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constituiria a chamada “vida sexual normal do adulto”, na qual a obtenção de prazer fica a

serviço da função reprodutora, e as pulsões parciais, sob o primado de uma única zona erógena, formam uma organização sólida para a obtenção do alvo sexual em um objeto sexual exterior, alheio. (FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre sexualidade. In: _____. Obras completas de

Sigmund Freud: edição standard brasileira. Direção geral de tradução de Jayme Salomão. Vol.

XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. P.164). 234

FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre sexualidade. In: _____. Obras completas de Sigmund

Freud: edição standard brasileira. Direção geral de tradução de Jayme Salomão. Vol. XVII.

Rio de Janeiro: Imago, 1996. P.210.

235 LACAN, Jacques. Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. P.191.

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reforçar e rememorar o caráter passional do vínculo estabelecido com a mãe. À semelhança do menino Marcel que aguardava o beijo materno antes de dormir, André ansiava despertar pela manhã no abraço envolvente da mãe:

[...] só esperando que ela entrasse no quarto e me dissesse muitas vezes „acorda, coração‟ e me tocasse muitas vezes suavemente o corpo até que eu, que fingia dormir, agarrasse suas mãos num estremecimento, e era então um jogo sutil que nossas mãos compunham debaixo do lençol, e eu ria e ela cheia de amor me asseverava num cicio „não acorda teus irmãos, coração‟, e ela depois erguia minha cabeça contra a almofada quente do seu ventre e, curvando o corpo grosso, beijava muitas vezes meus cabelos (LA, p.27)

Estas mãos, carinhosas e acolhedoras, prolongariam as carícias até a adolescência, quando contemplava o filho doente e arredio, metaforizando os sentimentos mais ternos e preocupados da família: “caí pensando nos seus olhos, nos olhos de minha mãe nas horas mais silenciosas da tarde, ali onde o carinho e as apreensões de uma família inteira se escondiam por trás, e pensei quando se abria em vago instante a porta do meu quarto ressurgindo um vulto maternal e quase aflito „não fique assim na cama, coração, não deixe sua mãe sofrer, fale comigo‟ ” (LA, p.18). A presença da mãe é tão forte que é capaz de interromper até mesmo a fala de Pedro, gerando um corte abrupto na narração quando seu semblante é evocado e André imediatamente a vê lamentar sua partida: “sentada na cadeira de balanço, absolutamente só e perdida nos seus devaneios cinzentos, destecendo desde cedo a renda trabalhada a vida inteira em torno do amor e da união da família”. (LA, p.38-39).

O apego à mãe é igualmente ilustrado em Relato de um certo

Oriente por Hakim, entre cujas lembranças mais tenras também está o

acolhimento materno antes de dormir. Este ritual é tão importante para o garoto que na infância, ao testemunhar o que julgava serem desentendimentos do casal, “Temia que meu pai, transformado num Antar feroz e indomável, agredisse a mulher que me beijara, que me beijaria todas as noites, no instante que precede o sono.” (RCO, p.47). A fim de melhor demonstrar a intimidade com que se davam estes gestos,

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carícias ofertadas e aceitas com espontaneidade, o rapaz traça um paralelo entre a mãe e uma amiga da família, realçando a infeliz tentativa da segunda em acolher maternalmente sem nunca ter sido mãe: Hindié tratava qualquer criança como se fosse seu filho despejando uma enxurrada de beijos, abraços e palavras carinhosas nas pequenas vítimas que moravam nos arredores de sua casa. Mas essa entrega parecia a manifestação de um sadismo requintado, pois o carinho exagerado que recebíamos de uma mulher como Hindié, dava- nos uma incômoda sensação física, sem a transcendência e a naturalidade do gesto materno que, para ser caloroso e sensual, não necessita de excessos nem de grandes encenações. (RCO, p.37).

Como observa Freud, quando ensina seu filho a amar a mãe está apenas cumprindo seu papel: o de transformá-lo num ser humano capaz, dotado de uma vigorosa necessidade sexual, que possa realizar em sua vida tudo aquilo a que os seres humanos são impelidos pela pulsão. Adverte, todavia, que o excesso de ternura por parte dos pais torna-se pernicioso na medida em que acelera a maturidade sexual. Mimar a criança também seria prejudicial por torná-la incapaz de renunciar temporariamente ao amor em épocas posteriores da vida, ou a se contentar com menor dose dele. Observando que os pais neuróticos em geral tendem a exibir uma ternura desmedida e que contribuem com suas carícias para despertar a disposição da criança para o adoecimento neurótico, deduz desta prática que “os pais neuróticos têm caminhos mais diretos que o da herança para transferir sua perturbação para seus filhos.”236

Este parece ser o caso da mãe de André que, em uma passagem lapidar do romance, assume as feições de uma meretriz ao promover o amor dos filhos com seu afeto ilimitado: “Ana, te chamo ainda à simplicidade, te incito agora a responder só por reflexo e não por reflexão, te exorto a reconhecer comigo o fio atávico desta paixão: se o pai, com seu gesto austero, quis fazer desta casa um templo, a mãe,

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Freud: edição standard brasileira. Direção geral de tradução de Jayme Salomão. Vol. XVII.

