REVISÃO DA LITERATURA
O CONSUMO DE ÁLCOOL COMO PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA
Em geral, o consumo de bebidas alcoólicas tem acompanhado o crescimento que se constata relativamente às restantes substâncias tóxicas (Johnston, O’Malley, Bachman, & Schulenberg, 2005). Nos Estados Unidos da América, onde se elaboram relatórios anuais sobre o consumo, verificou‐se em 2004 um decréscimo no grupo mais jovem (8º e 9º ano de escolaridade), mas um aumento no de idade mais avançada (a partir do 12º ano de escolaridade). Na Europa, actualmente, não dispomos do mesmo tipo de informação, na medida em que, os resultados que conhecemos são fruto de projectos que se desenvolvem de forma desarticulada entre si. Na realidade, a investigação sobre as questões associadas ao alcoolismo é escassa (Social Issues Research Centre, 1998). A Organização Mundial de Saúde (OMS) afirma que o consumo de drogas e de álcool são um problema de saúde à escala global. As estatísticas oficiais do Reino Unido sugerem que as consequências mais graves deste tipo de consumo se faz sentir ao nível do grupo etário compreendido entre os 16 e os 24 anos de idade.
A bibliografia específica sobre o consumo de bebidas alcoólicas em Portugal é relativamente escassa e de difícil acesso. É mais fácil ter acesso a dados publicados em fontes internacionais do que nas nacionais. As razões para tal são múltiplas e, de certo, uma delas passa pela desvalorização da prática científica, expressa nos parcos recursos que têm sido disponibilizados para a investigação e, consequente, publicação da informação existente.
A informação que existe sobre os consumos em Portugal nem sempre é consistente. Os dados relativos aos consumos de álcool em Portugal diferem em função do tipo de fontes a que recorremos. Num estudo realizado por Leifman (2001) relativamente aos consumos de treze países da União Europeia e da Noruega os dados são apresentados numa perspectiva histórica e devidamente subdivididos por tipo de bebida, nomeadamente vinho, cerveja e bebidas destiladas. Os países estudados foram: Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Itália, Noruega, Portugal, Reino Unido e Suécia.
De acordo com aquele estudo, no que se refere ao consumo de vinho a França, nos períodos de 1953 – 1955, 1963 – 1965 e 1973 – 1975 e 1993 – 1995, foi o país que mais vinho consumiu. Portugal foi o segundo em todos estes períodos, com a excepção dos anos entre 1973 – 1975, cujo segundo lugar foi ocupado pela Itália, ficando Portugal como o terceiro maior consumidor.
Tendo por base os mesmos períodos, mas no que respeita ao consumo de cerveja, Portugal foi o 15º no período entre 1963 – 1965, 14º no período de 1973 – 1975, 13º entre 1983 – 1985 e 9º entre 1993 – 1995. Relativamente ao consumo de bebidas destiladas, Portugal é o país que menos consumiu durante os períodos referidos, com excepção dos anos de 1993 – 1995 em que foi 14º e Itália 15º.
Com base nos dados publicados no World Drinking Trends (World Advertising Research Center, 2004), Portugal ocupava, em 2002, em termos de consumo de álcool puro, o sétimo lugar a nível mundial, com uma capitação de 9.7 litros. No mesmo ano, ainda segundo a mesma fonte, Portugal ocupou o quarto lugar em termos de consumo de vinho, situando‐se o valor nos 43 litros per capita. Portugal foi apresentado como o nono maior produtor mundial desta bebida (6694 milhões de hectolitros). Relativamente a outras bebidas alcoólicas, também no ano de 2002, Portugal apresentou um consumo de 58.6 litros per capita de cerveja e 1.4 litros per capita de bebidas destiladas, conferindo‐lhe a vigésima segunda e trigésima terceira posições, respectivamente, à escala mundial (Vasconcelos‐Raposo et al., 2006).
