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Estágio defensivo da teoria e centralidade da revolução cultural

Após a tomada do poder pelo proletariado em 1917, e na medida em que avança o processo da construção socialista, a revolução cultural cresce de importância na agenda

política. Na compreensão de Lenin, ela se tornará, mesmo, o “centro de gravidade” de todo

o trabalho revolucionário. É o que afirma o líder revolucionário em 1923, poucos meses

antes de sua morte, em trecho de “Sobre a cooperação” capaz de surpreender os “materialistas” mais empedernidos:

“(...) Vemo-nos obrigados a reconhecer a mudança radical de todo o nosso ponto de vista sobre o socialismo. Essa mudança radical consiste em que anteriormente colocávamos e devíamos colocar o centro de gravidade na luta política, na revolução, na conquista do poder etc. Mas agora o centro de gravidade desloca-se e transfere-se para o trabalho

pacífico de organização ‘cultural’. Estou tentado a dizer que para nós o centro de gravidade

se transferirá para a ação cultural, se não fossem as relações internacionais, se não fosse termos de lutar pela nossa posição à escala internacional. Mas se deixarmos isto de lado e nos limitarmos às relações econômicas internas, na realidade o centro de gravidade do trabalho reduz-se agora à ação cultural.” (LENIN, 1982, pp. 661-662, grifo nosso)

Ideia semelhante seria expressa cerca de dez anos mais tarde por Antonio Gramsci. Em um momento no qual os textos de Lenin ainda se encontravam bem pouco disponíveis aos não falantes do idioma russo, o pensador italiano escrevia, em seus Cadernos do

“Só depois da (...) [tomada do poder] do Estado o problema cultural impõe-se em toda a sua complexidade e tende a uma solução coerente. Em todo caso a atitude precedente à formação estatal não pode deixar de ser crítico-polêmica, e jamais dogmática, deve ser uma atitude romântica, mas de um romantismo que conscientemente aspira a seu caráter clássico ordenado.” (GRAMSCI, 1977, p. 1863)

Por que motivo só após a tomada do poder de Estado a questão cultural “impõe-se em toda a sua complexidade”, exigindo “uma solução coerente”? Há muitas respostas

possíveis para essa questão, e algumas pistas podem ser fornecidas com base na concepção materialista da cultura. Uma delas diz respeito ao fato de que, no período pós- revolucionário, a tarefa principal de uma classe que chega enfim ao poder não mais se relaciona à necessidade de pôr abaixo a velha ordem, mas à edificação de uma ordem nova e superior. Trata-se não mais de destruir, mas de construir. E, se para destruir muitas vezes não é necessário muito mais que ímpeto e entusiasmo, para construir será sempre imprescindível algo mais: em primeiro lugar, uma postura política diferenciada — uma

nova atitude política; em segundo lugar, evidentemente, quadros capazes de encarnar essa

nova atitude.

Essa realidade nos remete de imediato àquilo que podemos designar como estágio

defensivo da teoria. O conceito busca apreender um aspecto importante da emergência de

uma classe social no plano ideológico: o momento em que esta ainda se caracteriza por uma consciência teórica embrionária e insuficiente. Em estágio tal, a teoria surge como instrumento de expressão da experiência e dos anseios mais imediatos — um meio, apenas, de afirmação e distinção. A consciência teórico-ideológica assume, nesse sentido, um papel de combate e destruição; não logra, ainda, alcançar estágio positivo, edificador.

Gramsci nos ajuda a refletir sobre o assunto quando afirma que a teoria só se torna edificadora, construtora, no momento em que se transforma em partido. Acompanhemos o pensamento do teórico italiano em suas próprias palavras:

“(...) Pode imaginar-se (...) que seja produtivo de efetividade um instrumento que deixa a vontade coletiva na sua fase primitiva e elementar de mero formar-se, por distinção (por cisão), mesmo com violência, isto é, destruindo as relações morais e jurídicas existentes? Mas essa vontade coletiva, assim formada elementarmente, não cessará subitamente de existir, dissolvendo-se em uma infinidade de vontades individuais que adiante, na fase positiva [construtiva] seguem direções diversas e contrastantes? Isso, além da questão de que não pode existir destruição, negação, sem uma implícita construção, afirmação, e não em senso ‘metafísico’, mas praticamente, isto é, politicamente, como programa de partido.” (1977, p. 1557)

Poderíamos estender um pouco além o argumento de Gramsci, afirmando que esse estágio, digamos, “programático”, em que uma teoria torna-se construtora ao assumir a

forma de partido, não se encerra em si mesmo. É possível imaginar que ele atinge patamar superior quando esse partido, essa força política revolucionária, vê-se alçada ao domínio do poder político; quando é chamada, portanto, à tarefa de governar. Pode residir aqui um

dos motivos pelos quais certas tarefas, a exemplo da revolução cultural, só se impõem “em toda a sua complexidade” após a tomada do poder de Estado.

