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A co-construção de identidades

No documento liviamirandadeoliveira (páginas 47-51)

3. A CO-CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES EM INTERAÇÕES FACE-A FACE ENTRE PESSOAS COM E SEM AFASIA DE EXPRESSÃO

3.1 A co-construção de identidades

O estudo da identidade neste trabalho, como mencionado acima, será ancorado nas abordagens teórico-metodológicas da Sociolingüística Interacional e Análise da Conversa Etnometodológica. Nesse contexto sócio-construcionista, identidade consiste em um engendrado fenômeno a ser co-construído no “aqui e agora” da interação, não sendo, portanto, algo dado a priori, um mero reflexo de realidades sociais e psicológicas. O processo de construção conjunta – co-construção – de identidade envolve uma intrincada maquinaria de negociação que, mesmo implícita (nas expressões verbais, olhares, posturas, gestos e outras pistas de contextualização), subjaz

a todo o processo. Nesta perspectiva, identidade não é tida como uma variável, nem mesmo pode ser entendida como estável/fixa, e a pergunta que se faz é: “Que tipo de identidade social está uma pessoa tentando construir ao executar esse tipo de ato verbal ou ao expressar verbalmente esse tipo de postura?” (Gumperz, 1982) (apud Ochs, 1993). Em diferentes situações, eventos sociais, o mesmo indivíduo torna relevante diferentes identidades de acordo com seus projetos locais.

Sob a óptica da relação, não direta, existente entre linguagem e identidade, as identidades sociais são construídas através do desempenho de tipos particulares de atos sociais – qualquer comportamento socialmente reconhecido e direcionado para uma meta (Ochs, 1990, p.288) (apud Ochs, 1993) – e posturas – uma demonstração de um ponto de vista ou atitude socialmente reconhecidas (Ochs e Schieffelin, 1989, p.288) (apud Ochs, 1993). Sendo assim, a relação entre linguagem e identidade social é mediada pelos entendimentos dos interlocutores de convenções sobre determinados atos sociais e posturas enquanto recursos para a estruturação de identidades sociais particulares (Brown & Levinson, 1979 e Ochs, 1988) (apud Ochs, 1993). Portanto, determinados atos e posturas estão associados a identidades sociais particulares, e o significado desses atos e dessas posturas são codificados por construções lingüísticas. Isso demonstra que, como Ochs (1993) argumenta,

a identidade social normalmente não é explicitamente codificada pela linguagem, mas, ao invés, é um significado social que alguém normalmente infere com base na própria percepção dos significados dos atos e das posturas codificadas pelas construções lingüísticas (p. 289).

Levando em consideração a construção de identidades sociais por meio de recursos lingüísticos acima mencionada, torna-se indispensável que: (i) os participantes partilhem convenções culturais e lingüísticas para a construção de atos e posturas particulares; (ii) os participantes partilhem histórias sociais, políticas e econômicas e convenções que associam esses atos e posturas a uma dada identidade social que o falante está tentando projetar e (iii) os outros interlocutores sejam capazes e estejam dispostos ou, por outro lado, sejam obrigados a ratificar a reivindicação do falante dessa identidade (Ochs, 1993; p.290). Uma identidade social pode não ser empregada se uma pessoa não souber as convenções para ratificar lingüisticamente a reivindicação de um interactante de uma determinada identidade social, visto que, como mencionei anteriormente, determinadas convenções lingüísticas e culturais são relacionadas a

determinados atos e posturas, e estes, por sua vez, são relacionados a determinadas identidades. Essa concepção de identidade social construída através do desempenho de atos e posturas corrobora o caráter ativo desse processo, uma vez que os interactantes estão “ativamente construindo suas identidades sociais em vez de passivamente se submeterem a alguma prescrição cultural para a identidade social” (Ochs, 1993, p.296). O foco no domínio da interação é consoante com a agência dos participantes nesse processo de construção, uma vez que os mesmos são considerados atores sociais, ao invés de serem considerados sujeitos passivos que refletem regras internalizadas. Durante uma interação, as pessoas estão, a todo momento, negociando (reivindicando, assumindo, projetando, ratificando, recusando) identidades através de ações verbais, ou não verbais, o que demonstra que “ os interlocutores estão ativamente construindo a si mesmos como membros de uma comunidade” (Ochs, 1993; p.296). Segundo Ochs (1993),

As comunidades diferem geralmente nos atos e posturas que são recursos culturais prevalentes e preferidos para a construção de identidades particulares. Em uma comunidade, uma postura ou um ato podem ser amplamente usados para construir alguma identidade social, enquanto que em uma outra, essa postura ou esse ato raramente são usados para construir essa identidade (p. 300).

