• Nenhum resultado encontrado

A criação de uma vila tinha entre seus pressupostos a constituição do patrimônio público e a instalação do pelourinho, bem como a existência de determinada edificação para abrigar a casa de câmara e a cadeia, elementos fundamentais para o funcionamento de uma vila. Enquanto patrimônio público, o mesmo era constituído, geralmente, a partir de doações de pessoas mais abastadas que concediam terras para a vila, assim como aconteceu com a Vila de Pombal e com a Vila Nova de Sousa.

No entanto, ressalta-se que, no caso das duas vilas estudadas, as áreas onde o espaço urbano vinha se conformando – no entorno do templo religioso – já eram patrimônio da Igreja. Com isso, sobrepondo-se a tal patrimônio estava a forma urbana que se configurava e onde foram abertas ruas, travessas e quadras com seus lotes destinados à construção das edificações para os habitantes do aglomerado humano que se forjava. Deste modo, como a área central da vila já havia sido doada à Igreja, o patrimônio destinado à vila deu-se em outros locais, até mesmo mais afastados da área em que o patrimônio religioso estava circunscrito.

Enquanto patrimônio público, constituído por terras de interesse coletivo que tinham a denominação de terras do Rossio ou do Conselho, destinava-se ao uso comum, não podendo ser doado a terceiros. Nas vilas,

“o Senado da Câmara separava o patrimônio fundiário em duas partes: uma aforada ou dada em enfiteuse, proporcionando recursos financeiros à administração local, e outra insusceptível de apropriação privada por ser considerada de utilidade pública, em proveito comum da vila”.216

A constituição desse patrimônio público relaciona-se com a legislação relativa à

regulamentação de concessões de terras no Brasil colonial. Ressalta-se que, para além do patrimônio público constituído, eram excetuadas das áreas destinadas às doações de sesmarias aquelas que fossem de interesse da fazenda ou de interesse régio.217 E, de

acordo com PORTO, embora não haja uma definição clara a respeito das terras citadas acima, admite o autor que aquelas de interesse régio seriam as terras dos índios, os caminhos para minas, as margens dos rios navegáveis, e, possivelmente, matas com madeira de lei, caminhos, estradas públicas.218 Já as terras de interesse da fazenda

seriam aquelas que estavam a serviço, principalmente, da Fazenda Real, destacando-se as terras de marinha.219 Deste modo, verifica-se que as terras de interesse coletivo iam

além daquelas destinadas ao patrimônio da vila.

Ainda neste sentido, havia restrições que impediam a ocupação das servidões e que eram impostas à apropriação privada como forma de conservar os caminhos, as estradas, as praias e as margens dos rios navegáveis, no intuito de preservar a serventia pública, assegurando aos habitantes o trânsito fácil e o acesso às matas, fontes, pontes, pedreiras, praias, rios, pastos, etc. Estas restrições conservavam o princípio romano da servidão de passagem, sendo as estradas consideradas sagradas, ou seja, não susceptíveis de apropriação.220 Confirmando o uso das servidões como local de passagem tem-se, no

caso das ruas, segundo REIS FILHO, que as mesmas

“nas povoações mais antigas do Brasil, eram entendidas quase exclusivamente como meio de ligação, vias ou linhas de percurso, ligando os domicílios aos pontos de interesse coletivo ou um a outro desses pontos. Na maior parte dos casos não tinham significado como local de permanência”.221

Compreende-se, assim, que através do regime de sesmarias desencadeou-se o processo inicial de gestão de terras públicas no Brasil Colônia, quando foram delineados os princípios da constituição das áreas de interesse coletivo, o que também se relaciona com a constituição do patrimônio público. E no caso da Povoação de Nossa Senhora do Bom Sucesso (Pombal) e da Povoação do Jardim do Rio do Peixe (Sousa), ambas tiveram seu patrimônio constituído quando da elevação à categoria de vila. Importante ressaltar que

217 BENTES SOBRINHA, Maria Dulce Picanço. Formação histórica e Institucionalização dos bens públicos no Brasil. In:

Patrimônio público, gestão do território e direito ao meio ambiente. Os bens da União e dos Estados na implantação

hoteleira e turística no litoral leste do Rio Grande do Norte (1930-1990). São Paulo, 2001. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo). Universidade de São Paulo/USP. p. 6.

218 PORTO, José. da C. O sistema... Op. cit. 219 Idem.

220 Idem.

esse patrimônio público, enquanto terras de interesse coletivo, associava-se às áreas também de interesse coletivo que a legislação relativa à concessão de sesmarias restringia.

De acordo com SEIXAS, fazia parte das doações para a constituição do patrimônio da Vila de Pombal, o sítio Lages, na serra da Gameleira, as serras do Algodão e do Comissário, e terras situadas em sítio localizado na serra do Moleque. Entre os doadores estava Francisco de Arruda Câmara, nomeado capitão-mor quando da instalação da vila, e o capitão Manoel Gomes de Farias, assim como, provavelmente, o comissário Theodozio Alves de Figueiredo, então proprietário da data que passou a ser conhecida como serra do Comissário. As terras doadas localizavam-se em áreas distantes do núcleo urbano da vila, e serviriam, possivelmente para suprir as necessidades dos moradores, sendo terras onde se poderia tirar lenha para as atividades cotidianas, para a prática da agricultura e criação de animais, além de atender a outras necessidades dos habitantes da localidade, possibilitando-lhes o acesso e usufruto da terra.