Contudo, é necessário notar que, em função do fenômeno anteriormente chamado de inércia cultural, o estágio defensivo da teoria pode persistir mesmo após a chegada da nova classe emergente ao poder. Williams nos ajuda a pensar melhor sobre o assunto. Ao tratar dos processos ligados à ascensão de uma nova cultura, o autor de Marxism and

Literature comenta que uma das bases dessa emergência relaciona-se à ascensão de uma

nova classe. Traça, então, uma distinção entre três momentos diferentes: a formação da classe; a aquisição de consciência por parte da nova classe, e, por fim, a emergência de elementos de uma nova formação cultural. Este último momento, como podemos facilmente deduzir, corresponde ao estágio propriamente construtivo, em que a classe já não mais utiliza a teoria para falar para si própria, mas para dirigir-se ao conjunto da

sociedade na propositura de um novo modo de vida. “Uma nova classe”, explica WILLIAMS, “é sempre uma fonte de prática cultural emergente, mas enquanto ela é [...]

relativamente subordinada, essa prática será sempre, provavelmente, irregular, e é certo

que será incompleta. Pois uma nova prática não é, claro, um processo isolado” (1977, p.

124).

Williams chama ainda atenção para o processo vivo da luta ideológica, com seus inúmeros expedientes de cooptação e incorporação que podem atrapalhar o desenvolvimento teórico-ideológico de um grupo social emergente, mantendo-o por mais tempo no estágio defensivo da teoria.

“À medida que ela [uma nova classe] emerge, e especialmente à medida em que ela se mostra oposicionista em vez de alternativa, o processo de incorporação, tentado significativamente, tem início. Isso pode ser visto (...) na emergência e então na efetiva incorporação de uma imprensa popular radical. Isso pode ser visto [também] na emergência e incorporação da escrita da classe trabalhadora, onde o problema fundamental da emergência é claramente revelado, já que a base da incorporação, em tais casos, é a efetiva predominância de formas literárias recebidas — uma incorporação, por assim dizer, que desde já condiciona e limita a emergência. Mas o desenvolvimento é sempre irregular. Uma incorporação direta é no mais das vezes tentada diretamente contra os elementos de classe visivelmente alternativos e oposicionistas: sindicatos, partidos políticos operários, estilos de vida da classe trabalhadora (na forma incorporada no jornalismo ‘popular’, na propaganda e no entretenimento comercial). O processo de emergência, em tais condições, é então um movimento constantemente repetido, e sempre renovável, além de uma fase de incorporação prática: comumente feito muito mais difícil pelo fato de que muito da

incorporação soa como reconhecimento, gratidão, e assim uma forma de aceitação.” (Id. Ibid. pp. 124-125)

Por conseguinte, não é tarefa simples para uma classe emergente desvencilhar-se do arcabouço cultural dominante em períodos precedentes: nem no que tange a valores, nem no que respeita a atitudes e conduta e, principalmente, no que concerne à teoria. À luz dessas constatações podemos mais bem compreender a persistência não apenas do idealismo, mas das antigas formas do materialismo burguês. Pois este último,

convenhamos, é a forma “realmente existente” do materialismo. A verdade é que o novo

materialismo, o materialismo moderno elaborado pioneiramente por Marx e Engels, ainda está quase que inteiramente por ser criado, desenvolvido, imaginado. E isso não se dará

senão por obra e graça da energia inventiva do proletariado. Contudo, essa “energia” existe

ainda hoje muito mais em sua forma potencial do que propriamente cinética. Pois o proletariado precisará caminhar, viver sua própria experiência, aprender a compará-la com e distingui-la da experiência postiça que lhe foi imposta por outras classes. O momento mais propriamente positivo desse processo certamente virá, junto aos embates pela afirmação política dos interesses da nova classe.

