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Em um contexto de aprofundamento dos problemas econômicos, após o período de conflito civil no qual vigorara o chamado “comunismo de guerra”, Lenin evolui no modo de enfrentamento dos problemas práticos então colocados. Aquilo que em 1918 fora

qualificado como a “terceira tarefa” passa a ser chamado, a partir do IX Congresso do Partido Comunista Russo (1920), “construção econômica pacífica” (LENIN, 1982, p. 266 e

passim). O movimento antecede em cerca de um ano o lançamento da nova política econômica, a NEP, uma abordagem inteiramente nova sobre a economia socialista, que buscava, por meio de concessões à iniciativa privada e da criação de sociedades mistas, a exploração de processos capitalistas em benefício da reconstrução econômica. Introduzia- se, em termos práticos, uma modalidade de capitalismo de Estado como forma concreta de transição ao socialismo nas condições de um país semifeudal.

Com o lançamento da consigna “construção econômica pacífica”, o que a princípio

parece ser uma mera troca de nomenclaturas, sem maior significado político-prático, traz em si uma sutil mudança de orientação. Esta se encontra codificada, em particular, no

termo “pacífica”, que denota um esforço menos ostensivo e mais habitual, de caráter

extramilitar. Evita-se, assim, a linguagem flagrantemente caserneira materializada no

termo “terceira tarefa”, além de tudo inadequada pela atribuição do qualificativo “terceiro”

a algo que, naquele momento, se tornava primeiro. Não menos digno de atenção é o termo

“construção”, quando seria possível, e até esperável, que fosse utilizado “revolução”, no contexto de uma “revolução econômica pacífica”. Convenhamos, porém, que, como em “revolução permanente” — consigna erguida ainda antes de 1917 por Leon Trotsky —, o termo “revolução” (mais até que “permanente”) soa inadequado, ainda mais para o tipo de

esforços que se empreendiam entre 1917 e 1923, período no qual a principal tarefa era pôr

fim à guerra e fazer retornar o país à normalidade. Em contexto tal, “revolução” corria o risco de assumir o sentido de um “estado permanente de exceção”, espécie de convulsão

continuada da sociedade. Como mostra Raymond Williams em Keywords, as palavras derivam seus significados da realidade social, mudam com as condições históricas e são também vetores dessa mudança.

O mais importante, contudo, é que nesse sutil ato de ressignificação reside, conforme veremos adiante, o início de um deslocamento teórico-político mais amplo. No discurso leninista, o acento se transfere, progressivamente, da economia para a cultura — esta última tornando-se, em tempos de paz, o elo capaz de permitir uma abordagem eficaz dos problemas da reconstrução econômica e da elevação da produtividade.

A partir de 1920, com o início da vitória dos comunistas na guerra civil, havia-se tornado claro que a ameaça de restauração assumia nova face. Àquele momento, a Primeira Guerra Mundial já começava a ser narrada nos livros de história. As potências imperialistas, depois de contabilizados os estragos de seu entrechoque, começavam a se recuperar e a se reerguer. Davam-se conta, então, da magnitude do “perigo vermelho” e movimentavam-se freneticamente, seja de maneira aberta, seja nos bastidores da política internacional, para isolar, enfraquecer e sabotar a primeira experiência bem-sucedida de

poder proletário da história da humanidade. “Querem transformar a construção econômica

pacífica numa degradação pacífica do Poder Soviético”, denunciava LENIN (Id. Ibid. p. 270).

Em tempos de paz, com o centro da disputa transferido para a “frente sem sangue”,

os países dominantes do sistema capitalista-imperialista buscavam, agora com a utilização de meios não militares, derrubar o regime revolucionário ou, quando menos, dificultar ao máximo seu desenvolvimento rumo ao socialismo. No segundo intuito, na opinião de LENIN (Id. Ibid. pp. 678-679), estavam sendo em larga medida vitoriosos:

“Não derrubaram o novo regime criado pela revolução, mas também não lhe deram a possibilidade de dar imediatamente um passo em frente tal que justificasse os prognósticos dos socialistas, que lhes desse a possibilidade de desenvolver com uma enorme rapidez as forças produtivas, (...) [e] demonstrar a todos e a cada um claramente, com toda a evidência, que o socialismo encerra forças gigantescas e que a humanidade passou agora para um novo estágio de desenvolvimento (...).”

É nesse momento que, por meio do mote “construção econômica pacífica”, Lenin

procura expressar o desafio principal do poder soviético naquele momento. No que consistia exatamente a diretiva? Como abordá-la de um ponto de vista prático? O fulcro da questão residia em que, ao assumir o poder político central, derrotar a insurgência e iniciar a criação do novo Estado, de tipo soviético, protagonizado pela iniciativa criadora do operariado e das massas trabalhadoras, os comunistas haviam resolvido apenas uma pequena parte do problema. O principal ainda estava por vir, e o cerne da nova tarefa

residia no campo econômico: nas palavras de LENIN (1981b, p. 560), “realizar um registro

e um controle rigorosíssimo e geral da produção e distribuição dos produtos, elevar a produtividade do trabalho, socializar de fato a produção”.

