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Gênero textual: o exercício da linguagem nas práticas sociais

No documento Os sujeitos (páginas 54-57)

A comunicação humana realiza-se através da linguagem, quer seja verbal ou não verbal. É uma capacidade inerente a ele, visto que as espécies animais do ponto de vista linguístico, não fazem uso da linguagem e as ações que conseguem realizar, representam atos biologicamente programados nas espécies. Em se tratando da linguagem verbal, o ser humano a utiliza sob a forma de gêneros textuais, os quais acompanham a dinamicidade da vida social. Na sociedade pós-moderna, praticidade, agilidade e eficiência na comunicação são características necessárias nas relações interpessoais e no mundo do trabalho. Assim, os gêneros textuais, naturalmente, moldam-se a essa condição. Não é estranho o fato de os gêneros renovarem-se a fim de assegurar sua função essencial - a comunicação. A dinamicidade, plasticidade e maleabilidade dos gêneros textuais são características defendidas por Marcuschi (2010) para quem o surgimento deles está relacionado às inovações tecnológicas. Nesse sentido, gêneros textuais utilizados há décadas sofreram mudanças, ou seja, adquiriram uma nova roupagem e continuam a ter sua importância na comunicação.

Com o desenvolvimento tecnológico, outros gêneros orais e escritos têm surgido. Em relação a isso, Marcuschi (2010, p.21) assegura que: “[...], esses gêneros não são inovações absolutas, quais criações ab ovo, sem uma ancoragem em outros gêneros já existentes”. Por mais inovações que existam nos gêneros textuais que estão surgindo, há neles características dos gêneros em desuso. Como se não bastasse, além dessa inovação, é comum o hibridismo, um gênero que contém características de outro gênero. Isso revela o quanto a linguagem é plástica. O autor ressalta que nesses casos, a função sócio comunicativa caracteriza e define os gêneros, no entanto, ele não despreza a forma, o suporte nem o ambiente como fatores determinantes para tal classificação. Não há, entre os linguistas, um consenso sobre qual desses fatores, de fato, determina a classificação de um gênero. Independente disso, os gêneros textuais é uma realidade, estão presentes nas interações entre os falantes, oralmente ou por escrito, dentre eles estão as piadas.

De acordo com Bakhtin (2003), um gênero textual caracteriza-se por seu conteúdo, pelo estilo da linguagem, além da sua construção composicional. “Todos esses três elementos [...] estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação” (Bakhtin, 2003, 262). Esses elementos são comuns à produção e à veiculação dos gêneros textuais. Uma

piada caracteriza-se, em geral, pela ambiguidade, discurso direto, polissemia, imprevisibilidade, surpresa, sentido figurado. Quanto aos temas são os mais diversos possíveis: regionalismos, defeitos físicos e morais, catástrofes e tragédias. Tudo isso abordado conforme o estilo do humorista e as técnicas que ele emprega. Em contrapartida, o autor lembra que há gêneros mais propícios ou mais adequados para a manifestação do estilo individual. De modo que há um certo controle em relação ao produtor do gênero. Afora os elementos citado por Bakhtin, há nos gêneros textuais, os tipos textuais: narrativo, descritivo, expositivo, argumentativo e injuntivo. Num gênero, aparece mais de um tipo; embora um deles predomine. Na piada é comum a narração predominar em relação aos demais tipos, os quais também podem se fazer presentes. Ou seja, é o fenômeno da heterogeneidade tipológica discutido por Marcuschi (2010). Da mesma forma não deve causar estranheza que um gênero textual surja com a função de outro gênero.

Tão importante quanto saber reconhecer um gênero textual é saber produzi-lo e adequá-lo à situação comunicativa. Com a piada não é diferente. É considerado inadequado alguém contar uma piada durante a celebração da missa, de um culto ou num júri, visto que a natureza desse gênero é incompatível com os eventos comunicativos comuns a esses ambientes. A maioria dos falantes tem consciência disso; no entanto, quando ocorre o contrário, conclui-se que o infrator deseja romper com a ordem do discurso. A ruptura demonstra o grau de liberdade do sujeito evidenciado pela Análise do Discurso. Bakhtin (2010) inaugura uma nova fase da Linguística, o dialogismo e, com isso, queria demonstrar que o esquema falante-ouvinte era insuficiente para explicar como ocorriam as interações entre os falantes. Daí ele assegurar que:

[...], o ouvinte ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.; [...] toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva [...]; toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante. A compreensão passiva do significado do discurso ouvido é apenas um momento abstrato da compreensão ativamente responsiva real e plena, que se atualiza na subsequente resposta em voz real alta. [...] (BAKHTIN, 2010, p. 271).