Já a doação do patrimônio para a Vila Nova de Sousa ocorreu em junho de 1800 e fora realizada pelo capitão Alexandre Pereira de Sousa, de acordo com a escritura que se segue:

“Escriptura de doação que faz o Tenente Alexandre Pereira de Sousa de meia legoa de terras de plantar e crear na Serra de Sam Bento Ribeira do Aguiar para patrimonio da Nova Villa de Sousa. Saibão quantos este instrumento de escriptura de doação, ou como em Direito para a sua validade melhor nome haja, em, que no anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos, aos sinco de junho do dito anno, nesta Povoação do Jardim, termo da Vila de Pombal, Comarca da Parahiba do Norte, em caza de morada de Patrício José de Almeida onde eu Tabelião, adiante nomiado estava, ahi apareceo Alexandre Pereira de Sousa, morador na sua fazenda da Caisara, Ribeira do Rio do Peixe, do mesmo termo de Pombal, reconhecido por mim Tebelião pello proprio de que dou fé e por elle foi dito em minha prezença, e das testemunhas abaixo nomiadas, e asignadas, que elle entre os mais bens que possue de mansa e pacifica posse, he bem asim meia legoa de terras de crear e plantar sitas na Serra de Sam Bento, Ribeira do Aguiar, que a houve por data de Sismaria que alcançou na Secretaria da Parahiba do Norte, a qual se acha demarcada pella Provedoria, extremando pella parte do Nascente com terras da Serra de Santa Catharina, pello poente com terras delle doador, pello Norte pegando do Poso, chamado Catingueira pello Riacho abaixo extremando com terras da Lagoa do Dultra, a qual terra assim confrontada doava, sem constrangimento de pesoa alguma, de sua livre vontade como de facto doado tinha de hoje para sempre para Patrimônio da Nova Villa de Sousa que se há de erigir nesta Povoação, a qual terra doada hé livre, e desembargada, e que tida acção posue domínio, e usufruto que nella tinha dimittia, e sedia, por vontade deste instrumento, contra o qual prometia e se obrigava a não em tempo algum condennalas, e vindo era contente lha fose denegada tal..., e acção, que a seu favor allegar podese em Juiso, ou fora delle, e que por sua pesoa, e bem prometia e se obrigava fazer esta doação firme e valiosa, e que renuncia quaesquer leis pose e legoas, que a seu favor allegar podese. Em fé e testemunho da verdade assim dise pasado e aceito que fose feito este instrumento nesta Notta, que eu, Tabelião, como

pesoa publica... e aceitei em nome dos ausentes, ou... a quem a favor della tocar posa, e nelle asignou, presente as testemunhas Bento Vieira da Silva e Manoel Pereira, este morador nesta povoação e aquelle na Vacca Morta, pesoas que reconheço pelas proprias de que dou fé... por me ser distribuida pello Distribuidor do Juiso pello bilhete seguinte a pesoa. Distribuída as folhas onse. Escriptura de doação que o Tennente Alexandre faz de meia legoa de terras sitas na Serra de Sam Bento Ribeira do Aguiar para Patrimonio da Nova Villa de Sousa, em sinco de Junho de mil oitocentos. Seixas. Eu, João Ribeiro de Vasconcellos Pesoa. Tabelião que a escrevi. Alexandre Pereira de Sousa, Manoel Pereira de Almeida, Bento Vieira da Silva”.222

Assim como estavam distantes do núcleo urbano as terras doadas para compor o patrimônio da Vila de Pombal, também distantes estavam aquelas concedidas para a Vila Nova de Sousa. Localizadas ao Sul da vila, faziam extrema “pella parte do Nascente com terras da Serra de Santa Catharina, pello poente com terras delle doador, pello Norte pegando do Poso, chamado Catingueira pello Riacho abaixo extremando com terras da Lagoa do Dultra”. Portanto, acredita-se que tais terras serviriam para a realização por parte dos habitantes da vila de atividades voltadas para a agricultura, criação de gado e retirada de lenha, além de atender a outras necessidades dos moradores. Igualmente, estas terras também poderiam ser aforadas por determinado tempo, o que resultaria em recursos financeiros para a manutenção da Câmara, objetivo principal de se ter as referidas terras como patrimônio das vilas – para pagamento do foro anual.

Mas no núcleo urbano propriamente dito, da Vila Nova de Sousa, as terras onde o mesmo se encontrava assentado já eram de domínio da Igreja enquanto patrimônio religioso legalmente constituído. Sendo assim, restava o respeito aos espaços destinados às servidões públicas – ruas, travessas e largos, entre outros – como forma de permitir o desenvolvimento da vila enquanto espaço urbano e conjunto edificado. Quanto aos rendimentos da Câmara, os mesmos não atingiam a concessão de chãos para edificações, através do aforamento ou enfiteuse, que se dava na área do patrimônio religioso, reduzindo, assim, a arrecadação da Câmara, assim como na Vila de Pombal. Verifica-se, pois, as semelhanças entre os patrimônios doados para as duas vilas em estudo, sendo um dos pontos mais importantes a localização distante do espaço urbano onde a povoação já vinha em formação e desenvolvimento. As terras de tal patrimônio destinavam-se, provavelmente, à agricultura e à criação de gado, entre outros, garantindo o acesso aos recursos naturais necessários aos afazeres cotidianos, como coleta de lenha, de pedras, de barro, etc. Assim, a própria casa de câmara e cadeia e o pelourinho se instalariam em área de patrimônio religioso e não da vila. No entanto, e, em última

222 ESCRITURA de doação de terras que faz o capitão Alexandre Pereira de Sousa para constituir o patrimônio da Vila Nova

análise, as terras eram concedidas em sesmaria, o que não significava a posse das mesmas. Sendo assim, não haveria problemas na instalação do pelourinho e na implantação das edificações destinadas à administração e à justiça, símbolos do poder e da autoridade lusa nos núcleos urbanos da Colônia.