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Construindo agentes coletivos

No documento Individualismo global e agência de grupos (páginas 46-49)

CAPÍTULO 2. GRUPOS COMO AGENTES

2.2. Construindo agentes coletivos

ontologia social. Segundo Barker, grupos estão sujeitos à “pulsação de um propósito comum que irrompe (...) [verticalmente] a partir de cima para a mentalidade e comportamento dos membros”

(2011, p. 9, tradução livre).

O emergentismo não é relevante para meus propósitos por ser uma posição profundamente misteriosa. Muito embora ele seja compatível com a ideia de que grupos podem ser agentes e seja em princípio capaz de acomodar a ideia de ação relevante do ponto de vista normativo, não nos é oferecida qualquer razão para acreditar que há no mundo uma espécie de vis vitalis coletivo, quanto mais uma força capaz de impor verticalmente sua vontade aos membros de um grupo. Uma pessoa com inclinações ontológicas individualistas dificilmente trocaria sua perspectiva por algo tão nebuloso.

Eis, enfim, a estrutura deste capítulo. Na próxima subseção, apresento algumas distinções adicionais que têm o papel de abrir o caminho para minha discussão central. Nas duas subseções seguintes, apresento os dois aspectos formais básicos que tipicamente são atribuídos na bibliografia aos agentes coletivos: procedimento de decisão e estrutura. Logo depois, por meio de uma discussão sobre o interpretativismo em filosofia da mente, apresento mais detalhadamente a ideia de ponto de vista racional e sustento que sua atribuição a grupos é mais plausível do que parece à primeira vista. Em seguida, apresento a ideia de funcionalismo (pressuposta pela definição de agente de List e de cuja plausibilidade a tese L & P depende). Na subseção seguinte, respondo brevemente à objeção segundo a qual eu não posso recorrer ao interpretativismo e ao funcionalismo ao mesmo tempo. Por fim, apresento a noção de identidade normativa e defendo que ela tem um papel unificador em minha caracterização de agente coletivo.

indivíduos, suas propriedades e relações. Segundo perspectivas desse tipo, dizer que um grupo sustenta uma crença qualquer não é muito mais do que dizer que a maioria de seus membros a sustenta ou que uma minoria autorizada a sustenta. Não há, por exemplo, tal coisa como uma empresa enquanto uma entidade real. O que há é um punhado de indivíduos que operam em um mercado sob um nome corporativo.

Já realistas redundantes aceitam que há grupos, mas sua posição acaba por reduzi-los a seus membros. Um exemplo um tanto controverso, que menciono para sugerir desde já que as condições para o surgimento de agentes coletivos não são triviais, é o de Margaret Gilbert (2014). Ela sustenta que, por meio da formação de compromissos conjuntos (joint commitments), as pessoas podem agir como um sujeito plural. Quando isso acontece, os estados intencionais de cada membro incluem a referência a um “nós” insuscetível de ser analisado em termos de um conjunto de “eu”.31 Suponha, assim, que um grupo deseja construir uma casa. Gilbert diria que cada membro tem um estado intencional com o conteúdo aproximado de “desejo que nóscomo um grupo construamos a casa”, o que é insuscetível de ser reduzido a “desejo que eu construa a casa, desejo que você construa a casa, desejo que ele construa a casa, etc.”. Muito embora a posição de Gilbert pareça acarretar a presença de uma entidade legitimamente coletiva, há razões para pensar que isso não é o caso. Como sugerem Seumas Miller e Pekka Makela (2005), Gilbert não é clara a respeito de qual entidade está sujeita ao compromisso conjunto: o grupo como um todo ou, de forma distribuída, cada um dos membros do grupo. Se a segunda interpretação estiver correta, a interpretação reducionista da posição de Gilbert ganha força.

Redução não implica eliminação, contudo. Considere o exemplo de uma banda. Quando o guitarrista diz ao baixista que “nós” tocaremos hoje à noite, a implicação cooperativa do “nós”, que inviabiliza a tarefa de analisá-lo em termos de uma sequência de “eu”, parece ser constitutiva do que é uma banda. Mesmo assim, a intencionalidade coletiva acarretada pelo

“nós” é algo que está na mente dos indivíduos que compõe a banda, e não na banda como uma entidade distinta. Logo, embora a referência à banda não seja mero discurso metafórico, a posição reducionista parece compartilhar com o eliminativismo a ideia de que, em última instância, tudo o que há no mundo social são indivíduos.

