo o ensino ministrado nos

estabelecimentos públicos.

Art. 72

§ 6. Será leigo o ensino ministrado nos

estabelecimentos públicos.

Regulamentação matérias religiosas

Art. 10 - É proibido aos Estados, assim como à União:

Art. 10. É vedado aos Estados; como ã União: § 2º Estabelecer,

Art. 11 É vedado aos Estados, como à União:

3º Estabelecer, subvencionar, ou embaraçar o exercício de cultos religiosos. subvencionar, ou embaraçar o exercício de cultos religiosos. ou embaraçar o exercício de cultos religiosos;

Art. São inelegíveis para o Congresso:

2º Os religiosos regulares e seculares de qualquer confissão;

Art. 25 São inelegíveis para o Congresso Nacional: 1° Os clérigos e religiosos regulares e seculares de qualquer confissão. Art. 85

[...] Não poderão ser alistados eleitores para cargo federal ou de estado: 4º - os religiosos de ordens monasticas, companhias.

Congregações ou

communidades de qualquer denominação, uma vez que seus membros sejam ligados por voto de obediencia ou regra, ou estatuto que importe a perda ou o sacrificio da liberdade.

Art. 85

§ 1.° Não podem alistar-se eleitores, nas qualificações federais, ou nas dos Estados: 4º os religiosos de ordens monâsticas. Companhias, congregações ou comunidades de qualquer denominação, cujos membros se obriguem por voto de obediência, regra, ou estatuto que importe a renúncia da liberdade individual.

Art. 70

§ 1º Não podem alistar-se eleitores para eleições federais ou para as dos Estados:

4.° os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações, ou comunidades de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediência, regra, ou estatuto, que importe a renúncia da liberdade individual:

Art. 70

§ 1º Não podem alistar-se eleitores para eleições federais ou para as dos Estados: 4º os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações, ou comunidades de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediência, regra ou estatuto, que importe a renúncia da liberdade individual. Art. 89 2° - todos podem Art. 72 2º Todos os indivíduos e Art. 72 § 3.º Todos os indivíduos e Art. 72 §3º Todos os indivíduos e

publicamente professar qualquer religião; nenhum serviço religioso ou de culto gozará na União, de subvenção official, e serão livres os templos e os cemiterios, guardados os regulamentos sanitarios e policiaes;

confissões religiosas podem exercer publicamente o seu culto.

confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observados os limites postos pelas leis de mão- morta.

confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens observadas as disposições do direito comum. 3° O casamento civil precederá o religioso. §4° O casamento civil precederá o religioso (A República só reconhece o casamento civil, que precederá sempre as cerimônias religiosas de qualquer culto).

§4° A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita.

4º Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal.

§5º Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal.

§5º Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as leis.

§7ºNenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou o dos Estados.

§7º Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou o dos Estados.

6º É excluída do país a companhia dos jesuítas e proibida a fundação de novos conventos ou ordens religiosas.

§8º É excluída do pais a companhia dos jesuíta e proibida a fundação de novos conventos ou ordens

monásticas.

O quadro anterior, assim como os quadros 1 e 2, demonstram o lastro histórico da “leigalidade” do ensino. A defesa da liberdade, secularidade e laicização da instrução pública, iniciada com o pronunciamento das distintas “vozes” republicanas das décadas de 1870- 80, pela ação direta de Rui Barbosa, ganharam corpo no dispositivo jurídico republicano.

