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A construção discursiva dos sujeitos no gênero piada a partir da estereotipia

No documento Os sujeitos (páginas 61-65)

Os sujeitos em torno dos quais se constituem as piadas e anedotas resultam de uma identidade. Conforme Possenti (2013), ela é uma representação imaginária, porém tem

amparo no real. Ainda que não se saiba onde nem como começou tal identidade, sempre há uma motivação que justifica a existência dela. Certamente, a identidade não é a reprodução da realidade, mas apresenta vestígio desta. Semelhante à identidade, o estereótipo é social, imaginário e construído. Ele se manifesta em meio à sociedade, ultrapassa gerações e se materializa sob a forma de redução do seu objeto-alvo, os sujeitos: a “inglesa”, o “baiano”, o “argentino”, a “loira”, o “gaúcho”, o “nordestino”, o “homossexual”. Em torno desses sujeitos há uma construção identitária que eles não assumem, no entanto, a eles é atribuída pelo Outro. A isso, o autor denomina simulacro. Dizer que a “inglesa” é fria, o “baiano” é preguiçoso, o “argentino” é arrogante, a “loira” é burra ou disponível e o “gaúcho” é veado não representa uma verdade, mas estereótipos atribuídos a esses sujeitos e arraigados na nossa cultura. Esses dizeres não representam uma verdade, visto não terem comprovação científica. Ao contrário, as piadas trazem à tona discursos submersos, os quais a sociedade não os assume publicamente e, nelas por despertarem o riso são veiculados com naturalidade. Certamente, tais discursos são apareceriam noutros gêneros textuais. Em relação aos estereótipos, o autor justifica:

As piadas funcionam em grande parte na base de estereótipos, seja porque veiculam uma visão simplificada dos problemas, seja porque assim se tornam mais facilmente compreensíveis para interlocutores menos especializados (POSSENTI, 1998, p. 26).

Como as piadas veiculam em todas as camadas sociais, busca-se uma linguagem acessível a todas elas. A busca por essa linguagem de fácil compreensão tem em si uma intenção – facilitar a compreensão dos interlocutores com pouco conhecimento. Em contrapartida, o gênero textual piada não se propõe a argumentar em torno de um tema, nem apresentar um posicionamento acerca de algo. Por ter estrutura curta a tendência é que apresente uma visão simplista, grosseira, sem explicações. Daí a margem para os estereótipos. Até aqui, temos apresentado os grupos-alvo de piadas, no entanto, no dia a dia não se ri apenas dos sujeitos desses grupos. Um acontecimento corriqueiro, comum a qualquer pessoa também se constitui em motivo de riso, embora pareça estranho rir do outro mediante uma situação constrangedora. Conforme Bergson (1983) o riso é motivado pela falta de agilidade e por certo efeito de rigidez, de modo que o corpo permaneceu com o mesmo movimento quando deveria realizar outro. Assim, não se ri da pessoa em si, mas da queda, da interrupção do movimento até então tido como normal. Da mesma forma também é motivo de riso a repetição de um movimento de alguma parte do corpo, o qual ele considera automático. O que há nesses casos é uma desarmonia do movimento. Contudo, a ocorrência de tal

anormalidade causa ao outro riso porque o descompasso não traz à pessoa consequências dolorosas. Freud (1996) discutindo acerca dos chistes, também faz menção ao automatismo enquanto técnica utilizada no discurso humorístico. Segundo o autor:

Uma pessoa que vinha reagindo sempre da mesma forma, várias vezes em sucessão, repete tal modo de expressão na ocasião seguinte, quando este é inadequado e prejudicial às suas próprias intenções. Negligencia adaptar-se às necessidades da situação, cedendo ao automatismo do hábito (FREUD, 1996, p. 70).

Nesse sentido, o automatismo está relacionado à repetição do gesto, da ação. A força do hábito leva a pessoa repetir o gesto sem se dar conta daquilo que está executando. O automatismo anula o uso da consciência por parte do sujeito. Freud enfatiza que o automatismo, muitas vezes, contraria a intencionalidade de quem o pratica. Você poderia agir de uma forma, no entanto, faz esforço para agir de outra maneira. De modo que nos chistes tal contrariedade proporcionada pelo automatismo tem como resultado o humor.

De certo modo, aquilo que Bergson (1983) defende como comicidade está relacionada com a definição de cômico elaborada por Aristóteles para quem o cômico é “uma desarmonia de pequenas proporções e sem consequências dolorosas”. Reportando-se acerca da Filosofia da Arte, Ariano Suassuna ao apresentar a definição de cômico proposta por alguns autores, afirma que “o escritor é um mentiroso”. Segundo ele, há dois tipos de mentira. No caso da mentira presente no texto cômico, tem-se uma mentira saudável, que não causa transtornos ao outro. A mentira criada pelo escritor é uma forma de demonstrar sua insatisfação perante a realidade. É uma ruptura com a ordem do discurso e das coisas. Para isso ele cria um mundo diferente.

