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2 ORIGENS DA TRADIÇÃO SISTÊMICA: COMPREENDENDO O PENSAMENTO

2.3 CONSTRUTIVISMO RADICAL: O SUJEITO DANDO LUGAR AO

Até mais da metade do século XX, a ciência concebia a ideia de um observador externo – um sujeito (individual ou coletivo) ou uma rede de investigação – dotado de capacidade cognitiva. A partir desta noção desenvolveu-se a teoria analítica, segundo a qual é o observador que decide o que será chamado de sistema e o que será chamado de ambiente e quais os limites entre um e outro, ou seja, os conceitos de sistema e ambiente são construções do teórico; e a teoria concreta, que parte do pressuposto de que o sistema já existe na realidade, cabendo ao observador apenas descrevê-lo. Ambas as teorias enfrentam as dificuldades advindas desse observador externo pressuposto: os analíticos são obrigados a

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O tema da comunicação na teoria dos sistemas é objeto do subtópico 2.4, para o qual remetemos o leitor interessado em aprofundar-se nas ideias aqui esboçadas.

aceitar que não tem total liberdade para delimitar seu objeto, sendo necessária a observação da realidade para a definição do campo teórico; já os concretistas nunca conseguem delimitar satisfatoriamente o que designam como sistema (LUHMANN, 1996, p. 55).

A Teoria dos Sistemas Sociais Autopoiéticos desenvolveu-se no contexto do construtivismo radical, corrente de pensamento que teve início nos anos 1950, com alguns dos pensadores aos quais já fizemos referência, a exemplo de Heinz von Foerster, dos biólogos Humberto Maturana e Francisco Varela, do lógico Gotthard Günther, do psicólogo Paul Watzlawick e do filósofo Ernst von Glasersfeld, tendo sido relevantes ainda as descobertas de George Spencer-Brown (GONÇALVES; VILLAS BÔAS, 2013, p. 35-36).

Já vimos que, segundo o Princípio da Incerteza de Heisenberg, o elétron muda seu curso quando iluminado e observado. Também já comentamos que a forma como percebemos as imagens e as cores não depende apenas de uma realidade externa a nós, como diversos experimentos óticos são capazes de demonstrar. O mesmo raciocínio aplica-se a tudo o mais que percebemos do mundo. Há, entre observador e observado, uma relação extremamente complexa, sendo impossível a apreensão desta complexidade através de um simples esquema sujeito/objeto.

O ponto de partida do construtivismo radical é justamente o questionamento dessa clássica distinção sujeito/objeto. A realidade é uma construção do observador, de sua experiência, e todo conhecimento sobre o mundo é também um conhecimento sobre si mesmo. Quando um biólogo, por exemplo, observa sistemas vivos, ele observa a si mesmo, já que também é um deles. Sujeito e objeto fundem- se, já que o observador é parte do mundo que observa, inexistindo observador exclusivamente externo. Com isso, a distinção sujeito/objeto torna-se inútil (GONÇALVES; VILLAS BÔAS, 2013, p. 36-38).

Luhmann (1996, p. 55-57) destaca que o observador já está de antemão condicionado pelos sistemas físicos, químicos, orgânicos, psíquicos e sociais que observa. E isto porque o observador faz parte do mundo que ele está observando. Não há uma diferença constitutiva entre sujeito e objeto porque ambos participam de uma base operativa já dada, até porque tanto sujeito quanto objeto são sistemas. A ciência, para observar, precisa ela mesma estar constituída como sistema. Toda

observação é, portanto, autológica: o que é válido para o objeto também é válido para o observador.

Nenhuma informação é exterior, ou seja, importada do ambiente para dentro do sistema. As informações são processadas internamente e decorrem de experiências de percepção e compreensão. O sistema constrói uma memória interna, fruto de suas operações, e essa memória produz novas percepções, experiências e operações. Essa autoprodução é justamente a autopoiese do sistema (GONÇALVES; VILLAS BÔAS, 2013, p. 39).

Não é incomum, por exemplo, que dois irmãos criados juntos relatem experiências muito diferentes de sua infância. Um dos irmãos pode falar da mãe como uma pessoa afetuosa e gentil enquanto o outro afirma que a figura materna era fria e distante. Cada um desses sistemas psíquicos perceberá o ambiente de uma forma, e essas experiências formarão uma memória que influenciará todas as outras operações do sistema. Talvez o irmão que narra ter tido uma mãe fria mime seus próprios filhos em demasia como mecanismo de compensação, talvez opte por não ter filhos, talvez escolha uma esposa muito diferente de sua própria mãe (ou uma muito parecida). As variáveis são tantas que é praticamente impossível prever como um sistema de tal grau de complexidade se comportará. O ponto que se pretende destacar aqui é que não existe uma mãe-objeto que pode ser conhecido por esses dois sujeitos. A mãe só existe como uma operação do próprio sistema, e a forma como ela é percebida é uma fusão entre observador e observado. A imagem da mãe que um dos irmãos tem não pode ser transferida para a consciência do outro irmão. Daí porque se afirma que não existe a possibilidade de importação de uma informação do ambiente para o sistema.

A crítica feita pelos sistêmicos a essa distinção sujeito/objeto é extremamente radical e atinge a fundação do racionalismo moderno, com seu conceito de sujeito racional. Como já vimos, pensar sistematicamente é romper com o paradigma vigente e aceitar uma forma completamente diferente de ver o mundo e de fazer ciência.

