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Construir significado: uma alternativa ao conceito de qualidade

As concepções pós-modernas e a educação infantil

4.7 Construir significado: uma alternativa ao conceito de qualidade

Não pretendemos aqui definir ou discutir a questão de critérios de qualidade para o atendimento à primeira infância94. Embora entendamos ser esta uma questão extremamente importante para a área, nosso intuito é o de aprofundar a proposição de Dalhberg, Moss e Pence quanto à supressão do termo qualidade na busca de definição de critérios para o atendimento institucional das crianças pequenas, pela “construção de significados” – mediado pelo construcionismo social.

Isso se deve, sobretudo, ao fato de que o conceito de qualidade tem, na opinião dos autores, um significado muito particular, “aquele de um padrão universal, conhecível e objetivo” e que estaria situado em “um entendimento modernista particular de mundo” (2003, p. 141). Evidentemente, para se levantar indicativos de qualidade teríamos que, necessariamente, possuir critérios que estabelecessem determinados padrões e que estes estariam objetiva e concretamente fundamentados em aspectos oriundos de uma certa compreensão do que deve ou não ser adequado ao trabalho a ser desenvolvido com crianças pequenas. Presume-se que a contribuição das ciências humanas e da educação seria condição imprescindível para o aprimoramento de tais critérios. Por conseguinte, o conceito de qualidade contraria os preceitos da concepção pós-modernista defendida pelos autores. Ao advogar que o conceito de qualidade não é adequado para a definição de critérios que orientem práticas e estabeleçam as melhores condições para que se possa efetivamente atender as crianças em aspectos que vão desde o ambiente físico até bases teóricas cientificamente fundadas que possibilitem uma compreensão cada vez mais acurada sobre a criança e a infância, Dalhberg, Moss e Pence propõem a construção de significados ou o construcionismo social (2003, p. 139-159).

94

Maria Malta Campos e Fúlvia Rosemberg publicaram em 1995 um documento em que propõem critérios para um atendimento de qualidade, respeitando os direitos fundamentais das crianças. Focam o atendimento em creche (zero a três anos) e incluem itens a ser aplicados à pré-escola (quatro a seis anos), ou seja, são critérios que compreendem as crianças entre zero e seis anos de idade. Nesse documento, as autoras objetivam “atingir, concreta e objetivamente, um patamar mínimo de qualidade que respeite os direitos fundamentais das crianças, nas instituições onde muitas delas vivem e passam a maior parte de sua infância”. Esse documento repercutiu expressivamente na área da educação infantil brasileira e ainda é considerado por muitos educadores como importante subsídio para a prática educativa (CAMPOS; ROSEMBERG, 1995).

Dessa forma, não haveria critérios objetivos a serem observados nos diferentes aspectos do trabalho e do atendimento à criança de zero a seis anos, até porque, como vimos, o pós-modernismo rompe, entre outras, com a idéia de objetividade e qualquer idéia de ciência como conhecimento objetivo do real é descartada. O resultado imediato dessa compreensão é o de que as instituições de educação infantil “construiriam” seus próprios significados do que seria bom ou adequado para o atendimento à criança. As interpretações e a responsabilidade seriam, portanto, definidas por uma mesma comunidade discursiva.

Esta “construção”, no caso da “abordagem Reggio Emilia”, tem como base a documentação pedagógica, pois esta, além de ser considerada vital para a criação de uma prática reflexiva e democrática, tem um papel fundamental no discurso da construção de significado. Ela “nos permite assumir a responsabilidade pela construção dos nossos significados e chegar às nossas próprias decisões sobre o que está acontecendo” (DALHBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 191). Como indicado, a documentação pedagógica não é apenas a observação da criança, mas procura enxergar e entender o que acontece no trabalho pedagógico e no que a criança pode fazer sem uma estrutura predeterminada de estruturas e normas. Ademais não se

reivindica que aquilo que é documentado seja uma representação direta do que as crianças dizem ou fazem; não é um relato verdadeiro do que aconteceu.[...] é um processo de visualização, mas o que documentamos não representa

uma realidade verdadeira mais do que as declarações sobre o mundo social e natural representam uma realidade verdadeira – ela é uma construção social em que os pedagogos, por

intermédio do que selecionam como valioso de ser documentado, são também co-construtores participativos. O significado não provém apenas do ver e observar; o significado [não está] repousando na natureza, esperando ser captado pelos sentidos – ao contrário ele é construído. É produzido em atos de interpretação (DAHBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 192-193, sem grifos no original)

Dessa forma, os autores evidenciam que os registros dos professores sobre as atividades das crianças, assim como declarações sobre o mundo social ou natural, não representam uma realidade verdadeira, ou seja, tanto o

mundo físico quanto o mundo social são “construções”, atos interpretativos, que por serem particulares não são necessariamente verdadeiras95.

