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mas o homem-ser-vivo Processos como os de natalidade, mortalidade e de longevidade se

1.4 Contaminação narrativa

Ao percorrermos as primeiras páginas de Lavoura arcaica, único romance da exígua lista de publicações de Raduan Nassar, nos deparamos com a declaração convulsionada de André, revelando “Eu sou um epilético”73

, numa afronta às lições de moral ofertadas pelo irmão mais velho. Certo da tempestade que a notícia provocaria na

72 “Chegou ao fundo de si mesmo e reconheceu toda a profundidade da vida apenas aquele que um dia abandonou tudo e foi abandonado por tudo, para quem tudo soçobrou e se viu só com o infinito: é um passo maior que Platão comparou com a morte.” BLANCHOT, Maurice. La

escritura del desastre. Tradução de Pierre de Place. Caracas: Monte Avila, 1990. P. 87.

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NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. P. 41. Nas referências seguintes, todas relativas a essa edição, a indicação das páginas será dada no corpo do texto, entre parênteses, logo após a transcrição das passagens citadas, acrescida das iniciais LA.

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fazenda onde vivia, capaz, inclusive, de abalar as bases aparentemente sólidas que os uniam, completa sua previsão sombria, aos gritos:

[...] você tem um irmão epilético, fique sabendo, volte agora pra casa e faça essa revelação, volte agora e você verá que as portas e janelas lá de casa hão de bater com essa ventania ao se fecharem e que vocês, homens da família, carregando a pesada caixa de ferramentas do pai, circundarão por fora a casa encapuçados, martelando e pregando com violência as tábuas em cruz contra as folhas das janelas, e que nossas irmãs de temperamento mediterrâneo e vestidas de negro hão de correr esvoaçantes pela casa em luto e será um coro de uivos, soluços e suspiros nessa dança familiar trancafiada e uma revoada de lenços pra cobrir os rostos e chorando e exaustas elas hão de amontoar-se num só canto e você grite cada vez mais alto „nosso irmão é um epilético, um convulso, um possesso‟ (p.41-42)

A discussão é ambientada em um quarto qualquer de uma velha pensão interiorana, para onde Pedro se dirige na tentativa de reconduzir o irmão ao seio familiar. O que a torrente de palavras demonstra, entretanto, não é a consumação do resgate, o acolhimento do irmão enfermo, mas a certeza prévia da rejeição, da exclusão que visaria resguardar o bem estar da coletividade, da qual se vê excluído. Certeza que, vale assinalar, é de responsabilidade do narrador personagem. É dele a visão em que, ao colocarem-se a par de sua doença, as ações dos “homens da família” e das “irmãs de temperamento mediterrâneo” desencadeariam-se de modo a impedir sua reaproximação – na metáfora da casa lacrada –, e decretar sua perdição – no lamento desesperado que retrata André não apenas como epilético e convulso, mas também como possuído, demônio a ser exorcizado por tábuas em cruz e cantos enlutados.

Articulada dessa maneira, a epilepsia é vista pelo narrador como a responsável pelo efetivo desvio da regra. O filho que abandonara a casa talvez pudesse ser perdoado e reintroduzido no convívio familiar, já o doente, louco convulso, não contaria com a mesma sorte. A continuação do diálogo, melhor dizendo, do monólogo, apenas reforça esse cenário. Além de tornar-se um estranho, um

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diferente, uma anomalia em última instância, o mal do qual padecia aterroriza pela possibilidade de contágio, de propagação, daí a necessidade do doente ser apartado, esconjurado até. Ao evidenciar o quanto esta regra – a ilusão de pertencimento a um grupo – é um equívoco, um discurso artificial, manipulador e, portanto, insustentável, a narrativa de André denuncia a presença de uma ordem opressora.

Ramificação do poder, esta instância seria responsável por tentar controlar a vida dos seres – do nascimento, passando pela saúde coletiva, física e mental, até a morte – limitando-os a animais viventes, regidos por leis que determinam sua participação e, principalmente, sua exclusão do direito. Nesse ínterim, vale lembrar as considerações de Michel Foucault sobre o biopoder, desdobradas por Giorgio Agamben ao atualizar a figura do homo sacer e propor o estado de exceção como premissa para que se compreenda o modus operandi da exclusão nas sociedades capitalistas contemporâneas. Nas palavras do autor, “não existem, primeiro, a vida como dado biológico natural e a anatomia como estado de natureza e, depois, sua implicação no direito por meio do estado de exceção. Ao contrário, a própria possibilidade de distinguir entre vida e direito, anomia e nomos coincide com sua articulação na máquina biopolítica”.74

A fim de pensar esses conceitos na esfera do discurso literário, é interessante, primeiramente, desdobrá-los. Massimo Cacciari, ao refletir sobre a existência de um nomos de ordem divina, observa no termo a presença de um território que é tomado e repartido, sem que se exclua a justiça desta partilha. Sua contraparte, o anomos, seria o imoral, o impuro. Ter um lugar, por conseguinte, implicaria decidir entre tomar, conquistar, dividir e ordenar.75 Agamben, ao discorrer sobre o funcionamento dos dispositivos da lei ou nomos, acrescenta ainda que isso ocorre mediante uma ficção, a de que, para pertencer a um lugar, tomar, conquistar, dividir e ordenar são imperativos, conforme assinala: Vida e direito, anomia e nomos, auctoritas e potestas resultam da fratura de alguma coisa a que não temos outro acesso que não por meio da ficção de sua articulação e do paciente trabalho

74

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. P. 132.