O imperativo do momento era otimizar os recursos econômicos, expurgar todos os sinais de excessos e desperdícios,multiplicar a poupança e os investimentos e melhorar a qualidade do aparelho de Estado — todo ele construído sobre a base da ineficiente

burocracia tzarista. Para enfrentar desafio de tal monta, uma primeira arma à mão do poder soviético era o entusiasmo revolucionário das massas trabalhadoras. Esse elemento voluntarioso conferia certa dianteira ao processo revolucionário russo.

Lenin chega a teorizar que, em todas as revoluções precedentes, o entusiasmo revolucionário — que mantinha as massas em estado de permanente tensão, agregando

forças que possibilitavam “uma repressão implacável sobre os elementos de decomposição” — havia invariavelmente durado muito pouco. A causa social mais profunda, de classe, dessa parca duração “residia na debilidade do proletariado, o único em

condições (se é suficientemente numeroso, consciente e disciplinado) de atrair a si a maioria dos trabalhadores e explorados” (Id. Ibid. p. 578).

Esse elemento de vigor e exaltação era agora abundante, aparentemente inesgotável no curto prazo. Contudo, seria viável sustentar o novo regime apenas sobre a base da confiança e do júbilo, e com um nível de produtividade extremamente limitado, até a chegada da revolução socialista nos países mais desenvolvidos? Nestes, conforme analisava o líder russo, as forças conservadoras ligadas à defesa da ordem capitalista não se tinham enfraquecido. Achavam-se, ao contrário, revigoradas com as oportunidades abertas pela reconstrução econômica após a imensa queima de recursos produtivos ocorrida na Primeira Grande Guerra. É nesse contexto que LENIN (1982, p. 680) afirma:

“A fim de assegurar a nossa existência até o próximo choque militar entre o Ocidente imperialista contrarrevolucionário e o Oriente revolucionário e nacionalista, entre os Estados mais civilizados do mundo e os Estados atrasados à maneira oriental, os quais, não obstante, constituem a maioria, é preciso que esta maioria se consiga civilizar. A nós também nos falta civilização para passar diretamente ao socialismo, embora tenhamos para isso as premissas políticas.”

O líder comunista é bastante claro em suas assertivas. As condições políticas do avanço revolucionário estavam dadas, com o aparato estatal em mãos do proletariado

russo. Que faltava então? Faltava “civilização”. A palavra carrega consigo, providencialmente, múltiplas conotações. “Civilizar” quer dizer, antes de mais, progredir

materialmente, organizar a sociedade em bases capazes de garantir bem-estar e progresso social. O termo poderia ser facilmente substituído, nas condições contemporâneas, por

outra “palavra mágica”: desenvolvimento. Ambos os termos, em função de seu caráter

fortemente polissêmico, guardam em si o prodígio semântico de, evocando a dimensão material da vida em sociedade, fazer ao mesmo tempo referência implícita a certas potências intelectuais consagradas. Nesse sentido, civilizar não é apenas organizar o

progresso material, mas elevar as faculdades espirituais de um povo-nação, por meio da organização e do investimento maciço na educação de base, na ciência, nas artes e na técnica. É o que conclui o próprio Lenin quando, ao tratar da elevação da produtividade do trabalho, um dos principais objetivos colocados desde 1918, afirma que, após os esforços para manter nas mãos do nascente poder proletário as riquezas naturais do país e a base material da grande indústria, outras duas condições se colocavam para o alcance daquele

objetivo: “o ascenso cultural e educacional da massa da população” (1981b, p. 573) e a

elevação da disciplina, da habilidade, da competência e da eficácia no trabalho, buscando uma sua melhor organização. Ambas as condições, como se pode facilmente depreender, encontravam-se estreitamente entrelaçadas.

Os objetivos expressos por Lenin com o recurso aos conceitos de “civilização” e “civilizar” assumem, dessa forma, uma interessante e oportuna ambiguidade: embora

guardem sentido eminentemente econômico-produtivo, fazem referência implícita a certas propriedades espirituais precípuas. Ou, como explicaria anos mais tarde Raymond WILLIAMS, referindo-se ao desenvolvimento do conceito de civilização, a partir do século XIX, rumo ao seu significado moderno, a ênfase é progressivamente colocada

“tanto na ordem social e no conhecimento ordenado (mais tarde ciência) quanto no refinamento de maneiras e comportamento” (1985, p. 58).

O termo “civilização” é, assim, de grande valia quando se trata de expressar as

conexões subjacentes entre economia e cultura. Mas em que tipo de tarefas práticas era possível identificar a face visível dessas conexões? De que maneira, àquela altura da construção socialista, os problemas econômicos revelavam exigências culturais impostergáveis para sua solução? Versaremos a seguir sobre essas questões, que trazem à tona alguns dos complexos problemas da construção econômica pacífica.