O alcoolismo é a maior das toxicodependências que experimentamos em Portugal, estando o seu número calculado em cerca de 1800000 consumidores (Coutinho, Morais, Salgadinho, & Marques, 1995). De acordo com a publicação do World Drinking Trends de 1998, Portugal apresenta‐se como o país com o maior índice de capitação a nível mundial, com 61 litros. No que se refere à produção, a sua classificação é 7º a nível mundial e 4º ao Europeu. Estes valores acompanham o crescimento que tem tido lugar ao nível produtivo dos diferentes tipos de bebidas: vinho, cerveja e destiladas.
É escasso o conhecimento que actualmente existe em Portugal sobre os factores associados ao consumo, assim como relativamente às atitudes dos cidadãos perante a ingestão excessiva de bebidas alcoólicas, independentemente do grupo etário.
O consumo excessivo de bebidas por parte dos adolescentes deve‐se, de alguma maneira, ao facto dos indivíduos neste período das suas vidas estarem ávidos para se afirmarem como independentes e, por este mesmo facto, desejosos de aderirem a comportamentos experimentais, como é o caso do
consumo de substâncias tóxicas e, de entre as quais, o álcool é a de mais fácil acesso (Reifman, Barnes, Dintcheff, Farrel, & Uhteg, 1998) e mais susceptível de uma resposta imediata, face aos estímulos por parte dos colegas de escola (Eccles et al., 2003; Fuente, 1997; Nielsen, 1999).
Outros elementos influenciadores do consumo, tal como sugerido na literatura prendem‐se com os grupos a que os indivíduos pertencem, assim como a religião. Os anglo‐saxónicos tendem a consumir como um mecanismo para lidar com situações stressantes. Enquanto os afro‐americanos consomem bebidas, tanto por influência dos companheiros, como por um acto de rebelião (Bachman et al., 2003; Bennett, 1986; Shinew & Parry, 2005; Thombs & Hamilton, 2002; Toumbourou et al., 2003). Relativamente aos indivíduos religiosos, são os Católicos Apostólicos Romanos os que se apresentam em maior risco quando comparados com outros grupos (Engs & Mullen, 1999). O CONSUMO DE ÁLCOOL COMO PROBLEMA SOCIAL O consumo de bebidas alcoólicas é um dos maiores problemas sociais e de saúde que as sociedades de há muito reconhecem e que ainda se faz sentir actualmente (Almeida‐Filho, Lessa, Magalhães, Araújo, Aquino, Kawachi, & James, 2004; Clausen, Romoren, Rossow, Ingstad, Molebatsi, & Holmboe‐ Otttesen, 2005; Room, Babot, & Rhem, 2005; Shinew & Parry, 2005).
A produção de vinho com o sumo das uvas data de 4000 anos antes de Cristo, na Grécia, Palestina e Egipto (Coutinho et al., 1995). Foram vários os povos que desenvolveram as artes do fabrico de bebidas alcoólicas, tais como os Egípcios, os Romanos e os Gregos; na Grécia adorava‐se Baco, o Deus do Vinho,
sendo esta bebida considerada como o líquido da vida (Vasconcelos‐Raposo, & Alves, 2007).
As bebidas alcoólicas são, reconhecidamente, utilizadas pelas sociedades humanas desde os tempos em que se iniciaram os processos de registos escritos das suas vidas (Room, Jernigan, & Carlini‐Marlatt, 2002). Historicamente, num primeiro momento, o consumo era a consequência do que cada agregado era capaz de produzir para si mesmo. No entanto, com o correr do tempo a produção deixou de ser controlada ao nível pessoal e logo a comercialização e, consequente, industrialização tiveram lugar. A resultante desta evolução é que hoje em dia, as bebidas alcoólicas estão disponíveis, praticamente, em todos os lugares. Se é verdade que a bebida é conhecida vai para séculos, também é o conhecimento que as sociedades têm do tipo de problemas, assim como, de doenças que estão associadas a este comportamento. Num determinado momento o consumo de bebidas alcoólicas foi visto como um problema de todos, mas com a consolidação da economia de mercado e respectivos valores socioculturais, o consumo de bebidas passou a ser visto como um problema específico a uma determinada subclasse social: os alcoólicos.
