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O Decreto de Laicização do Estado

No documento A laicização do ensino no Brasil (1889-1934) (páginas 152-161)

3 E A PALAVRA ESTAVA COM DEUS: QUAL LAICIZAÇÃO?

3.2 O Decreto de Laicização do Estado

Por ocasião da Proclamação da República, havia no Brasil pelo menos três correntes que disputavam sua definição de natureza ideológica: o Liberalismo à americana, o Jacobinismo à francesa e o Positivismo comtiano. De acordo com Carvalho (1990), as três correntes combateram-se intensamente nos anos iniciais do novo regime. Cada uma delas dizia possuir e propalava um modelo de República e de organização social, que eram discursivamente anunciados e defendidos por seus adeptos. No seio do Jacobinismo, cuja inspiração direta era a Revolução Francesa, encontrava-se o desejo de instauração da democracia direta, baseada na participação de todos os cidadãos. No caso do Liberalismo, idealizava-se uma sociedade composta por indivíduos autônomos, cujos interesses eram compatibilizados pela mão invisível do mercado. Já, os positivistas acreditavam que lhes havia chegado o momento de exercer a direção intelectual e espiritual sobre a nação.

Tão logo se instalara o Governo Provisório, revelaram-se os contrastes, atritos e desacordos entre doutrinas e sentimentos que moviam seus integrantes, fato que explica a frequente substituição de ministros e as relações ora de conflito, ora de aliança. Não nos cabe aqui analisá-los, mas compreender como o processo de laicização do Estado e, por conseguinte, do ensino, foram tratados e incorporados na esfera jurídica nos primeiros anos da República.

Vale lembrar que na composição do Governo Provisório encontrava-se à frente da administração ditatorial o marechal Deodoro da Fonseca. Juntamente, estavam: Benjamin Constant (Ministério da

Guerra), Quintino Bocaíuva (Exterior), Rui Barbosa (Finanças), Eduardo Wandenkolk (Marinha), Campos Salles (Justiça), Demétrio Ribeiro (Viação) e Aristides Lobo (Interior). Dada a inexperiência de Deodoro para governar, e as latentes diferenças internas, acharam por bem instaurar um Conselho de Ministros para deliberar em coletivo sobre as matérias.

O tema da laicização do Estado foi alvo de um dos primeiros encontros ministeriais, precisamente o de nove de dezembro de 1889. Nessa data, o positivista Demétrio Ribeiro apresentou a primeira versão do Projeto de separação da Igreja do Estado, secularização dos cemitérios e casamento civil. Nota-se que, nesse momento, evoca-se a concepção da “laicidade-separação”, com o objetivo de pôr fim a uma histórica aliança entre Igreja-Estado no Brasil. “Secularizar” os cemitérios e o casamento era o corolário desse intento, pois somente dessacralizados poderiam passar à esfera do governo civil. Mas, em se tratando de uma República “que não foi”, seria suficiente exarar um “decreto” determinando a separação entre duas instituições que se encontravam amálgamas, não apenas em nível das instituições políticas e organismos da vida cultural, mas no âmbito das mentalidades individuais e coletivas?

Benjamim Constant, procurando evitar a aprovação imediata da proposta, ponderou que o assunto era de magna importância e sugeriu o adiamento da deliberação a fim de que a ideia fosse maduramente estudada. Na mesma direção, manifestou-se Rui Barbosa, afirmando que desejava consultar um “respeitável prelado” com o qual tinha relações pessoais – leia-se Dom Antonio Macedo Costa, então Arcebispo da Bahia. Na sessão de 16 de dezembro, Demétrio Ribeiro apresentou uma segunda versão de projeto, mas a votação propriamente dita somente ocorreu em 07 de janeiro de 1890 (ABRANCHES, 1907).

