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2.3 Contextualização da categoria mulher maranhense

2.3.1 Construção da subjetividade feminina da mulher maranhense enquanto brasileira por

Fortemente marcada pela interseccionalidade supramencionada e pela própria construção de subjetividade enquanto mulher latino-americana, é importante que se destaque também a identidade feminina da mulher maranhense inserida no contexto brasileiro.

No Brasil, tanto em São Paulo como em Pernambuco – os dois grandes focos de energia criadora nos primeiros séculos da colonização, os paulistas no sentido horizontal, os pernambucanos no vertical – a sociedade capaz de tão notáveis iniciativas como as bandeiras, a catequese, a fundação e consolidação da agricultura tropical, as guerras contra os franceses no Maranhão e contra os holandeses em Pernambuco, foi uma sociedade construída com pequeno número de mulheres brancas e larga e profundamente mesclada com sangue indígena. Diante do que torna-se difícil, no caso do português, distinguir o que seria aclimatabilidade de colonizador branco – já de si duvidoso na sua pureza étnica e na sua qualidade, antes convencional que genuína de europeu – da capacidade de mestiço, formado desde o primeiro momento pela união do adventício sem escrúpulos nem consciência de raça com mulheres da vigorosa gente da terra. (FREYRE, 2003, p. 73)

Em uma sociedade em formação, escassa em colonizadores e com a necessidade de povoamento, a figura da mulher reveste-se em caráter procriador, mas não só. A cor da pele, assim como a origem e, portanto, a etnia, dão-lhe potencialidade para o casamento e até ascensão social, sexo recreativo ou trabalho – respectivamente mulher branca, a dita pejorativamente mulata ou mulher miscigenada e a mulher negra. (FREYRE, 2003, p. 72)

Mais ainda, a economia colonial, pautada em grandes latifúndios monocultores, habitada não apenas pelo dono da terra e seus familiares, como também por seus trabalhadores livres, pobres e mestiços e pelos negros escravizados para o trabalho na área, facilitaria a criação de toda uma estrutura social rural e patriarcal, onde as decisões quanto aos

negócios e até a vida pessoal de seus trabalhadores e habitantes dependiam em maior ou menor grau da anuência de uma figura central, masculina e conservadora. (HOLANDA, 1995, p. 80)

No Maranhão, em 1735, queixava-se um governador de que não vivia gente em comum, mas em particular, sendo a casa de cada habitante ou de cada régulo uma verdadeira república, porque tinha os ofícios que a compõem, como pedreiros, carpinteiros, sangrador, pescador etc. Com pouca mudança, tal situação prolongou- se, aliás, até bem depois da Independência e sabemos que, durante a grande época do café na província do Rio de Janeiro, não faltou lavrador que se vangloriasse de só ter de comprar ferro, sal, pólvora e chumbo, pois o mais davam de sobra suas próprias terras. Nos domínios rurais é o tipo de família organizada segundo as normas clássicas do velho direito romano-canônico, mantidas na península Ibérica através de inúmeras gerações, que prevalece como base e centro de toda a organização. Os escravos das plantações e das casas, e tão somente escravos, como os agregados, dilatam o círculo familiar e, com ele, a autoridade imensa da pater- famílias. Esse núcleo bem característico em tudo se comporta como seu modelo da Antiguidade, em que a própria palavra “família”, derivada de famulus, se acha estreitamente vinculada à ideia de escravidão, e em que mesmo os filhos são apenas os membros livres do vasto corpo, inteiramente vinculado ao patriarca, os liberi. (HOLANDA, 1995, p. 81)

Nesse contexto do Brasil colônia observa-se a figura feminina como alguém fortemente atrelada à família, destituída da concepção enquanto sujeito de direitos, a qual restaria a submissão ao poder patriarcal. Nos 322 anos em que o Brasil fora colônia portuguesa, a educação estava sob a responsabilidade da Igreja Católica, sendo o ensino reservado aos filhos homens, de colonos e indígenas. As mulheres, brancas, negras, indígenas ou mestiças eram excluídas do acesso à leitura e educação, predominando o brocardo de que “mulher que sabe muito é mulher atrapalhada, para ser mãe de família, saiba pouco ou saiba nada” (TOMÉ; QUADROS; MACHADO, 2012, p. 2-3), restando em caráter excepcional o estudo em casa ou em conventos, geralmente voltado à carreira eclesiástica.

A regulamentação da vida privada e, portanto, dos costumes e da consequente assujeitação da mulher brasileira vê-se presente nos textos jurídicos da época, refletindo a construção de sensos comuns brasileiros a partir de uma moral portuguesa, sendo introjetados culturalmente e reproduzidos até os dias atuais. As Ordenações Filipinas, que normatizaram os comportamentos no período colonial, regulavam o direito do marido em assassinar sua esposa (Títulos XXV e XXXVIII), não apenas se a flagrasse em adultério, mas até se dele suspeitasse, não lhe sendo incumbida qualquer punição, vez que o ato representava a manutenção do respeito pelo patriarca à ordem familiar. (SOUZA; BRITO; BARP, 2009 p. 68-69)

No período colonial brasileiro, a marca do autoritarismo do patriarca fazia-se sentir em todos os membros da família, em especial, sobre os filhos, aos quais a figura paterna inspirava terror. Castigos físicos – espancamentos com palmatórias, varas de marmelo (às vezes com alfinetes nas pontas), cipós, galhos de goiabeira e outros objetos semelhantes - extremamente brutais, ‘ensinava-os’ a não duvidarem da prepotência paterna. A justiça do Brasil Colônia, por meio das Ordenações do Reino, concedia ao pai o direito de castigar escravos, filhos e mulheres. (LUCCHESE, 2011, p. 6)

Após a Independência do Brasil, com a outorgação da Carta Constitucional de 1824, mantém-se a mulher enquanto não-cidadã, equiparada, nesse sentido aos escravos, diante da impossibilidade de participação na vida política – a mulher apenas conseguiria o direito ao voto em 1932, com a promulgação do Código Eleitoral.