Este processo trata-se de uma construção conjunta porque ao iniciar uma ação, uma das partes assume uma identidade particular e projeta a outra parte em uma identidade recíproca (Zimmerman, 1998), e cabe à outra parte ratificar ou rejeitar as identidades projetadas. Portanto, tais projeções estão sujeitas à ratificação – o recipiente assumir a identidade projetada, e à revisão (eg.: o recipiente de uma pergunta, iniciar um reparo em vez de responder). Em se tratando de discurso, a projeção de uma dada atividade discursiva por uma das partes pode ter como resposta a adoção ou o abandono da identidade discursiva projetada. As identidades discursivas são, então, interacionalmente contingentes em vez de pré-determinadas. Para Zimmerman (1998), as identidades discursivas (ID) colocam em jogo componentes relevantes da maquinaria conversacional. Integram a organização passo-a-passo da interação. Segundo o autor, os participantes assumem diferentes ID (falante/ouvinte; narrador/ recipiente de narrativa; iniciador de reparo/ recipiente de reparo) quando participam de diferentes atividades organizadas seqüencialmente. Diferentes tipos de discurso, por sua vez, colocam em jogo diferentes identidades discursivas. Dentre estas, as identidades falante/ouvinte são consideradas mais gerais e sinalizam, por um lado, quem detém o

piso conversacional, e por outro, quem realiza as tarefas associadas a ouvir. Os participantes fazem coisas diferentes durante o curso da interação - fazem perguntas, contam histórias, fazem reclamações, reparos (audição e entendimento), avaliações, asserções sobre pessoas e eventos -, agindo, com isso, de forma reconhecível na capacidade de uma ou outra identidade discursiva. Portanto, como defende Zimmerman (1998):

As ID emergem como uma característica da organização seqüencial da fala-em- interação, orientando os participantes para o tipo de atividade subjacente e seus respectivos papéis dentro dela. O alinhamento de ID contribui para a manutenção da ordenação seqüencial e para a ‘arquitetura da intersubjetividade’ que ele sustenta (Heritage, 1984:254-60). O início de uma dada seqüência projeta (mas não assegura) uma gama restrita de próximas ações e seleciona indivíduos específicos (ver Lerner, 1992, 1993 – indivíduos ou unidades mais amplas) como animadores dessas ações (p. 92).

O autor também se refere às identidades situadas (IS), identidades institucionais, considerando que as mesmas entram em jogo com base nas normas de tipos particulares de situação. Tais situações passam efetivamente a existir a partir do engajamento dos participantes em atividades com base em agendas que estão na base da orientação dos participantes para o alinhamento a diferentes identidades (eg.: terapeuta/paciente). Segundo Zimmerman (1998), as atividades em um dado cenário alcançam sua forma distintiva através da articulação do discurso com as identidades situadas de cada participante e do alinhamento entre os participantes dessas identidades, ligando contextos de ação próximo e distante. Para Goodwin ([1996] 1998), a noção de identidade-como-contexto, em sentido amplo, refere-se

à forma como a articulação/alinhamento de identidades discursivas e situadas fornecem aos participantes um modelo (esquema) dinâmico e contínuo dentro do qual as ações- verbais e não-verbais dos participantes - assumem significado, importância e conseqüencialidade interacional particulares (pp.374-6).

Assim sendo, o alinhamento de identidades (discursivas e situadas) é uma questão interacional que liga contextos de ações próximo e distante. Por conseguinte, o alinhamento está sujeito à ratificação pelas partes envolvidas, fazendo parte da maquinaria de co-construção de identidades. Esse processo de co-construção de identidades por meio de negociações será abordado, abaixo, em um contexto em que

alguns participantes desse processo são pessoas com afasia; fato este, que irá trazer algumas peculiaridades para o cenário interacional.

No documento liviamirandadeoliveira (páginas 47-51)