Segundo nos informa Ribeiro (1917), neste meio tempo, Rui Barbosa consultou Macedo Costa sobre os efeitos da separação Igreja- Estado entre o clero e os católicos em geral. O autor cita uma Carta redigida pelo prelado a Barbosa, datada de 22 de dezembro de 1889. O teor da Carta revela a perspectiva defendida pelo representante eclesiástico, quanto à linha ideológica a ser adotada: “Liberdade para nós, como nos Estados Unidos! Não seja a França de Gambeta e de Clemenceau o modelo do Brazil, mas a grande União Americana” (1917, p. 41) (sic). E, em nota a tais expressões, o Arcebispo registrou que o Ministro Bocaíuva também lhe havia garantido que o modelo a ser implantado seria aquele dos Estados Unidos: “Havemos de dar á Egreja catholica no Brasil a mesma liberdade de que ella gosa nos Estados

Unidos. Nunca lei de excepção seria feita contra a Egreja catholica; que a nova constituição lhe garantiria a maior liberdade” (1917, p. 41) (sic). E, arrematou que do próprio general Deodoro ouviu: “Sou catholico, não assignarei uma constituição que offenda a liberdade da Egreja” (1917, p. 41) (sic).

Percebe-se que os ministros Barbosa e Bocaíuva, assim como o próprio chefe do Governo, manifestaram-se em favor de uma relação “amistosa” com a Igreja, propondo a adoção do modelo estadunidense de Estado laico. Podemos cogitar se tal inclinação advinha de convicções pessoais, como a filiação e respeito ao catolicismo, ou se se tratava de uma manobra política, com o intuito de evitar que o novo regime, de início, entrasse em choque com uma instituição tão poderosa quanto a Igreja Católica.

Após as devidas consultas, no dia sete de janeiro de 1890, Rui Barbosa apresentou o “seu” projeto de separação Igreja-Estado. Durante as discussões no Conselho, Demétrio Ribeiro reconheceu que em linhas gerais as propostas eram similares, mas questionou a ausência da “secularização” dos nascimentos, óbitos e casamento na proposta de Rui Barbosa, o qual respondeu que os temas deviam fazer parte de uma lei especial, que seria editada proximamente. Campos Sales concordou com os termos apresentados por Barbosa, mas questionou o artigo sexto que estabelecera o prazo de seis anos de subvenção estatal aos seminários, quando, apenas um bastaria. Com esta alteração, a proposta foi coletivamente aprovada (ABRANCHES, 1907). A íntegra dos projetos pautados no Conselho de Ministros encontram-se no Quadro 1, apresentado na sequência.

Quadro 1 - Projetos de Separação Estado-Igreja PROJETO DE DECRETO Demétrio Ribeiro 9 de dezembro de 1889 PROJETO DE DECRETO Demétrio Ribeiro 16 de dezembro de 1889

PROJETO DE RUI BARBOSA Decreto n. 119-A 7 de janeiro de 1890

Art. 1º Fica estabelecida a plena liberdade de cultos e abolida a união legal da Igreja com o Estado.

Art. 1º E' livre o exercicio de qualquer culto, ficando abolida a união entre o Estado e a Igreja Catholica.

Art. 1º E' prohibido á autoridade federal, assim como á dos Estados federados, expedir leis, regulamentos, ou actos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e crear differenças entre os habitantes do paiz, ou nos serviços sustentados á custa do orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões philosophicas ou religiosas.

Art. 2º A todas as confissões religiosas pertence por igual à faculdade de exercerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos actos particulares ou publicos, que interessem o exercicio deste decreto. Art. 3º A liberdade aqui instituida abrange não só os individuos nos actos individuaes, sinão tambem as igrejas, associações e institutos em que se acharem agremiados; cabendo a todos o pleno direito de se constituirem e viverem collectivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do poder publico.

Art. 4º Fica extincto o padroado com todas as suas instituições, recursos e prerrogativas.

Art. 2º Ficam mantidos aos actuaes funccionarios catholicos os seus respectivos subsidios.

Art. 2º Os actuaes funccionarios eccIesiasticos subvencionados pelos cofres geraes continuarão a perceber os seus respectivos subsídios.

Art. 6º O Governo Federal continúa a prover á congrua, sustentação dos actuaes serventuarios do culto catholico e subvencionará por um anno as cadeiras dos seminarios; ficando livre a cada Estado o arbitrio de manter os futuros ministros desse ou de outro culto, sem contravenção do disposto nos artigos antecedentes.

Art. 3.° Os templos, que pertencerem ao Estado, serão deixados ao Iivre exercicio do culto catholico, emquanto forem assim utilisados. Em caso de abandono pelos sacerdotes catholicos, o Estado os cederá para os exercícios cultuaes de qualquer igreja, sem privilegio religioso.

