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CAPÍTULO 4. OBJEÇÕES E RESPOSTAS

4.3. Interpretação 1. David Strohmaier

4.3.2. Marvin Backes

Backes (2021) oferece três objeções ao interpretativismo. Discuto aqui as duas primeiras. A terceira, embora interessante, não chega a ameaçar o argumento central deste trabalho.

A primeira objeção é a seguinte: o interpretativista se engana quando pensa que atribui de forma bem-sucedida estados intencionais a grupos. “[E]mbora às vezes falemos como se estivéssemos interpretando ou prevendo o comportamento de grupos, o que realmente interpretamos e prevemos nesses casos é o comportamento de alguns de seus membros” (ibid., p.

10, tradução livre). Assim, no exemplo da Ford visto no capítulo 2, nossa previsão de que a empresa dará descontos em certos veículos perante o aumento dos combustíveis nada mais é do que uma previsão do que seus membros operativos farão.

Eis uma analogia (ibid., pp. 11-12): você está dirigindo e vê que há um carro na sua frente. Naturalmente, você preverá com sucesso vários de seus movimentos. Perante um sinal vermelho, você consegue prever que o carro frearár; perante uma seta para a direita, você consegue prever que o carro virará para a direita, e assim por diante. Ninguém diria seriamente, arremata Backes, que o carro tem crenças a respeito do ambiente. Não é o comportamento do veículo que possibilita essas previsões, mas sim o do motorista que o dirige. Com base nisso, Backes formula a seguinte condição:

When we reliably interpret or predict the behavior of some system X, but some distinct system Y is somehow responsible for the behaviour of X, then we are in fact reliably interpreting or predicting the behaviour of Y and are only indirect (if at all) interpreting the behaviour of X. (Ibid., p.

12)

A moral dessa objeção (e também da próxima), como o próprio autor sugere no começo de seu artigo, é que a plausibilidade do interpretativismo quando aplicado a indivíduos não se transfere tão facilmente quando tentamos aplicá-lo a grupos.

Como responder à primeira objeção de Backes, que é poderosa exatamente por ser tão simples? Penso que ele mesmo indica uma via de resposta em uma nota (ibid., p.12) na qual discute casos em que um grupo aparentemente tem uma crença ao mesmo tempo em que nenhum de seus membros a tem. O exemplo discutido mais detidamente é a variação de um cenário formulado por Tollefsen em favor do interpretativismo. O cenário original é o seguinte:

Suppose we want to explain the incidents of gunfire during a naval blockade. We read the official rules of engagement published to govern Navy operations. These rules embody the Navy’s rational point of view.

We can then explain why the Navy sometimes fires at other ships. Under certain conditions, specified in its rules of engagement, the Navy will fire at anyone it believes to have hostile intent. (2002b, p. 402)

Na variação de Backes, nenhum oficial da armada acredita que, em uma dada situação, deve-se atirar. Porém, essa opinião contraria as regras segundo as quais é um dever atirar nessas circunstâncias. Assim, “quando explicamos ou prevemos o comportamento da armada, que de fato atira (...), parece natural citar sua crença coletiva e não a crença individual de cada comandante em particular, uma vez que nenhum deles tem tal crença” (2021, pp. 12-13, tradução livre). Mas isso, pensa Backes, é enganoso, pois “(...) é razoável atribuir aos [oficiais] a crença (ou compromisso) de que eles devem seguir as regras de engajamento da armada mesmo se elas entrarem em conflito com suas crenças pessoais” (ibid., p. 13, tradução livre). Ou seja, muito embora essa variação pareça apresentar um desafio ao ponto de Backes, essa dificuldade, prossegue ele, é ilusória, pois podemos dar conta do cenário com uma explicação análoga (e individualista) àquela que seria oferecida para o exemplo da Ford.