Com o Decreto nº 181 de 24 de janeiro de 1890 suavizam-se os efeitos do poder familiar, mas ainda resta explícito o papel de submissão da mulher em relação ao homem, a exemplo dos parágrafos do artigo 56, Título VII, em que estão entre os efeitos do casamento: investir o marido da representação legal da família, dar ao marido o poder de autorizar a profissão da mulher e dirigir a educação dos filhos.

Esse patriarcalismo ganha reforço nas relações sociais do nordeste brasileiro, onde a potencialidade econômica das plantações leva a um alto uso da mão-de-obra escrava negra e cabocla livre, estratificando a sociedade entre ricos e pobres:

O sertão nordestino sobre o qual nos debruçamos aqui não existe mais. Hoje, só é conhecido por ocasião das secas e pela população de crianças famintas e esquálidas. Mas a história tem outra memória sobre o sertão do nordeste: uma terra de modo de vida excêntrico para as populações do Sul, onde perduraram tradições e costumes antigos e específicos, onde extensas fazendas de gado e de plantio de algodão utilizaram mão-de-obra livre e escrava trabalhando lado a lado, espaço em que uma população, descendente de portugueses se mesclou com os “negros da terra” – os indígenas – e com os negros da Guiné – os escravos trazidos pelos próprios colonizadores ou mandados comprar, depois, nas praças comerciais de São Luís, Recife, Salvador ou no pequeno porto de Parnaíba, ao norte do Piauí. Ali se gestou uma sociedade fundamentada no patriarcalismo. Altamente estratificada entre homens e mulheres, entre ricos e pobres, entre escravos e senhores, entre “brancos” e “caboclos”. Dizer então que o sertão nordestino foi mais democrático em suas relações sociais e que não tirou proveito da escravidão é basear-se em uma historiografia ultrapassada, não mais confirmada pela pesquisa histórica. É basear-se em observações espantadas de governantes portugueses enviados da metrópole [...] que [...] notando as inúmeras uniões consensuais de homens amancebados com pardas e caboclas e constatando a grande quantidade de filhos bastardos de cor mulata, pensaram que, talvez, aquela sociedade se pautasse pela existência de maior solidariedade e menor tensão entre as diversas camadas sociais. Isso não corresponde à realidade. (PRIORE, 2004, p. 242)

Mesmo com o surgimento da família burguesa, o patriarcalismo presente na sociedade brasileira, em especial vinculados às áreas mais ligadas diretamente ao estilo de vida rural, vê-se ainda marcante nas legislações. O Código Civil de 1916, que regulou a

sociedade até sua revogação em 2002, possui inúmeras passagens em que o poder paterno e a submissão feminina estão naturalizados.

No artigo 186 do referido diploma, regula-se que diante da discordância entre os genitores, a vontade do pai prevalecerá sobre a dos filhos e da mãe. Do mesmo modo, no artigo 242 preveem-se enquanto condutas proibidas à mulher sem o consentimento do marido: litigar em juízo civil ou comercial, exercer profissão e contrair obrigações.

É a partir do Estatuto da Mulher Casada, Lei nº 4.121/1962, que o Código Civil de 1916 passa a reduzir a positivação de normas patriarcais, retirando do homem o poder de ser o chefe exclusivo da entidade familiar. Dispensou-se, assim, o consentimento marital para o trabalho, além da instituição dos chamados bens reservados da mulher, fruto de seu trabalho e que não responderiam pelas dívidas do marido. Ato contínuo, a Lei do Divórcio, Lei nº 6.515/1977, regularizou a possibilidade de dissolução do vínculo conjugal.

A nova lei, ao invés de regular o divórcio, limitou-se a substituir a palavra “desquite” pela expressão “separação judicial”, mantendo as mesmas exigências e limitações à sua concessão. Trouxe, no entanto, alguns avanços em relação à mulher. Tornou facultativa a adoção do patronímico do marido. Em nome da equidade estendeu ao marido o direito de pedir alimentos, que antes só eram assegurados à mulher “honesta e pobre”. Outra alteração significativa foi a mudança do regime legal de bens. No silêncio dos nubentes ao invés da comunhão universal, passou a vigorar o regime da comunhão parcial de bens. (DIAS, 2015, p. 2)

É a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 que a igualdade entre homens e mulheres tornou-se mais plausível, elevando o direito à igualdade a objetivo fundamental do Estado. Contudo, importante que se observe, principalmente enquanto conceitos introjetados socialmente, que a sacralização da família e a preservação do casamento persistem, agravando a situação de submissão feminina aos anseios sociais de uma moralidade construída historicamente.