Art. 3º Os templos pertencentes ao Estado continuarão entregues ao sacerdocio catholico,

emquanto este se

responsabilisar pela conservação delles. Em caso de serem abandonados pelo sacerdocio catbolico, o Estado poderá entregaI-os a qualquer outro sacerdocio, mediante a mesma condição de conservaI- os; ficando entendido que é licito ao Governo permittir que o mesmo templo se destine ao exercicio de varios cultos, sem privilegio de nenhum.

Art. 5º A todas as igrejas e confissões religiosas se reconhece a personalidade juridica, para adquirirem bens e os administrarem, sob os limites postos pelas leis concernentes á propriedade de mão-morta, mantendo-se a cada uma o dominio de seus haveres actuaes, bem como dos seus edificios de culto.

Art. 4º E' garantida ás associações religiosas e corporações de mão-morta

existentes no territorio da Republica a posse dos bens em cujo gozo se acham e que vierem a adquirir por qualquer titulo juridico, regulado tudo pela legislação commum relativa á propriedade, derrogadas todas as disposições especiaes em contrario.

Art. 5º Ficam declarados extinctos todos os privilegios, concessões e contractos das corporações de mão morta para o serviço de hospitaes e enterramentos, que passará a ser feito, na Capital Federal, pela Intendencia Municipal, e, nas diferentes localidades dos Estados, conforme determinar a legislação respectiva, de accordo com as disposições do presente decreto. Fica entendido que em qualquer caso será respeitada em toda a sua plenitude a liberdade individual e de consciencia.

Art. 6º O casamento civil, monogamico e indissolúvel é o unico que o Estado reconhece para todos os efeitos legaes que derivam da união conjugal. Art. 7º O nascimento e o obito serão tambem provados por declarações analogas feitas perante as mesmas autoridades a quem competir o registro dos casamentos, e só em taes condições produzirão os seus effeitos legaes.

Art. 8º O Governo tomará as providencias que julgar convenientes e expedirá os regulamentos que entender necessarios para a execução do presente decreto.

Art. 7º Revogam-se as disposições em contrario.

Analisando as proposições de Demétrio Ribeiro e Rui Barbosa, constatamos que ambos coincidem em suas linhas mestras: plena separação entre Igreja e Estado, extinção do padroado, liberdade de culto a todas as confissões religiosas, proibição do Estado estabelecer, interferir ou impedir alguma religião, ou de criar diferenças de tratamento por conta de crenças, opiniões filosóficas ou religiosas. Em relação ao pagamento da côngrua ao clero católico, Demétrio não pretendia romper com tal situação e Rui pensava em estendê-la por mais seis anos. Com a proposição de Campos Salles, o tempo fora limitado há apenas um ano. Nesse ponto, podemos inferir que, no momento inicial, as motivações dos Conselheiros não eram anticlericais. Ao contrário, percebe-se inclusive que Rui Barbosa inseriu um dispositivo que assegurava o livre arbítrio dos Estados manterem os seus ministros de culto de qualquer credo. Na prática, isso permitia a continuidade das relações de dependência dos clérigos com os governos regionais, além de quebrar a recém- proclamada isonomia entre as instituições religiosas, pois, diante da vasta obra da Igreja, os sacerdotes católicos seriam os maiores beneficiados dos recursos públicos, em detrimento dos cultos afro-brasileiros e indígenas, por exemplo, que nem se quer eram reconhecidos como religião.

Por outra parte, o projeto de Rui Barbosa concedia “personalidade jurídica” às confissões religiosas, que passariam a administrar seus bens sem a tutela do Estado. No caso da Igreja Católica, gozar de estatuto jurídico próprio era fundamental para a sua auto-sustentação, pois, sem a subvenção do Governo por conta da extinção do padroado, necessitava de doações da Santa Sé e de congregações estrangeiras para manter-se.

Em se tratando dos templos religiosos, Demétrio consentiu em mantê-los sobre a guarda das respectivas religiões, extinguindo o regime de mão-morta. Contudo, Rui preferiu manter tal limitação, fato que provocaria reações enérgicas por parte do clero. A proposta de Demétrio propunha ainda a secularização dos serviços hospitalares e mortuários, e tornava o casamento civil o único reconhecido pelo Estado, temas que não fizeram parte do projeto apresentado por Rui e, por consequência, não foram regulamentados pelo Decreto 119-A.