Como sugeri, o próprio Backes fornece a “receita” do que seria uma resposta à sua objeção. Teríamos de encontrar um caso que satisfaça as seguintes condições: 1) somos capazes de prever confiavelmente o que um grupo que se comporta racionalmente fará e 2) não somos capazes de predizer confiavelmente o que seus membros operativos, que também agem racionalmente, farão (ibid., p. 12). Um caso que satisfaça as duas condições é um problema para Backes porque, como quer o interpretativista, será um caso para o qual o melhor nível de análise

é o próprio grupo. O grande desafio aqui é encontrar casos desse gênero. Penso, no entanto, que é possível encontrá-los. Apresento, então, dois exemplos que parecem satisfazer 1 e 2. Eles não são incontroversos, mas servem para mostrar que os pontos de Backes não são decisivos.

O primeiro é uma modificação do exemplo da Ford. Se alterarmos o nível da descrição das ações, não é óbvio que a previsão do que a empresa fará seja meramente a previsão do que seus gestores farão. Suponha que o aspecto central da identidade normativa da empresa seja a maximização dos lucros e dos rendimentos de seus acionistas. Essa identidade constrange e molda seu ponto de vista racional corporativo, com repercussões em suas escolhas e ações.

Agora suponha que os acionistas imponham a seguinte condição à empresa: ela deve ser capaz de oferecer ao fim do ano um relatório de lucros superior à média do que os jornais especializados projetam para o ano. Uma vez que a empresa cumpriu essa tarefa com sucesso nos últimos dez anos, temos razões para prever que ela terá sucesso novamente.

Imagine também que, no meio do ano, a empresa se depara com o aumento dos preços nos combustíveis. Nesse cenário, não é uma tarefa fácil prever o que gestores efetivamente farão.

Por mais que tenhamos boas razões indutivas para pensar que a empresa terá um relatório acima da média, é uma questão em aberto se o oferecimento de descontos será a opção escolhida perante o aumento de preços. Como sempre há várias opções sobre a mesa, os gestores podem, digamos, avaliar que a melhor saída é manter os preços como estão, mas incluir na venda dos veículos “beberrões” uma revisão gratuita.

Alguém poderia responder que, ainda assim, conseguimos prever que os gestores tentarão fazer sua parte para que o relatório atenda às exigências dos acionistas. Essa resposta, no entanto, é um tanto insatisfatória. Trazendo a analogia com o carro de volta, a resposta simplesmente diz que o motorista tomará os caminhos presumivelmente corretos para chegar a seu destino.

Aplicado à analogia, minha sugestão é justamente sugerir que muito embora tenhamos razões para pensar que o carro chegará ao destino, não podemos prever o caminho que ele tomará.

Isso nos permite, enfim, disputar a condição formulada por Backes: de fato, há um sistema Y (gerentes) que é de alguma forma responsável pelo comportamento de X (grupo), mas uma vez que podemos prever a satisfação da exigência colocada pelos acionistas sem que ao mesmo tempo possamos prever o comportamento dos membros, não estamos prevendo o comportamento de X via Y. Aqui, mais uma vez, o nível correto de análise parece ser, como diria um interpretativista, o nível do grupo.

Backes apresenta sua segunda objeção da seguinte forma: mesmo que possamos atribuir estados intencionais a grupos para prever seu comportamento, não se segue dessa atribuição que grupos instanciem crenças (ibid., p. 12). O que motiva Backes é uma consequência inaceitável de

uma das formulações do interpretativismo, segundo a qual “tudo o que é preciso para ser uma entidade capaz de ter crenças é ser interpretável (ou previsível) a partir da postura intencional”

(ibid. p. 13, tradução livre). Como repara o autor, a formulação tem a consequência bizarra de permitir o uso da postura intencional para prever o comportamento de quase tudo, desde plantas até móveis. Obviamente, o interpretativista não deseja esse resultado. Backes (ibid.) apresenta a resposta de Dennett ao problema:

Does our definition of an intentional system exclude any objects at all?