O texto humorístico, mais precisamente, a piada é uma espécie de texto livre, aparentemente, sem dono. Por essa razão, as pessoas se acham no direito de proferir piadas em qualquer lugar ou situação, independente do seu teor. Daí, escutarmos piadas as mais variadas possíveis, de teor mais ou menos agressivo, como também o suposto direito de dizer piada com quem quiser ou o que quiser. Há lugares convenientes e/ou inconvenientes para se

proferir piadas. A própria sociedade estabelece este controle, assim como para realizar outras ações. Da mesma forma, é o conteúdo da piada, o qual pode repercutir, a ponto de o piadista necessitar dar explicações a respeito do que foi dito. A piada é um gênero textual que demanda responsabilidade da parte de quem a profere. Dizer aleatoriamente o que vier à mente sob o pretexto de que “era só uma brincadeira!”, nem sempre passa despercebido aos ouvidos de quem ouve. Nesse sentido, uma vez ou outra, ouve-se falar na repercussão causada nos meios de comunicação de determinada piada dita por esse ou aquele humorista. Numa situação dessas, o riso deixa de ser instrumento de crítica social. Ao contrário, passa a significar aquilo que o piadista não diria se estivesse numa situação de comunicação tida como séria.

Embora muito comum na sociedade, as piadas, conforme Possenti (2003) no artigo Limites do humor publicado na revista Língua e Literatura: Limites e Fronteiras, têm sido marginais, em se tratando de corpus para a pesquisa. Este autor aponta dois fatores. O fato de as piadas serem de origem popular e anônima, produzida por quem não possui status de autor, ainda que o resultado dessa produção seja de qualidade. Essa descrença também é comum noutros gêneros populares, a exemplo do cordel e da cantoria. A outra causa citada pelo autor diz respeito aos temas tratados nas piadas. Em geral, defeitos, imperfeições humanas passíveis de ocorrer com qualquer sujeito. Entretanto, por não assumir tal condição, finge-se elegante, como se a questão/problema atingisse somente o outro, jamais um de nós. A primeira causa apontada por Possenti nos remete às relações de força, às formações imaginárias. Não se sabe quem as produziu. Provavelmente, alguém de pouca instrução, de condição social não elevada; enfim, o dizer desse sujeito não ecoa com tanta relevância como o dizer de quem assume uma posição social de maior significância. Quanto à outra causa, ela nos lembra a interdição: há temas, ideias, questões, as quais devem ser evitadas ou, se veiculadas, não devem circular em todos os momentos, a qualquer tempo, nem ditas por todo e qualquer sujeito.

Em relação à circulação das piadas, Possenti (2003) afirma a inexistência de repressão, mas a existência de incentivos à produção de piadas, como também controle com relação aos sujeitos-alvo desse gênero e às formas de distribuição. Daí, ele complementa:

Ou seja, não se compreende o campo pela descoberta de mecanismos de proibição, e sim pelo desvelamento dos procedimentos de produção e, especialmente, das formas e canais de circulação. É importante dizer – embora devesse ser necessário – que a negação da hipótese da repressão não implica na defesa da livre produção e circulação, e sim na construção – ou descoberta – de um outro aparato discursivo (POSSENTI, 2003, p.105).

Nesse sentido, não seria produtivo estabelecer uma censura em relação à contação de piadas, mas uma revisão no processo de elaboração das mesmas, a fim de evitar constrangimentos. Em geral, as piadas de humor negro são as que mais causam polêmicas por terem como base episódios negativos, trágicos, defeitos físicos ou acidentes. Possenti (2003) recorre a teorias psicológicas para explicar o fato de esses temas serem alvos de piadas. Uma das teorias psicológicas afirma que a violência é natural do ser humano e ele sente a necessidade de dar vazão a ela. A educação recebida pelo sujeito o orienta no sentido de evitar a violência. Assim, esse desejo é reprimido. E a piada se constitui numa oportunidade de o sujeito extravasar tal sentimento. Quanto à outra teoria, afirma-se que o ser humano ri da própria desgraça, no intuito de mostrar que é superior a ela. Nesse caso, utiliza -se a estratégia da resistência em relação aos fatores externos.

No documento Os sujeitos (páginas 54-57)