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transbordando no seu afeto, só conseguiu fazer dela uma casa de perdição.” (LA, p.136). Um amor neurótico também é legado a outras gerações nos romances de Milton Hatoum, em que as matriarcas foram primeiramente vítimas dos respectivos pais, dos quais não conseguiram se separar naturalmente quando jovens:

Emilie não agüentou o próprio corte com os pais, aspirando a vida do claustro: Minha mãe e os irmãos Emílio e Emir tinham ficado em Trípoli sob a tutela de parentes, enquanto Fadel e Samira, os meus avós, aventuravam-se em busca de uma terra que seria o Amazonas. Emilie não suportou a separação dos pais. Na manhã de despedida, em Beirute, ela se desgarrou dos irmãos e confinou-se no convento de Ebrin, do qual sua mãe já lhe havia falado. (RCO, p.33).

Em Dois irmãos o cenário se repete: Zana, após a morte do pai no exterior, sofreria desgraçadamente, vítima da torrente de lembranças do progenitor. Entregue a uma dor desmedida, prostra-se por “Duas semanas trancada no quarto, duas semanas sem dormir com o Halim. Gritava o nome do pai, atordoada, fora de si, inacessível. Os vizinhos escutavam, tentavam consolá-la, em vão.” (DI, p.43).

Esta união, que parece transcender a separação e a morte sem ser superada de todo, seria transmitida às gerações seguintes, na forma de um vínculo exacerbadamente forte com os filhos, fossem legítimos ou adotivos. O primeiro passo é dado pelas mulheres que investem-se da imagem de grande-mãe superprotetora, da qual todos dependem para organizar e controlar a vida, gravitando ao redor. Em Relato de um certo

Oriente o narrador decreta que os demais não lhe fizeram falta quando

saiu de casa, diferentemente da mãe: “– Sabes que nunca precisei deles, mas Emilie... como podia viver sem ela? Ninguém podia viver longe de Emilie, nem refutar suas manias.” (RCO, p.21). A narradora rememora ainda as reuniões das amigas em torno do filho mais novo, quando revela que “fazia gosto observar sua postura de mãe-do-mundo” (RCO, p.23). Primeiro os filhos legítimos, depois as crianças adotadas crescem e vão embora, mas o ritual é intensificado ao ser substituído pela metafórica “adoção” de todos os necessitados das cercanias. É assim que Emilie cria o dia de doação e intervenção, oferecida e prestada em homenagem à memória de Emir, quando “curumins e

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mendigos engrossavam a fila, e os doentes que lhe mostravam as chagas e os membros carcomidos ela encaminhava a Hector Dorado.” Em paga por sua generosidade, “Muitos desses agraciados lhe ofereciam presentes que eles preferiam chamar de „lembrancinhas para a mãe de todos‟”. (RCO, p.100).

Em Dois irmãos a situação não é muito distinta, como afirma o pai, um romântico tardio, que padeceu sem nunca passar de um modesto negociante, possuído pelo fervor passional. Nael sintetiza o quadro sem maior pudor: “Então era isso, assim: ela, Zana, mandava e desmandava na casa, na empregada, nos filhos. Ele, paciência só, um Jó apaixonado e ardente, aceitava, engolia cobras e lagartos, sempre fazendo as vontades dela, e, mesmo na velhice, mimando-a, „tocando o alaúde só para ela‟, como costumava dizer.” (DI, p.41). O ímpeto de Zana na defesa dos filhos, especialmente de Omar, sua grande paixão, a impedia de enxergar minimamente os fatos, conduzindo a rotina da casa e modelando seus próprios valores em razão do rebento. Bem o ilustra a defesa inflamada do Caçula, cuja expulsão da escola considerou injusta, mesmo após o rapaz surrar um professor em sala de aula: “Soltou cobras e lagartos nas ventas do irmão diretor. O senhor não sabia que o meu Omar adoeceu nos primeiros meses de vida? Por pouco não morreu, irmão. Só Deus sabe... Deus e a mãe... Ela suava, entregue ao êxtase de grande mãe protetora.” (DI, p.27).

Embaralhando afetividade e sexualidade numa entrega desmedida, as mães superprotetoras impedem o pleno desenvolvimento dos seus descendentes. É o que podemos constatar dando prosseguimento às considerações de Freud sobre as transformações da puberdade. No terceiro de seus ensaios dedicados ao tema, afirma que a normalidade da vida sexual só é assegurada pela exata convergência das duas correntes dirigidas ao objeto sexual e à meta sexual: a de ternura e a sensual. A primeira delas comportaria em si o que resta da primitiva eflorescência infantil da sexualidade. Com a passagem, os alvos sexuais são amenizados e agora representam o que se pode descrever como a corrente de ternura da vida sexual. Para estabelecer tal paralelo o austríaco faz uso da investigação psicanalítica, uma forma capaz de demonstrar que, por trás dessa veneração e respeito, ocultam-se as antigas aspirações sexuais, agora imprestáveis, das pulsões parciais infantis.

A escolha do objeto da época da puberdade tem de renunciar aos objetos infantis e recomeçar como uma corrente sensual. Não restam