A Constituição de 1891 ratificou a separação Estado-Igreja, impediu o Estado estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos; impediu que os religiosos votassem nas eleições, reconheceu somente o casamento civil, secularizou os cemitérios, assegurou liberdade religiosa e a igualdade de todas as religiões perante a lei. No que se refere à instrução, incumbiu o Congresso de animar o desenvolvimento das letras, artes e ciências e declarou que seria leigo o ensino nos estabelecimentos públicos. E foi só. Os pressupostos da liberdade, gratuidade e obrigatoriedade escolar “ficaram” pelo caminho. A ausência de um efetivo compromisso para com a educação pública por parte da República produziu uma arma contra si mesma: diante de tantos “povos”, em sua grande maioria empobrecida e analfabeta, como habilitá-los para assumirem o papel de cidadãos? Como prepará-los para a participação efetiva na res publica? Como fomentar e fortalecer partidos para representação do interesse popular? Os alistamentos forjados, os votos de “cabresto”, as fraudes eleitorais, a baixa representatividade política, a corrupção das instituições, não poderiam produzir outro resultado: uma Constituição que era só papel e uma “República que não foi” (CARVALHO, 1996). Assim, sedimentava-se o distanciamento entre a “mudança da lei” e a efetiva alteração das “práticas sociais”, dois extremos de uma mesma realidade. Sob esta ambiguidade, a Constituição foi promulgada pelo Congresso Nacional em nome do “Povo Brasileiro” para organizar um “regime livre e democrático” e uma “república federativa”. A fórmula “em nome do povo”, em um regime com baixa representatividade popular, bem ilustrava a ideologia e o imaginário que estava sendo criado. O “povo”, que para alguns nem existia, era massa abstrata, homogênea e afônica, que se manifestaria somente por meio de representantes, em nome da ordem e do progresso da nação. Constata- se, portanto, que a República, contradizendo-se, foi obra de um pequeno grupo de homens públicos, militares e civis que desconsideram os anseios populares (CARVALHO, 1996). Instituiu-se (ou manteve-se?) um fosso entre o povo e a classe dos políticos que atuavam segundo suas linhas doutrinárias e em favor de interesses dos grupos econômicos que lhes amparavam no poder.

As incoerências entre o texto jurídico idealizado e as práticas sociais da “República que não foi”, pode ser exemplificada pela persistência de cordialidades entre agentes estatais e religiosos, tal como ocorreu por ocasião da recepção em Belém do Pará dos bispos brasileiros que regressaram de Roma. No ato, o intendente municipal, senador Antônio Lemos, assim discursou:

O govêrno municipal de Belém entende que não se afasta nem da letra nem do espírito do instituto fundamental da nação, na parte em que proíbe relações de dependência ou hostilidade, dando aos ilustres príncipes do catolicismo aqui presentes uma prova de consideração. Separação não quer dizer desconhecimento ou hostilidade, mas independência; e esta não exclui a idéia de harmonia e mútua estima que para felicidade do povo deve reinar entre a Igreja e o Estado (apud MARIA, 1952, p. 224).

Na mesma sessão festiva, o governador do Estado, José Paes de Carvalho, afirmou em sua saudação aos bispos:

As instituições republicanas nada têm de hostis nem de incompatíveis com a moral divina e redentora do mártir do Gólgota. A separação e a independência dos poderes civil e religioso, inscritas na Constituição de 24 de fevereiro, não estabeleceram solução de continuidade em nossas tradições religiosas, que datam de quatro séculos; não proscreveram os altares que iluminaram a fé e ouviram as preces dos nossos maiores; não despedaçaram o sagrado símbolo que se levanta em nossos templos, e a cuja sombra e proteção se constituiu a vida nacional. Portanto, apostolai livremente; inoculai na alma do povo o espírito criador e fecundo que animava os profetas; trabalhai, de acôrdo com os patrióticos votos formulados no concílio a que acabais de assistir, pelo engrandecimento da pátria (apud MARIA, 1952, p. 224).

Infere-se, pois, que o amálgama político-religioso não se desfez pela força dos decretos do governo republicano. Não foi o texto da lei que alterou as mentalidades. Na prática, o início do novo regime foi

marcado pela existência de uma queda de braços entre forças antagônicas: de um lado, um reduzido número de homens públicos

No documento A laicização do ensino no Brasil (1889-1934) (páginas 161-178)