A tese L & P, por fim, adota uma forma de realismo não redundante. Isso quer dizer que, ao contrário do que sustentam as teses realistas redundantes, tais grupos não são redutíveis a seus membros, o que, aparentemente, torna os primeiros ontologicamente distintos dos últimos. E ao contrário do emergentismo, a tese L & P não depende de qualquer substância misteriosa, pois podemos explicar a irredutibilidade em grande parte por meio do seguinte fato: agentes coletivos

31Searle (1990) concorda com esse ponto.

são dotados de procedimentos que agregam estados intencionais individuais e geram estados intencionais coletivos distintos. Como veremos na próxima subseção, subjacente à tese L & P está a ideia de que um tipo de procedimento específico é determinante para a plausibilidade da ideia de que não é possível reduzir o coletivo aos membros que o compõem.

Isto dito, peço atenção a duas coisas desde já: 1) a ideia de irredutibilidade não é constitutiva da caracterização de agente que ofereci. A tese de que certas entidades coletivas não são redutíveis a seus membros será defendida ao longo do capítulo, a começar pela próxima subseção. 2) Não proponho que todas as entidades coletivas são irredutíveis no sentido deste capítulo. Basta que algumas o sejam. Em especial, como veremos no próximo capítulo, uma corte.

2.2.2. Item 1: Agregação de juízos

Talvez a melhor forma de introduzir o tópico desta subseção seja por meio de um típico resultado de impossibilidade, comparável ao clássico resultado de Kenneth Arrow (1963). List e Pettit (2002, p. 89) propõem o seguinte cenário: imagine que cada membro de um determinado grupo sustente um conjunto racional de juízos a respeito certas proposições logicamente interconectadas. A noção de racionalidade é entendida em termos de completude, consistência e fechamento dedutivo (ibid.). A completude impõe que para qualquer proposição pno conjunto, opta-se ou por p ou por ~p; a consistência, por sua vez, impõe que para qualquer proposiçãop, nenhum conjunto pode conter p e ~ p. O fechamento dedutivo, por fim, impõe que sempre que um conjunto de proposições implica outra, esta proposição também compõe o conjunto.

Para dar mais concretude ao exemplo, imagine que uma agenda é composta pelas proposições p, pq e q (e suas respectivas negações) e que elas são de cunho legal: seu sentido, condições de interpretação e juízos a respeito de seus valores de verdade ocorrem segundo as regras de uma jurisdição qualquer.32 A completude impõe que cada juiz opte, relativamente a cada uma dessas proposições, por ela ou por sua negação. A consistência impede que os juízes sustentem, por exemplo, q e ~qao mesmo tempo. Por fim, o fechamento dedutivo impõe que, se um juiz interpretar que p e também que pq, o conjunto racional de juízos que ele deve formar é composto por p, pq e q. Afinal, se ele aceitar que ~ q é o caso tendo aceitado os dois itens anteriores, forma um conjunto inconsistente de juízos e pode ser criticado

32A agenda é o conjunto de proposições a respeito das quais os membros do grupo e o grupo formam juízos.

por ser irracional. Da mesma forma, se outro juiz rejeita a condicional pq, ele não pode, sob pena de inconsistência, sustentar queqé o caso.33

Chamamos de “função de agregação” o procedimento que transforma em juízos coletivos os juízos individuais de cada membro a respeito das proposições disponíveis na agenda. Uma função de agregação óbvia, por exemplo, é a votação majoritária. Se nossa corte fictícia é composta por três membros e, pelo menos, dois deles pensam quepqé o caso, segue-se, dada a função de agregação adotada, que a corte pensa quepq. Logo, mantendo a função constante para todas as proposições, não é difícil ver como a corte pode chegar a uma posição a respeito de todas as proposições da agenda.

Intuitivamente, é desejável que qualquer função de agregação satisfaça algumas condições para que possamos dizer que ela é em algum grau responsiva às atitudes dos membros do grupo.34List e Pettit (2011, p. 49) oferecem as seguintes condições:

1) Domínio universal: a função de agregação admite como entrada (input) qualquer conjunto racional de atitudes (juízos, no caso) individuais em relação às proposições relevantes.

2) Racionalidade coletiva: a função de agregação produz como resultado (output) um

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