Apenas nos últimos 35 anos é que os problemas associados ao consumo de álcool ganharam relevância na agenda dos profissionais, quer ao nível da prevenção, quer ao nível da intervenção terapêutica. Na saúde, em geral, aproximadamente 4% dos custos e 6.8% das situações negativas que contribuem para o aparecimento de condições patológicas estão, de alguma forma, relacionados com o consumo de álcool (Room et al., 2005). Rhem, Room, Graham, Monteiro, Gmel e Sempos (2003) afirmam que o consumo de bebidas alcoólicas está relacionado com mais de 60 condições médicas.
O consumo de bebidas, como fenómeno social, apresenta‐se como um fenómeno complexo por vários motivos. Em primeiro lugar, porque sendo
objecto de estudo, vai já para décadas, e alvo de políticas de saúde públicas agressivas, continua a apresentar‐se resistente à luta que tem sido alvo e que é exemplo o que ocorreu com a lei seca, nos Estados Unidos da América. Em segundo lugar, as pessoas são afectadas de formas diferentes face a idênticos padrões de consumo. Uns sofrem de patologias e outros parecem ser imunes aos efeitos nefastos desta substância. Em terceiro lugar, para além dos prejuízos para a saúde, há ainda a considerar o crescente número de acidentes rodoviários que reconhecidamente resultam do consumo. A estes importa acrescentar a criminalidade, a delinquência e a violência, independentemente do contexto em que é exercida.
Em parte, muitos destes problemas resultam do facto do consumo abusivo desta substância, por períodos prolongados, ser aceite como um comportamento da responsabilidade pessoal, desde que a interferência com a rotina de vida dos outros não seja constatada. Face a esta percepção, o grupo social não interfere. Mas, para além deste aspecto de carácter mais individual, importa, salientar que a tolerância se faz a outros níveis, nomeadamente, o político, o social e o cultural (Abdullah & Fielding, 2002; Almeida‐Filho et al., 2004; Clausen et al., 2005; Gundy, 2002; Jarvinen, 2003; Kenkel & Ribar, 1994; Leifman, 2001; Mamman et al., 2002).
O consumo de bebidas alcoólicas por adolescentes é reconhecido, internacionalmente, como um fenómeno com dimensões de problema de saúde pública (Chassin, Husong, Barrera, Molina, Trim, & Ritter, 2004; Coffman et al., 2007; Hulse, Robertson, & Trait, 2001; Johnston et al., 2005; Liang & Huang, 2008). Esta constatação tem por base, tanto as consequências em termos da saúde de quem bebe, como as adversidades sociais que podem advir desse consumo. Por exemplo, aquelas que resultam de lesões físicas permanentes e que foram causadas por acidentes, tanto em quem bebe e tem os acidentes, como naqueles que, por infortúnio, acabaram vitimizados pelas decisões de
quem bebeu em excesso. Temos ainda de considerar que os consumos exagerados também se fazem reflectir negativamente no desenvolvimento do cérebro dos bebedores, assim como na eventual dependência do álcool (Spear, 2000; Tapert, Caldwell, & Burke, 2005).
Em 1996, Breda enumerou aquelas que se apresentam como as principais consequências nefastas dos consumos exagerados por parte dos jovens, são elas: 1‐ sintomas de ressaca, tal como acompanhados com náuseas, vómitos, perda temporária de memória e a típica dor de cabeça; 2‐ comportamentos violentos e/ou problemas com as autoridades; 3‐ alterações do estado mental; e 4‐ acidentes, dos quais podem resultar lesões permanentes e até mesmo a morte de pessoas.
De acordo como Johnston et al. (2005), o pico do consumo de bebidas alcoólicas tende a ocorrer no período imediatamente após o terminus do ensino secundário, ou seja, por volta dos 18 anos, verificando‐se uma quebra a partir dos 24 ou 25 anos de idade. Ainda de acordo com este autor, importa ter em consideração as eventuais diferenças entre os sexos, no que se refere aos padrões de consumo. Estes consumos, na opinião de Kuntsche, Knibbe, Gmel e Engels (2005), têm por base o facto de os adolescente percepcionarem ganhos em termos de recompensas sociais, sentirem que ficam com estados de humor positivamente aumentados, evitarem sentirem‐se alienados dos restantes colegas, assim como sentirem que os seus “baixos” afectivos são reduzidos.