A tradição humanista concebe a ideia de sujeitos dotados de razão que observam um mesmo mundo. Existiria uma realidade ontológica, um plano fenomênico a priori, ou seja, um mundo externo a esse observador transcendental. A ideia é inconcebível no paradigma sistêmico, já que cada sistema produz suas próprias operações, que são os pressupostos de sua cognição. Assim, cada sistema

possui sua própria razão e seu próprio mundo. Em outras palavras, para conhecer a realidade precisamos observar o observador, ou seja, precisamos, na terminologia de Foerster, ser observadores de segunda ordem (GONÇALVES; VILLAS BÔAS, 2013, p. 40-41).

Luhmann (1996, p. 126-127) afirma que a observação de segunda implica em uma redução de complexidade, já que, ao invés de lidar com toda a complexidade do mundo, lida-se apenas com os esquemas do observador, mas implica também em um aumento de complexidade, já que a observação de segunda ordem é uma observação sobre uma observação de primeira ordem. Através de observação de segunda ordem, contudo, o observador consegue observar aquilo que está no ponto cego da observação de primeira ordem. Todas essas observações envolvem contingências, já que há outras possibilidades de observação que não aquelas.

Daí porque as novas disposições da teoria dos sistemas deixaram de lado a distinção sujeito/objeto e passaram a utilizar a distinção operação e observação: operação que o sistema de fato realiza e observação, que pode ser realizada pelo próprio sistema ou por outro sistema (LUHMANN, 1996, p. 87). Com isso, abandona- se a ideia de um observador universal e adota-se a concepção de múltiplos focos de observação, cada um representando uma experiência interna própria do sistema (GONÇALVES; VILLAS BÔAS, 2013, p. 41).

Maria Esteves Vasconcellos (2002, p. 139-141) destaca que a ciência moderna defendeu a objetividade, buscando afastar-se de todas as experiências subjetivas, e que o novo caminho proposto pelos sistêmicos é, como chama Maturana, o de uma objetividade entre parênteses. Nessa “objetividade”, a distinção que o observador faz constitui uma “realidade”, ou seja, o objeto passa a existir a partir do momento em a distinção é traçada pelo observador. Não há, contudo, algo real, algo que exista independentemente do observador, já que todas as nossas experiências somente podem ser validadas através de outras experiências. Se eu vejo um copo em cima de uma mesa, não tenho como saber se se trata de uma alucinação, já que eu só posso confirmar a existência do copo através de outra experiência (a do toque, por exemplo).

Não se trata, contudo, de uma proposta solipsista, da ideia de um observador fechado em si mesmo. O que se busca são espaços intersubjetivos, espaços consensuais de validação de experiências subjetivas, comunidades de acoplamentos estruturais entre observadores. Se na objetividade sem parênteses

busca-se a teoria verdadeira em caso de teorias alternativas sobre um mesmo fenômeno, na objetividade com parênteses busca-se um diálogo, já que cada uma dessas teorias oferece respostas a diferentes perguntas dos observadores. Assim, ao invés de uma verdade, múltiplas versões, múltiplas narrativas, múltiplas verdades e consenso (VASCONCELLOS, 2002, p. 139-141).

Segundo Luhmann (1996, p. 125-126), os conceitos de sujeito e sociedade surgiram com a modernidade, na época em que a burguesia, tentando lidar com o colapso do mundo aristocrático, e ainda sem uma teoria da sociedade, começou a empregar as diferenciações senhor/escravo, nobre/servo, tradição/modernidade, etc. Esse conceito de sujeito, contudo, nunca deu conta da intersubjetividade, das interações entre muitos sujeitos e da relação entre sujeito e sociedade, razão pela qual hoje temos tantos problemas ecológicos e envolvendo tecnologias de risco.

Guilherme Leite Gonçalves e Orlando Villas Bôas Filho (2013, p. 40-43) defendem que há um autoritarismo nessas representações racionais ou teológicas da sociedade fixadas como centros de certeza e de segurança. Seja através de ideia de Deus, seja através da ideia de Razão, a tradição filosófica europeia produziu uma semântica com pretensões normativas e universais, semântica esta que estava sempre em descompasso com uma estrutura social em constante transformação, semântica de único olhar que, por oprimir outras possibilidades, é violenta.

O construtivismo radical desenvolveu-se, contudo, com uma limitação, já que analisa apenas o observador que é uma consciência, ou seja, um sistema psíquico, uma mente humana que cria uma realidade. Justamente por isso os principais estudos ocorreram em áreas como a neurologia, a psicologia e a biologia. Luhmann, como sociólogo que é, vai além, uma vez que seu interesse é nas operações que pressupõem um grande número de sistemas de consciência. É o que ele vai chamar de comunicação social, a unidade operativa básica dos sistemas sociais (GONÇALVES; VILLAS BÔAS, 2013, p. 43).

Como destaca Luhmann (1996, p. 116-123), o observador não pode ser concebido exclusivamente como uma consciência, um cérebro, um sistema psicológico ou um sujeito transcendental, já que sistemas de comunicação também possuem a capacidade de observar a si mesmos (auto-observação) e a outros sistemas (hétero-observação). A sociologia, por exemplo, observa a política ou a economia como observadora externa, mas analisa a sociedade como observadora

interna. O que interessa aqui, portanto, é se o observador está dentro ou fora do sistema, ou seja, de um lado ou de outro da distinção traçada.

A comunicação será o tema do próximo subtópico e encerrará essa breve incursão no pensamento sistêmico.