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Movimento 2. Vivendo o Movimento Autêntico: narrativa em 1ª pessoa

2. Construção de um cenário real

Um dia de encontro do grupo de aprofundamento de MA em São Paulo, no ano de 2016: Somos aproximadamente oito mulheres, entre 24 e 60 anos, além da facilitadora Soraya Jorge. Sentamo-nos em círculo e a fala passa entre todas as integrantes, acerca da pergunta “o que você quer mover?”. Cada uma encontrando- se imersa em seu momento de vida, suas questões, algumas mais leves, outras mais difíceis, todavia todas mergulhadas nas complexidades próprias do viver. Nesta roda de palavras, percebo: já estamos movendo. Através do círculo de falas, estamos estabelecendo um campo de escuta, de manifestar e fazer emergir questões, de sermos afetadas pela fala das outras, construindo confiança e intimidade, e exercitando o entendimento de estar no fluxo de movimento contínuo da vida.

As falas cessam. Levantamo-nos. Em um círculo grande que ocupa toda a sala, abrimos os braços, passamos os olhos por todas as integrantes, incluindo a facilitadora; olhamos para o centro do círculo, o espaço vazio que em breve será ocupado. O sino toca, fecho os olhos e entro no círculo. Torno-me movedora, junto com as demais integrantes, enquanto Soraya permanece fora e é nossa testemunha.

14 Tradução livre.

Como facilitadora e testemunha, Soraya vê-nos e cuida do tempo de duração da prática, que pode ter duração variada - desde 10 minutos a 1 hora, por exemplo. Ela indica o término através do tocar do sino novamente. Eu e as demais movedoras vamos, no tempo necessário, voltando a abrir os olhos e retornando ao círculo inicial. Ele finaliza-se tal qual o início: braços abertos, olhares circulando entre todas. Passamos por um período que chamamos de transição, onde individualmente escrevemos sobre a experiência. Faço registros tanto da fisicalidade (movimentos, sensações), quanto do que senti, imaginei e pensei. Após este momento, sentamo-nos em círculo e partilhamos pela fala ou pela leitura dos escritos. Somos estimuladas a fazer esta fala/leitura no momento presente, e não como narrativa de uma experiência passada. Depois da fala de cada movedora, a testemunha também fala, dá o seu testemunho. Com a conclusão de todas as falas, encerramos a prática.

Esta descrição é um exemplo de formato, que ilustra uma arquitetura, ou seja, uma estrutura básica. A prática da abordagem pode ter algumas variações que este cenário não contempla. Contudo, podemos com tal imagem fazer um contorno, configurar os elementos concretos que a caracterizam enquanto um território: a presença de movedor(es) e testemunha(s) em relação, e os diferentes momentos e ações da prática. Para Janet Adler “a forma externa deste trabalho é simples: uma pessoa move na presença de outra pessoa.” (1999a, p. 142)16. Como um cenário, vemos o espaço, as pessoas, as ações, as vozes e falas: o plano macro.

Há, no entanto, mais uma camada a ser levada em conta, que somente o olho que vê o invisível pode captar: cada uma de nós vivendo campos de afetos, que nos são próprios – individuais - ao mesmo tempo mergulhadas em um corpo maior - coletivo e compartilhado - resultante da composição destas subjetividades. Minha fisicalidade manifesta, ou investiga como manifestar, impulsos de movimento que surgem em meu corpo vibrátil, pelo abrir-se à “potência específica do sensível” (ROLNIK, 2014, p. 12).

