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2 ORIGENS DA TRADIÇÃO SISTÊMICA: COMPREENDENDO O PENSAMENTO

3.1 UMA VISÃO SISTÊMICA DO DIREITO

3.1.1 O problema da trivialização do Direito

Segundo Luhmann (1996, p. 50), o Direito vem sendo concebido como um programa de inputs, ou seja, há um complexo de decisões pré-estruturadas que servem como resposta (output) a determinadas informações (inputs). Ainda que esse número de informações seja grande e tenha origem bastante variada, pensa-se o Direito como uma máquina que processa informações e as responde de maneira positiva ou negativa a elas, sem maiores preocupações com as consequências destas decisões.

Luhmann (1996, p. 1) chama a atenção, contudo, para o fato de que os bons juristas, cada vez mais, preocupam-se com os outputs oferecidos pelo Direito, já que as decisões judiciais são muito diferentes em cada caso e estão condicionadas por situações empíricas muito distintas.

Luhmann aproveita, de Heinz von Foerster, o conceito de máquinas triviais e não triviais. As máquinas triviais são aquelas em que determinados inputs, após regras de transformação específicas, produzem determinados outputs. Os resultados são previsíveis e confiáveis. Já nas máquinas não triviais os inputs são afetados por estados momentâneos e por desvios, a exemplo, de um estado de ânimo. As máquinas não triviais são recursivas e capazes de alterar suas próprias regras internas. Elas são autorreferentes e seus outputs são imprevisíveis (LUHMANN, 1996, p. 82-83).

Tanto os sistemas psíquicos quanto os sistemas sociais são máquinas não triviais, contudo existe uma certa tendência, principalmente no sistema jurídico e no sistema da educação, à trivialização de certos aspectos do sistema. É o caso de um juiz que, diante de um caso de divórcio, analisa se aquele input corresponde aos requisitos de dissolução do vínculo conjugal e decide (output). Também é o caso de uma escola que exige de todos os alunos, indistintamente, os comportamentos previstos, punindo-os caso haja desrespeito às regras. O que Luhmann se pergunta, partindo do pressuposto de que precisamos de uma sociedade que funcione com regularidade e que permita eventuais inovações, é qual o limite dessa possibilidade de orientar a vida social segundo processos de socialização considerando que os sistemas psíquicos são não triviais (LUHMANN, 1996, p. 83-84).

Rafael Simioni (2011, p. 55-58), também preocupado com essa questão da trivialização do direito, destaca que o direito enxerga a sociedade pelo código direito/não direito, sendo indiferente aos sentidos produzidos pelos demais sistemas. Esse fenômeno de filtragem da complexidade dos múltiplos sentidos que um mesmo

fato pode apresentar (sentido econômico, político, educacional, artístico, etc.) é chamado de juridicização. A decisão jurídica só se torna possível quando uma norma jurídica incide sobre um fato social ou, em outras palavras, quando há subsunção do fato social à norma jurídica. A juridicização é inevitável e necessária, já que o sistema jurídico não opera bem quando incorpora códigos de outros sistemas. Uma decisão judicial não pode, por exemplo, preocupar-se com lucro, beleza, poder ou moralidade, sob risco de corromper-se. A juridicização, contudo, trivializa a complexidade do fato social, já que entram na comunicação jurídico apenas os elementos previstos no programa jurídico.

Os riscos da trivialização são consideráveis, uma vez que as decisões jurídicas assim produzidas não compreendem todos os aspectos da realidade, podendo ser até mesmo perigosas para quem está sujeito a seus efeitos. A situação é agravada pelo fato de que essas consequências podem nem mesmo ser lidas pelo sistema jurídico, que as interpreta como não-direito, ou seja, como ruídos sem sentido. Por outro lado, como o direito poderia contemplar aspectos não jurídicos da sociedade sem perder seu fechamento operacional e, portanto, sua identidade sistêmica? Até mesmo uma decisão jurídica guiada pelas consequências é arriscada, já que abre o sistema jurídico para a complexidade do ambiente sem gerar nenhuma segurança de que aquela decisão é a mais adequada (SIMIONI, 2011, p. 58-59).

A solução proposta por Simioni (2011, p. 67-68) para tal dilema está na observação de segunda ordem, também chamada de observação reflexiva, através da qual os riscos não previstos por um sistema podem ser observados por outro sistema. Se o direito não enxerga os riscos das novas tecnologias, a ecologia o faz; se a economia não vislumbra os potenciais problemas da entrada de novos fármacos no mercado, o sistema saúde o faz; etc.

Essa análise dos riscos, contudo, continuará tendo que enfrentar o problema da comunicação intersistêmica a que já fizemos referência anteriormente, uma vez que a leitura adequada dos riscos pelo observador de segunda ordem é inútil se o sistema não os compreende e atua a partir deles.

Uma das premissas desta dissertação é que as demandas dos presos provisórios, ainda que juridicamente relevantes, são frequentemente ignoradas pelo sistema jurídico – ou lidas de maneira precária – quando trazidas pelas famílias

destes presos, já que as informações dos familiares são tratadas pelo sistema apenas como ruído ambiental.

Pretendemos analisar, como observadores de segunda ordem, por meio dos dados empíricos coletados, se essa premissa se sustenta e como ocorre essa comunicação intersistêmica entre o direito e família, especialmente no que diz respeito aos acoplamentos estruturais atualmente operantes: servidores e demais operadores do direito, representantes jurídicos, etc.

Ao contrário de tantos outros trabalhos produzidos na academia jurídica, não pretendemos tecer considerações acerca das decisões jurídicas, da jurisprudência ou do conjunto de normas aplicável ao caso concreto. Trata-se de uma pesquisa focada não nas tradicionais preocupações das teorias do direito, mas sim em uma sociologia do direito de base sistêmica.

Como afirma Luhmann (2014, p. 59), sociólogos observam o direito de fora enquanto juristas observam o direito de dentro. Enquanto os sociólogos estão vinculados ao seu próprio sistema, que exige, por exemplo, que eles conduzam pesquisa empírica, os juristas vinculam-se ao sistema do direito. Uma teoria sociológica do direito, portanto, levaria a uma descrição externa do sistema jurídico, mas seria adequada apenas se fosse capaz de descrever esse sistema como um sistema que descreve a si mesmo (um sistema autopoiético), o que raramente foi tentado pela sociologia do direito.

Trata-se, de fato, de terreno novo e extremamente movediço, razão pela qual avançamos com bastante cautela e cientes das dificuldades envolvidas.