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4 PERSPECTIVAS SOBRE GÊNERO, RELAÇÕES DE PODER E

4.1 A CONSTRUÇÃO DO TERMO “GÊNERO”:

Buscando uma maior aceitação e legitimidade para o campo de estudos da mulher, os estudos feministas pós-1980 teriam incorporado o termo “gênero”, em referência às mulheres, como umatentativa de busca por maior neutralidade política. Segundo Joan Scott:

“(...) o uso do termo “gênero” visa indicar a erudição e a seriedade de um trabalho porque “gênero” tem uma conotação mais objetiva e neutra do que “mulheres”. O gênero parece integrar-se na terminologia científica das

ciências sociais e, por consequência, dissociar-se da política – (pretensamente escandalosa) – do feminismo. Neste uso, o termo gênero não implica necessariamente na tomada de posição sobre a desigualdade ou o poder, nem mesmo designa a parte lesada (e até agora invisível). Enquanto o termo

“história das mulheres” revela a sua posição política ao afirmar

(contrariamente às práticas habituais), que as mulheres são sujeitos históricos

legítimos, o “gênero” inclui as mulheres sem as nomear, e parece assim não se constituir em uma ameaça crítica” (SCOTT, 1990, p. 6).

O gênero seria uma construção social, uma recusa ao determinismo biológico como explicação do comportamento de um indivíduo por base no seu sexo. Seria uma categoria útil de análise histórica, que demonstraria os limites das abordagens descritivas utilizadas até então, não questionando os conceitos dominantes das disciplinas acadêmicas.

O termo teria sido pensado pelo feminismo contemporâneo como forma de luta através de um novo campo de definição e pela insistência sobre a inadequação das teorias vigentes, que não explicavam as desigualdades persistentes entre homens e mulheres. Com um novo campo de análise, as feministas começaram a desenvolver sua própria teoria e aproximar novos aliados acadêmicos e políticos para a questão.

Segundo Scott (1990), as historiadoras feministas apontariam a existência de três correntes teóricas explicativas da condição de subordinação e opressão feminina: a primeira, se basearia na estrutura do patriarcado para explicar a dominação masculina; a segunda vertente, seria ligada à linha marxista e, embora não discorde da primeira, acrescenta que a exploração feminina acentua-se com a divisão sexual do trabalho, advinda do modo de produção capitalista; a terceira, teria uma subdivisão entre estruturalistas e pós-estruturalistas da França, que entendem a dominação feminina a partir das teorias ligadas à linguagem, baseadas em estudos de Freud e Lacan, e as anglo-americanas, que se baseiam no trabalho de Chodorow e Gilligan. As primeiras correntes teóricas (patriarcal e marxista) apresentariam limitações por não darem soluções às estruturas de dominação. A teoria marxistanão explicaria nem mesmo o porquêde a exploração feminina ainda acontecer nos regimes socialistas. A última linha

61 teriadespertado maior atenção por sua capacidade de atingir conclusões gerais a partir de observações particulares. As correntes francesas e anglo-americanas partiriam da infância para explicar os processos pelos quais a identidade do sujeito seria criada. Esses processos se constituiriam como a linguagem, as características simbólicas utilizadas socialmente e a significação dos objetos e seres. As anglo-americanas limitariam sua abordagem à família, ignorando arranjos familiares destoantes dos tradicionais quanto ao papel de pai e mãe. Também não criariam conexões explicativas sobre o desenvolvimento da identidade do sujeito influenciadapelas demais estruturas sociais, ignorando-as. As francesas, por sua vez, por se basearem em estudos lacanianos, entenderiam a linguagem como base de interpretação da representação de desejos reprimidos, do sistema inconsciente e na construção oposta de identidades de gênero(SCOTT, 1990).

Afirmando que um objeto de estudo precisa ter métodos de análise, hipóteses e possibilidade de mudança definidos, Scott (1990) define o termo gênero em duas partes e diversas subpartes ligadas entre si, masdistintas, levando em consideração o papel dos sistemas simbólicos, por sua capacidade de dar sentido às ações dos indivíduos. A essência da definição baseia-se na conexão integral de duas proposições principais: “o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar significação às relações de poder” (SCOTT, 1990, p. 20). Assim, o gênero implicaria em quatro elementos relacionados entre si, baseados no diferencial entre os sexos:

 Símbolos culturais com representações múltiplas e normalmente contraditórias; os exemplos seriam Eva e Maria, opostas como corrupção e inocência.

 Conceitos normativos que colocam em evidência interpretações do sentido dos símbolos, tentando limitar que suas possibilidades sejam metafóricas. Instituições religiosas, escolares e políticas seriam exemplos disto, uma vez que essas instituições impõem à sociedade a oposição binária entre masculino e feminino, sem possibilidade de contestação. Essas posições são tidas como originárias de um consenso social, quando na verdade elas foram geradas após conflitos em que prevaleceu a força do grupo dominante.