A documentação pedagógica nos diz como construímos a criança, assim como nós mesmos como pedagogos. Por isso, nos permite enxergar como nós mesmos entendemos e “interpretamos” o que está acontecendo na prática; partindo daí, é mais fácil perceber que as nossas próprias descrições como pedagogos são descrições construídas. [...] através da documentação, podemos perceber como nos relacionamos com a criança de outra maneira. Sob essa perspectiva, a documentação pode ser vista como uma narrativa de auto- reflexividade – uma auto-reflexividade a partir da qual a autodefinição é construída. [...] Estamos certamente a um longo caminho da idéia da observação da criança como um registro verdadeiro, uma representação real da criança e do seu desenvolvimento (DAHBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 193).

Observa-se, nessa perspectiva, uma estreita vinculação às propostas da agenda pós-moderna e, notadamente, ao neopragmatismo rortyano. Para Rorty, “do ponto de vista educacional, campo oposto ao epistemológico ou tecnológico, o modo como as coisas são ditas é mais importante do que a posse de verdades” (1994, p. 353-354). Não importa, pois, se o que se diz é ou não verdadeiro e, sim, se o vocabulário que usamos para descrever e interpretar as coisas é verdadeiro. Vemos que o conhecimento é subsumido àquilo que nós entendemos e interpretamos sobre o que acontece na prática. A exacerbação do individualismo é marcante, pois tudo está vinculado às interpretações e entendimentos particularizados de como as coisas são.

Ainda que reconheçam que as instituições de educação infantil podem trabalhar em estruturas regionais ou nacionais que estabeleçam algumas

95

Essa afirmação de Dahberg, Moss e Pence, nos remetem à galhofeira interpretação pós- moderna de uma gravidade quântica “libertadora”, de autoria do físico Alan Sokal, referida no capitulo anterior. Foi publicada inicialmente na revista Social Text, vanguardista, de crítica cultural norte-americana e, mais tarde, como apêndice no livro Imposturas intelectuais: abuso da Ciência pelos filósofos pós-modernos. A alegação de Sokal, satirizando o pensamento pós-moderno, parece ter a mesma conotação dos autores em questão quando afirmam que tudo é “construção” social, só que neste caso não há sátira nem crítica, mas aquiescência: “Tornou-se cada vez mais claro que a ‘realidade’ física, não menos que a ‘realidade’ social, é, no fundo, um constructo social e lingüístico; que o ‘conhecimento’ científico, longe de ser objetivo, reflete e codifica as ideologias e relações de poder dominantes da cultura que produziu; que as alegações de verdade da ciência são inerentemente carregadas de teoria; e que o discurso da comunidade científica, a despeito de todo seu inegável valor, não pode validar um status epistemológico privilegiando no tocante a narrativas contra hegemônicas que emanam de comunidades dissidentes e marginalizadas” (SOKAL, 2001, p. 232).

condições ou exigências comuns, a que chamam de “estruturas de normalização”, Dalhberg, Moss e Pence consideram que tais estruturas são problemáticas, pois “enfraquecem a inovação e a aspiração”. O que vislumbramos diante da perspectiva construcionista social é uma fragmentação que transforma as questões e problemas relativos à educação infantil ao micro, em resoluções particularizadas que não se limitam àquele determinado contexto. Na proposta dos autores:

No campo da primeira infância, o discurso da construção de significado refere-se antes de tudo à construção e ao aprofundamento do entendimento da instituição dedicada à primeira infância e a seus projetos, em particular o trabalho pedagógico – para construir significado a partir do que está acontecendo. Através da construção desses entendimentos, as pessoas podem optar por tentar fazer julgamentos sobre o trabalho, um processo que envolve a aplicação de valores ao entendimento para se fazer um julgamento de valor. Por fim, as pessoas podem optar por buscar algum acordo com os

outros sobre esses julgamentos – esforçar-se para entrar em

acordo, até certo ponto, sobre o que está acontecendo e sobre o seu valor. No entanto o discurso não presume que todos os estágios sejam seguidos. Na verdade, pode ser considerado suficiente limitar o construir sentido ao aprofundamento do entendimento, sem ir adiante para julgar ou buscar algum acordo (DAHBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 143, grifos no original).

Evidencia-se na leitura do excerto que há uma individualização que relativiza qualquer possibilidade de universalização e que se coaduna com uma tendência bastante marcante presente no pós-modernismo, mais especificamente na sua versão neopragmática, em que o entendimento do que seja bom, ou adequado ou importante para a instituição de educação infantil, vincula-se ao sistema de crenças de uma determinada comunidade, de uma determinada posição ou visão. Cada instituição define no seu contexto particular o que é bom ou adequado para a educação das crianças pequenas. Pode-se até optar por emitir um julgamento e por buscar algum acordo com os outros sobre o seu entendimento, no entanto apenas este entendimento próprio/particular já é suficiente. O discurso da construção de significado adota uma perspectiva construcionista social, na qual a aprendizagem é um processo de co-construção e do relacionamento com os

outros se extrai significado do mundo. Cada pessoa co-constrói seu próprio entendimento sobre o que está acontecendo.

4.8 O “pedagogo” e a documentação pedagógica: alicerces das