75 CACCIARI, Massimo. Nomes de lugar: confim. Traduçao de Giorgia Brazzarola. Revista de

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que, desmascarando tal ficção, separa o que se tinha pretendido unir. Mas o desencantamento não restitui o encantado a seu estado original: segundo o princípio de que a pureza nunca está na origem, ele lhe dá somente a possibilidade de aceder a uma nova condição.76

Assim, não basta nascer para pertencer, há mecanismos que exigem uma ação em troca de validar as formas de pertencimento.77 Em sentido inverso, também não é suficiente conhecer esses meandros políticos, jurídicos e sociais para deles fugir: se a perda da ingenuidade tende a aumentar as distâncias, insere-nos em outra esfera de pensamento e discussão. Seguindo essa lógica, não é suficiente para André ter nascido na mesma família e ter sido criado sob os mesmos auspícios, pois, para “receber o seu quinhão” ele precisa adequar-se aos preceitos (valores, tradições, leis, equilíbrio físico, mental, moral e até espiritual) impostos pela família/sociedade. O desvio dado pela doença não provoca essa distorção, é um sintoma, com efeito, de um problema maior, empregado para lançar luz sobre os lugares pré-determinados, sobre as fronteiras que impedem o livre vir a ser. Ao retornar, André mostra-se consciente do tratamento fora do comum despendido pela família, ressaltando o desejo de todos de que fosse reintegrado à ordem:

[...] embora toda iluminada, inclusive os quartos de dormir, a casa estava em silêncio, vazia por dentro, a família atendia com certeza a recomendação de Pedro, cuja palavra persuasiva beirava a autoridade do pai, gozando de audiência: eu era um enfermo, necessitava de cuidados especiais, que me poupassem nas primeiras horas, sem contar que todos tinham o bom pretexto de preparar às pressas a minha festa. (LA, p.155) Atentando para os romances de Milton Hatoum, escritor afamado pela imprensa e pelo público78, ressaltamos que a narradora de

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AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Ibid., p. 132-133. 77

Há que se destacar que essa ação não exclui, antes resulta na exposição das muitas contradições inerentes à tentativa de pertencer. (AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004).

78 Afeito às premiações, às noites de autógrafos e aos festivais literários, Milton Hatoum publicou, com o alarde das grandes editoras, romances que foram traduzidos para uma dezena

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Relato de um certo Oriente compartilha a condição de desajuste junto

aos seus. Reclusa em uma clínica de repouso, a filha adotiva de Emilie, embora também assinale um desequilíbrio de ordem emocional, atribui a outras causas as razões de sua diferença. Interessada em descobrir as circunstâncias de sua internação, aguardava que lhe revelassem se fora a mãe quem a conduzira àquele lugar “depois do meu último acesso de fúria e descontrole, quando nada ficou de pé nem inteiro no lugar onde morava.”79

Para esta personagem, o problema enfrentado decorre das difíceis vivências, dos traumas experimentados ainda na infância, rejeição, abandono, morte, violência, que forçaram sua renúncia aos padrões vigentes, como deixa implícito ao afirmar que: “Do mundo da desordem, ofuscado pela atmosfera suja do movimento vertiginoso da cidade que se expande a cada minuto, eu ainda guardava as cicatrizes do desespero e da impaciência para sobreviver, dilacerada pela árdua conquista de prazeres efêmeros” (RCO, p.162).

Tomada como fio condutor nos dois romances, a doença simboliza a diferença, é abrigo do desajuste, e por isso nos auxilia a iniciarmos a reflexão sobre o exílio nestas obras. Se a doença é o eixo, há que se destacar, primeiro, como ela contamina personagens e, em seguida, de qual maneira prolifera-se através das estruturas narrativas. Em Relato de um certo Oriente, a narradora demonstra estar conformada com sua reclusão, desejosa até dessa segregação em meio aos desequilibrados: “Vim sem muita resistência, como um cego ou uma criança perdida que são conduzidos a algum lugar familiar. E ali, a alguns quilômetros do centro da cidade, a loucura e a solidão me eram familiares.” (RCO, p.160). Ora, se a falta de juízo e companhia não lhe eram estranhas, o mesmo não poderia ser dito da lucidez e da reunião junto aos familiares, responsáveis pelo despertar de incômodas