“(...) grupos religiosos fundamentalistas de hoje que querem necessariamente

ligar as suas práticas à restauração do papel “tradicional” das mulheres, supostamente mais autêntico, enquanto que na realidade tem poucos antecedentes históricos que testemunhariam a realização inconteste de um papel. O objetivo da nova pesquisa histórica é explodir a noção de fixidade, descobrir a natureza do debate ou da repressão que leva a aparência de uma permanência eterna na representação binária dos gêneros. Esse tipo de análise

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tem que incluir uma noção do político, tanto quanto uma referência às instituições e organizações sociais” (SCOTT, 1990, p. 22).

 O sistema atual e seus mecanismos de funcionamento, como as relações familiares, a esfera da economia, da política e demais instituições e organizações sociais.

“Alguns(mas) pesquisadores(as), notadamente antropólogos(as) reduziram o

uso da categoria de gênero ao sistema de parentesco (fixando o seu olhar sobre o universo doméstico e na família como fundamento da organização social). Precisamos de uma visão mais ampla que inclua não só o parentesco, mas também (em particular, para as sociedades modernas complexas) o mercado de trabalho (um mercado de trabalho sexualmente segregado faz parte do processo de construção do gênero), a educação (as instituições de educação socialmente masculinas, não mistas ou mistas fazem parte do mesmo processo), o sistema político (o sufrágio masculino universal faz parte do processo de construção do gênero). Não tem muito sentido limitar essas instituições à sua utilidade funcional para os sistemas de parentesco, ou sustentar que as relações contemporâneas entre homens e mulheres são produtos de sistemas anteriores de parentesco baseados nas trocas de mulheres. O gênero é construído através do parentesco, mas não exclusivamente; ele é construído igualmente na economia, na organização política e, pelo menos na nossa sociedade, opera atualmente de forma

amplamente independente do parentesco” (SCOTT, 1990, p. 22).

 A identidade subjetiva que estabelece a distribuição de poder,com as diferenças sexuais entre os corpos dos indivíduos,utilizadas como forma de justificativa das relações sociais e das atitudes desses indivíduos, sendo que esses elementos, por si só, nada teriam em relação com a sexualidade. Um dos exemplos históricos seria a ascensão de reis homens e a contestação da capacidade política de rainhas mulheres.

Assim, os conceitos de gênero passam a estruturar a percepção e a organização concreta e simbólica da estrutura social, estabelecendo as distribuições de poder e envolvendo-se na sua concepção, distribuição e acesso.

Para Machado (1998), o uso do conceito de gênero teria se generalizado no âmbito acadêmico brasileiro,assim como na academia internacional, como sinônimo dos estudos de mulheres. Assim como em outros países,percebeu-se a necessidade de uma nova metodologia de análise, elemento essencial ao desenvolvimento destes estudos.

No Brasil, a metodologia dos estudos de gênero se configurou por meio de três pilares que trariam uma diferenciaçãodos estudos de mulheres feitos até então.A nova metodologia proposta foi bastante similar ao modelo proposto por Scott (1990). Eles se caracterizariam pela ruptura radical entre a noção biológica de sexo e a noção social do gênero, pela preferência

63 metodológica das relações de gênero sobre categorias mais abstratas como feminino ou masculino e pela noção da transversalidade do gênero, ou seja, a ideia de que a construção de gênero engloba diferentes áreas do social.

Assim, as noções de masculino e feminino se tornaram contestáveis. O ponto principal colocado pela autora – e que segundo ela teria garantido a distinção dos estudos de gênero dos estudos das mulheres – teria sidoa necessidade da construção de um novo paradigma que reivindicasse o caráter simbólico contido nas relações de gênero e que permitisse a racionalização sobre a dicotomização universal dos termos natureza e cultura, colados à dicotomia feminino/masculino.

Segundo Papa (2012), a instituição do movimento feminista, baseado na nova concepção do termo gênero, ocorreu pela confluência dos movimentos sociais das décadas de 70 e 80 com a experiência de mulheres que estariam retornando do exílio europeu, bastante influenciadas pela segunda onda do feminismo internacional. Os anos de 1975 a 1979 seriam extremamente importantes para a construção do feminismo como ator político institucional no Brasil. Em 1975, um grupo de mulheres no Rio de Janeiro apoiado pela ONU, que no mesmo ano decretou o Ano Internacional da Mulher e realizou a primeira conferência na cidade do México, faria um colóquio de debates sobre a questão dos direitos da mulher e democracia.

Entretanto, os anos ainda eram de regime militar e, portanto, a difusão do movimento e sua visibilidade começaria a ocorrer em espaços já existentes e com um pouco mais de capacidade de discussão, como as universidades, sindicatos e associações profissionais (PAPA, 2012). Esses seriam os primeiros momentos de presença dos movimentos de mulheres organizadas, com debates e contestação dos estereótipos de gênero e das cargas desiguais nas relações entre homens e mulheres.