Quando tomamos em consideração a literatura internacional relativamente aos consumos, em termos de tipo, contexto e frequência, torna‐se evidente que esta é uma prática bastante influenciada por factores de ordem cultural (Ahlstrom & Osterberg, 2004/2005; Bobo & Husten, 2000) sendo as diferenças perceptíveis ao nível dos grupos etários, dos géneros sexuais, assim como, no que se refere, aos factores de risco associados. No entanto, a
tendência é para que, cada vez mais, os padrões se uniformizem, tal como se tem verificado nos estudos recentes, levados a cabo nos países industrializados (Ahlstrom & Osterberg, 2004/2005).
Da revisão da literatura é possível constatar uma tendência para o aumento e uniformização do padrão de consumo em particular entre os mais jovens. No estudo de O’Malley, Johnston e Bachman (1998), são descritas as tendências nos Estados Unidos da América e que encontraram eco na investigação realizada na região transmontana por Vasconcelos‐Raposo e Alves (2007). Ambos estudos constataram, não só maiores percentagens de consumo por parte dos adolescentes, mas também que esse consumo aumenta com a idade. Estes estudos diferem da maioria dos restantes, na medida em que não se cingiram a estudar jovens escolarizados, mas também aqueles que já tinham abandonado a escola. Consequentemente, verificaram uma incidência de consumo mais elevada nos adolescentes mais jovens, tendo os valores de consumo mais elevados sido registados entre os que abandonaram a escola. O mesmo acontece em outros contextos culturais (ver Ahlstrom & Osterberg, 2004/2005; Bobo & Husten, 2000).
Entre outras variáveis tidas em consideração, a escolaridade dos progenitores, parece ter um efeito preventivo, mas apenas nos mais jovens. Porém, com o aumento da idade, são os filhos de pais com maiores índices de escolaridade que evidenciam maiores consumos. Outro aspecto, talvez o mais relevante para o presente estudo, é o facto do consumo destes jovens tender a concentrar‐se em alguns dias, em particular ao fim‐de‐semana. Por outro lado, constata‐se uma diminuição nos padrões que anteriormente eram diferenciadores. Assim, os rapazes e raparigas tendem a evidenciar uma aproximação nos seus consumos, se bem que, ainda se verifique, uma ligeira diferença, na medida em que os rapazes continuam a consumir mais.
As diferenças por áreas residenciais também se têm desvanecido com o passar do tempo. Aquelas variáveis que, em tempos, foram claramente diferenciadoras agora já não o são, nomeadamente: região ou área residencial (urbano versus rural), densidade populacional, nível educacional dos pais e estabilidade da estrutura familiar (O’Malley et al., 1998).
Uma outra razão, pela qual os padrões de consumo das sociedades industrializadas se aproximam entre si, prende‐se com o facto de, como consequência da consolidação da economia de mercado e dos valores que lhe servem de base, os factores que influenciam a transição de jovem para adulto, assim como, as próprias leis do mercado de trabalho que lhe são intrínsecas, tenderem a uniformizar os eventuais comportamentos adaptativos dos cidadãos.
No percurso desenvolvimental dos cidadãos, e nos vários países, tudo indica que o consumo de bebidas alcoólicas desempenha um papel relevante. Assim sendo, importa olhar ao consumo desta substância tendo por base vários aspectos, nomeadamente os valores de ordem sociocultural, comunitários e os associados à família. O propósito é procurar compreender a relação entre a disponibilidade de álcool e os valores sobre a bebida, tal como mediados pela família, pelas suas condições de vida e pela influência religiosa. É, também, importante saber como os amigos influenciam o consumo, assim como este pode ser consequência dos grupos que exercem influência para a adesão a esta prática.