Em razão disso, em 1890 foram expedidos outros três dispositivos: o Decreto 181, que promulgou a lei sobre o casamento civil; o Decreto 521, que determinava que a união civil ocorresse “antes” do rito religioso, instituindo inclusive sansões penais aos infratores, que variava de multa à prisão de seis meses – outro fato que incitou a revolta dos católicos, pois invertia a ordem das coisas:

primeiro a união matrimonial seria “abençoada” pelo Estado e depois “abençoada” por Deus; e o Decreto 789, que estabeleceu a secularização dos cemitérios, transferindo seu controle e administração às autoridades civis.

Portanto, o Governo Provisório instituíra em seus primeiros atos uma das principais marcas da República: a separação Estado-Igreja, a plena liberdade de cultos, o casamento civil e a secularização dos cemitérios, mas, ao mesmo tempo, a União continuou subvencionando as obras católicas pelo período de um ano, assim como permitira a manutenção da côngrua aos ministros de culto no âmbito dos Estados.

Agora, ressaltamos um aspecto derivado de nossa análise. No texto jurídico, não encontramos nenhuma menção referente à expressão “Estado laico”, muito menos à “escola laica”, ou ao “ensino leigo”, tema que, a propósito, não figurou entre os decretos de laicização do Estado. Deu-se, no princípio, mais atenção aos casamentos e aos cemitérios que propriamente à instrução popular, que, como veremos, foi posteriormente tratada pontualmente na reforma de Benjamin Constant de 1891.

Contudo, devemos frisar que a laicização do Estado avançou mais no campo jurídico que propriamente em nível das mentalidades. Prova disso fora a questão tratada na sessão subsequente à aprovação do Decreto de separação. Aristides Lobo consultou o Conselho de Ministros sobre a continuidade das obras na capela imperial e se o governo responsabilizava-se por tais despesas. Wandenkolk e Bocaiuva consideraram que os pagamentos poderiam ser feitos, uma vez que figurassem no orçamento sob a rubrica de “Cultos” (ABRANCHES, 1907).

O único conselheiro que parecia assumir uma postura mais radical em relação ao tratamento dos temas religiosos era Campos Salles. Na sessão do Conselho de 21 de janeiro de 1890, após ouvir “murmurações” com referencia às reformas religiosas, declarou que:

[...] as reformas devem ser radicaes ou então nada fazer-se. Não convem contemporisar com o

clericalismo, a quem parece o governo temer;

e, fazendo parte do governo, não pode deixar de pugnar pelas mesmas idéas pelas quaes se debateu nas orações publicas, na imprensa e no parlamento. [...] No Brasil, o clero não representa uma força como na França e Allemanha. Esse temor deve desapparecer e o governo agir com toda a energia introduzindo reformas completas e

compatíveis com o programma republicano (ABRANCHES, 1907, p. 62, grifo nosso) (sic). Rui Barbosa e Demétrio Ribeiro discordavam de tal posição. O primeiro afirmou que os “exaltados” não aceitavam a reforma, mas que em geral tinha sido boa a impressão causada pela lei de separação da Igreja do Estado. Salles insistiu dizendo haver um defeito no Decreto de separação, pois ao mesmo tempo em que vetava o Estado de estabelecer uma religião, o artigo sexto autorizava a subvenção de um culto. A questão, enfim, não ficou aí resolvida, devido à falta de convergência ideológica entre eles.

As contradições internas, quanto ao tratamento dos temas religiosos, ficaram mais uma vez demonstradas na sessão de 29 de março de 1890. Ventilada a questão de serem considerados ou não feriados os dias da Semana Santa, apesar da separação entre os poderes, resolveu-se, depois de alguma discussão, que, por escrúpulos e respeito às crenças religiosas dos funcionários públicos, fossem dispensados do ponto aqueles que não comparecessem às suas repartições. Nota-se aqui o tratamento compreensivo (ou permissivo?) para com as festividades cristão-católicas, relevando, outra vez, as ambiguidades em torno do processo de laicização do Estado.

No documento A laicização do ensino no Brasil (1889-1934) (páginas 152-161)