Percebe-se que o estereótipo não distingue os sujeitos pertencentes a um mesmo grupo, ao contrário; ele os unifica, como se todos apresentassem a mesma conduta. Daí, a ideia de redução do outro, vítima do preconceito. É nessa perspectiva que Possenti afirma: “Ora, os chistes que fundam em estereótipos são sempre agressivos, para usar a classificação de Freud, e, portanto, devem referir-se a alguma diferença construída em condições históricas de disputa” (Possenti, 2013, p. 41). Os estereótipos representam o traço negativo atribuído ao sujeito. Por sua vez, o traço de identidade admitido pelo sujeito opõe-se àquele negativo. O sujeito “loira”, ao contrário do seu estereótipo, considera-se inteligente e esse é traço positivo. A dualidade caracteriza as piadas por opor dois discursos – dois estereótipos – um básico e o oposto dele. O estereótipo negativo caracteriza-se por um rebaixamento físico ou moral. Para que ele ocorra, o linguista destaca:

[...] é necessário que tal traço seja apresentado por meio de uma forma engenhosa, que, em geral de modo indireto, permite a apreensão de um sentido que a sociedade controla, relegando-o a situações privadas de interlocuções ou, se públicas, circunscritas a espaços destinados a isso, como teatros e casas de show, horários específicos de rádio e de TV etc. (POSSENTI, 2013, p. 51).

A criatividade e habilidade do piadista são fatores essenciais a fim de que o texto produzido torne-se humorístico evitando-se que funcione como palavras de calão. Possenti (1998) afirma a utilidade das piadas quando se trata de trabalhar com as condições de produção. Ele chama a atenção para a importância dessas condições na constituição do gênero piada. Ou seja, esse texto não depende apenas de alguém para enunciá -lo; requer também condições exteriores onde ele possa se efetivar e regras para esclarecer o porquê de sua ocorrência nuns lugares e não noutros. Enfim, os lugares onde as piadas ocorrem são aqueles nos quais os discursos são conflitantes em detrimento de disputas e de preconceitos.

Afora o rebaixamento anteriormente mencionado e a boa técnica também causa o riso a economia psíquica. Esse triângulo foi evidenciado por Aristóteles em sua teoria. A piada parece ser um gênero isento de coerção; entretanto, há limites que restringem a circulação desse dizer, os locais adequados para tal ocorrência, o momento e o público a se fazer presente em tais ocasiões. A crítica feita a humoristas ou apresentadores de programas humorísticos em detrimento da forma como abordam determinadas temáticas exemplificam esse cerceamento. É o princípio da interdição de que fala Foucault (2004a) em A ordem do discurso. Esse controle é perceptível nos programas de televisão, não só em relação aos programas humorísticos, mas aos programas de outra natureza. A indicação feita antes de um programa de televisão iniciar, informando a que faixa etária tal programa se adéqua é um exemplo de interdição. Nesse sentido, a responsabilidade é delegada aos pais ou responsáveis pelos menores no que concerne à programação adequada aos mesmos.

Conforme temos percebido, o texto humorístico se constitui com o auxílio de técnicas, as quais corroboram com a existência da comicidade. Além das técnicas citadas, Bergson menciona a repetição como uma técnica comum à comédia clássica e chama a atenção para aquilo que causa o riso, quando se trata do emprego dessa técnica: “a repetição de uma expressão não é risível por si mesma. Ela só nos causa riso porque simboliza certo jogo especial de elementos morais, por sua vez símbolo de um jogo inteiramente material”. (BERGSON,1983, p.37 ). Insistindo ainda nas técnicas presentes no texto humorístico, Possenti (1998, p. 126) discorrendo acerca da técnica utilizada por Veríssimo, resume-a, afirmando “Em outras palavras, fazer humor é basicamente produzir um equívoco, ou melhor, desnudar um equívoco possível”. Se um termo/expressão/sentença não sinalizam nenhuma

ambiguidade, cabe ao humorista desfazer a unicidade do texto. Ainda no âmbito da adoção de uma técnica a fim de provocar a comicidade, Bergson (1983, p.54) propõe uma regra geral expressa da seguinte forma: “obteremos uma expressão cômica ao inserir uma ideia absurda num modelo consagrado de frase”. As frases feitas são comuns no dia a dia dos falantes de uma língua. Eles as usam, ouvem-nas e as compreende; entretanto, o autor esclarece que em meio a uma frase, a qual já se sabe de cor, algo absurdo e surpreendente é inserido. A percepção desse novo depende da perspicácia do ouvinte.

No documento Os sujeitos (páginas 61-65)