Para falar do sensível, a autora recorre a pesquisas recentes em neurociências e cita Hubert Godard – pesquisador em Educação Somática e bailarino17 - para afirmar

16 Tradução livre.

17 Além de educador somático e bailarino, Hubert Godard é um pesquisador referência no campo da análise do movimento. Para saber mais, sugiro a leitura de KUYPERS (2010).

que nossos órgãos dos sentidos são portadores de uma dupla capacidade: uma cortical e outra sub-cortical. A primeira corresponde à percepção, que nos permite “apreender o mundo em suas formas para, em seguida, projetar sobre elas as representações de que dispomos, de modo a lhes atribuir sentido.” (ROLNIK, 2014, p. 12). A partir dessa capacidade, chegamos à noção de sujeito e objeto enquanto identidade, o que nos é muito útil para criarmos mapas exteriores, mediante representações em vigor, e com eles relacionar-nos. A segunda função dos nossos sentidos, reprimida na modernidade e por isso por nós desconhecida,

nos permite apreender a alteridade em sua condição de campo de forças vivas que nos afetam e se fazem presentes em nosso corpo sob a forma de sensações. O exercício desta capacidade está desvinculado da história do sujeito e da linguagem. Com ela, o outro é presença que se integra à nossa textura sensível, tornando-se assim, parte de nós mesmos. Dissolvem-se aqui as figuras de sujeito e objeto, e com elas aquilo que separa o corpo do mundo. (ROLNIK, 2014, p. 12).

É nessa direção que se afirma nosso corpo vibrátil, ligado a esta segunda capacidade – sub-cortical - dos nossos órgãos dos sentidos, a qual nos traz a perspectiva do micro e engloba afetos não materializados, imprevisíveis, em pleno devir.

Considerar somente o macro faria nos entrar em uma lógica de pensamento empobrecida, reduzida somente à realidade daquilo que se vê a olho nu. Nossa sensibilidade também estaria restrita, e nossos desejos teriam dois caminhos pouco produtivos: ou seriam encaminhados a significações prévias, contentando-nos com atitudes de conservação e obediência; ou seriam vividos como caos, algo incômodo, a ser evitado. De qualquer modo, estaríamos desprovidos de recursos para acessar sensações que nos jogam ao indefinido e à criação, em qualquer aspecto da vida que estejamos falando.

Por último, resultaria por minguar também a potência de nossa subjetividade, por mantê-la resguardada enquanto interioridade ou um tipo de conectividade pequena com o ambiente, entendendo este como separado. É, portanto, na relação entre a percepção e o vibrátil que há uma tensão que impulsiona a potência de criação, “na medida em que nos coloca em crise e nos impõe a necessidade de

criarmos formas de expressão para as sensações intransmissíveis por meio das representações que dispomos.” (ROLNIK, 2014, p. 13).

O que se quer é a materialização dos afetos, o encontro do micro com o macro, criando agenciamentos no corpo, nas relações, no espaço. Deste modo, a separação entre micro e macro é apenas didática; um não existe sem o outro. Não há um dentro separado de um fora (JORGE, 2016), mas um encontro – uma relação - que configura uma forma e produz realidade.

Neste espaço entre o micro e o macro, o invisível e o visível, podemos também entender a estrutura do MA como foi apresentada por Soraya Jorge18, com suas características rituais, ou, nas palavras da pesquisadora, como um “ritual contemporâneo”. A pesquisadora entende-o como ritual por possuir uma estrutura que se repete, ao mesmo tempo em que promove e incentiva a criação no momento, num duplo movimento entre tradição e renovação. Como tradição, aponta para a formatação do círculo, que é algo que pode ser encontrado na história da humanidade como espaço de convivência e de encontro, e que remete a aspectos ancestrais. No círculo, algumas pessoas se movimentam, em estado de ação, enquanto as outras se põem em manutenção, sustentando-o:

Isso é um campo muito fértil, de se manter os olhos abertos e os olhos mais fechados, que é o praticado pelo MA. Esses olhos fechados podem ter o simbólico de você sair do conhecido, sai para um estranhamento, sair do mundo ordinário, com a sustentação daquele de olhos abertos, que podem sustentar o ordinário, e também o caos ou também o corpo sem órgãos, que é também vivido nesse ritual contemporâneo. [...] Embora o MA tenha também outros formatos como apenas duas pessoas, três pessoas, mas enquanto grupo, tem sempre esse círculo. (JORGE, informação verbal)