For instance, it seems the lectern in this lecture room can be construed as an intentional system, fully rational, believing that it is currently located at the center of the civilized world (as some of you may also think), and desiring above all else to remain at the center. What should such a rational agent so equipped with belief and desire do? Stay put, clearly – which is just what the lectern does. I predict the behaviour, accurately, from the intentional stance, so is it an intentional system? If it is, anything at all is. What should disqualify the lectern? For one thing, the strategy does not recommend itself in this case, for we get no predictive power from it that we did not antecedently have. We already knew what the lectern was going to do – namely nothing – and tailored the beliefs and desires to fit in a quite unprincipled way. (1981, p. 66)

A ideia central do trecho, como repara Backes (2021, p. 14), é a de que não devemos ter apenas poder preditivo, mas devemos ter poder preditivo que não tínhamos antes. A atribuição de intencionalidade a objetos inanimados certamente não nos oferece isso. Já podíamos prever que o púlpito permanecerá quieto sem recorrer à postura intencional.

Backes então desafia o interpretativista a mostrar que a aplicação da postura intencional a grupos nos dá poder preditivo que já não tínhamos antes (ibid., p. 14). Ele, porém, é cético:

“[P]ara qualquer grupo, uma vez que aplicamos a postura intencional em relação a ao menos alguns de seus membros, não aprendemos nada de novo quando também a aplicamos ao grupo”

(ibid., tradução livre).

Uma maneira de responder a essa objeção é apontar propriedades que o grupo instancia, mas que nenhum de seus membros em particular instancia, e mostrar que essa propriedade nos dá poder preditivo extra. Acredito que não preciso ir muito longe para encontrar um exemplo assim. O argumento central deste trabalho, apresentado no capítulo 3, em conjunção com um aspecto discutido no capítulo 2, é suficiente. No capítulo 2, apresentei e incorporei o argumento de Pauer-Studer (2014) de que o método de agregação coletivo deve refletir a identidade normativa do grupo. E como vimos, o modus ponens como método de agregação para cortes superiores é um reflexo procedimental de uma tarefa imposta por sua identidade normativa: a

preservação dos direitos ao longo do tempo. Sabemos também que tanto a identidade normativa da corte quanto o método de agregação justificado por ela são propriedades supraindividuais.

Será que temos, então, ganho preditivo ao atribuir estados intencionais à corte que não teríamos adotando a postura intencional apenas em relação a seus membros? Imagine que o poder preditivo em causa diga respeito à capacidade de o grupo efetivamente, de maneira estável, preservar os direitos ao longo do tempo. Ora, uma vez que, se meu argumento central estiver correto, o modus ponens desempenha um papel importante na satisfação da tarefa estendida da corte e esse método é uma propriedade instanciadaapenaspelo grupo, temos razões para pensar que o conjunto de estados intencionais irredutíveis que a corte forma ao longo do tempo nos revela aspectos relativos à capacidade de cumprir a tarefa que não conheceríamos caso nosso foco se limitasse aos juízes. Claro, pode-se responder que os membros irão, idealmente, votar da melhor maneira possível, atentando-se aos princípios corretos e às evidências, o que garantirá a estabilidade dos direitos. Porém, como vimos, isso não é suficiente.

Na ausência de um método de agregação adequado, mesmo decisões bem-intencionadas podem gerar inconsistências e desorientação. Logo, os aspectos estruturais da própria corte (constituída e organizada em grande parte por seus métodos de agregação) parecem fornecer um contraexemplo bem-sucedido à afirmação segundo a qual “para qualquer grupo, uma vez que aplicamos a postura intencional em relação a ao menos alguns de seus membros, não aprendemos nada de novo quando também a aplicamos ao grupo”. E dado que esses aspectos estruturais refletem a identidade normativa da instituição, percebemos mais uma vez que a contribuição de Pauer-Studer apresenta soluções para problemas provavelmente não antecipados por ela.

4.4. Objeções gerais

No documento Individualismo global e agência de grupos (páginas 131-135)