Pressionado pelos difíceis problemas do contexto pós-revolucionário, Lenin soube perceber essa realidade. Reside aí, aliás, o motivo central de sua inquietação constante com o tema dos quadros, assunto por demais entrelaçado à mudança nas condições da reprodução cultural. Afinal, como superar o estágio defensivo da teoria sem a formação em massa de novos quadros, a serviço de um novo projeto de desenvolvimento?

Como percebeu inteligentemente Lenin, essa tarefa deveria estar centrada nas novas gerações. Pois a verdade é que cada geração possui um tipo de tarefa; inversamente, as

tarefas mudam com o passar do tempo e com o suceder das gerações. “A tarefa da geração precedente”, explica LENIN, “reduzia-se a derrubar a burguesia. Criticar a burguesia,

desenvolver nas massas o ódio contra ela, desenvolver a consciência de classe [...]. A nova

geração tem à sua frente uma tarefa mais complexa” (1982, p. 391). Dita tarefa consistiria em, de posse dos conhecimentos modernos, “transformar o comunismo de fórmulas, conselhos, receitas, prescrições e programas já feitos e aprendidos de cor em algo vivo”

(Id. Ibid.). Só por meio desse trabalho seria possível agregar energia e fecundidade ao trabalho cotidiano, conferindo à construção socialista o colorido da vida real.

A derrubada do tzarismo não havia durado, nas palavras de Lenin, mais do que alguns dias. O domínio sobre os latifundiários, não mais do que alguns meses. E mesmo o controle das grandes empresas capitalistas, malgrado todos os problemas relacionados ao

registro contábil das atividades econômicas nacionais, havia sido resolvido de maneira

razoavelmente rápida. “Mas suprimir as classes é incomparavelmente mais difícil”, dizia

LENIN (1982, p. 392). E era mais difícil inclusive porque, sob o poder proletário, a luta de classes assumia novas e mais complexas formas.

A complexidade dessas novas formas refletia-se em tarefas revolucionárias de grande magnitude. Havia sido assim com as classes dominantes precedentes, mas o proletariado enfrentaria dificuldades ainda maiores. É o que afirma Lenin ao comparar, no que tange à edificação da nova sociedade, as atitudes políticas da então burguesia nascente e do atual proletariado:

“Nas revoluções burguesas, a tarefa principal das massas trabalhadoras consistia na realização de um trabalho negativo ou destruidor de aniquilamento do feudalismo, da monarquia e do medievalismo. O trabalho positivo ou construtivo de organização da nova sociedade era realizado pela minoria possuidora, burguesa, da população. (...) A principal força organizadora da sociedade capitalista, construída de uma maneira anárquica, é o mercado nacional e internacional, que cresce espontaneamente em amplitude e profundidade.” (LENIN, 1981b, p. 560)

No caso do proletariado os desafios eram mais complexos. Trata-se da primeira classe, dentre todas as que já existiram na cena política, completamente desprovida da

ajuda de forças “anárquicas” ou “espontâneas” na realização de suas tarefas históricas. A

classe operária depende, apenas, das forças mais autenticamente humanas que traz em si mesmo. Nada do sopro de Deus, nada da mão invisível. O proletariado só pode contar consigo próprio, com sua unidade, com sua convicção e com a justeza histórica do projeto de construir a sociedade em bases mais humanas. Parece pouco — e, se pensarmos no curto prazo, de fato é.

Na realização de suas tarefas “negativas”, relacionadas ao enfraquecimento e à

destruição do antigo sistema, o proletariado ao menos pôde contar com a aliança dos

setores despossuídos da cidade e do campo. Mas o trabalho “positivo”, isto é, a

organização de novas relações sociais, abarcando não apenas uma nova institucionalidade política, nem apenas uma rede complexa de produção e distribuição planificada, mas também a criação de novos valores e significados — enfim, de todo um modo de vida profundamente transformado —, isso tudo dependeria, essencialmente, de seus próprios esforços.

Uma revolução desse tipo jamais existiu na história da humanidade, e não poderia ser realizada sem a atividade criadora independente da maioria da população, proletariado à frente. Empreendimento dessa magnitude exige recursos humanos convictos,

comprometidos com o novo projeto — e, ademais, dotados de boa formação. Requisito tal representava para a liderança proletária emergente um enorme embaraço, dada a necessidade de domínio dos meios e instituições de produção da cultura, os quais se encontravam, não obstante, se não em mãos opositoras, pelo menos moldados segundo as necessidades das classes dominantes precedentes. Era preciso retomar, em todos os sentidos, o controle desses meios e instituições.