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O CONSUMO DE SUBSTÂNCIAS TÓXICAS E A AUTO‐ESTIMA 

No documento O consumo de bebidas alcoólicas como lazer (páginas 91-98)

REVISÃO DA LITERATURA 

O CONSUMO DE SUBSTÂNCIAS TÓXICAS E A AUTO‐ESTIMA 

 

  A auto‐estima é algo de importante para a maioria das pessoas. Mesmo  sem  saber  exactamente  o  que  significa  o  conceito,  ninguém  fica  indiferente 

quando escuta algum tipo de apreciação relativamente aos seus atributos. Este  é,  provavelmente,  um  dos  conceitos  psicológicos  que  mais  rapidamente  se  popularizou e que eventualmente ganhou maior utilização tanto pelos psicólogos  como pelo cidadão comum. Os profissionais, cuja actividade se centra na relação  com os outros, têm evidenciado os seus esforços no sentido de melhorarem os  níveis  de  auto‐estima  daqueles  com  quem  trabalham,  na  medida  em  que,  às  eventuais  oscilações  nesta  dimensão  psíquica  dos  cidadãos,  tendem  a  estar  associadas alterações afectivas (Baumeister, Campbel, Krueger, & Vohs, 2003).  

Para  Luthanen  e  Crocker  (2005),  quando  falamos  de  auto‐estima  deveremos  ser  cautelosos  e  criteriosos  no  uso  do  conceito,  de  forma  a  não  confundirmos, por exemplo, auto‐estima elevada com “egotism” (sentimento de  grandiosidade).  Estes  autores  sugerem  que  algumas  das  inconsistências  evidenciadas  no  âmbito  da  investigação  se  prendem  a  este  tipo  de  confusão  conceptual.  Eles  argumentam  que,  por  exemplo,  quando  o  indivíduo  sente  os  seus sentimentos de “grandiosidade” ou de importância ameaçados a sua auto‐ estima  não  é  necessariamente  afectada  negativamente.  Assim,  por  vezes,  sugere‐se  que  os  indivíduos  com  alta  auto‐estima  consomem  menos  bebidas  alcoólicas, mas, na realidade, poderá ser ao contrário. 

O  fascínio  com  a  investigação  sobre  a  auto‐estima  teve  o  seu  maior  impacto na década de 1970 e ao longo das últimas décadas foi possível acumular  o  saber  suficiente  para  que  se  possa  recorrer  ao  conceito  de  uma  forma  mais  rigorosa. Baumeister et al. (2003), definiram a auto‐estima alta e baixa como: 

“(…) an accurate, justified, balanced appreciation of one’s worth  as a person and one’s successes and competencies, but it can also refer  to  an  inflated,  arrogant,  grandiose,  unwarranted  sense  of  conceited  superiority  over  others.  By  the  same  token,  low  self‐esteem  can  be  either an accurate, well‐founded understanding of one’s shortcomings  as  a  person  or  a  distorted,  even  pathological  sense  of  insecurity  and  inferiority” (p. 2). 

Face  à  definição  apresentada,  e  aceitando‐a,  torna‐se  evidente  que  a  auto‐estima não é, em si, uma realidade, mas sim, uma percepção. Mais ainda, a  auto‐estima é um construto cultural. Assim sendo, em Portugal, cujo sistema de  valores socioculturais é de inspiração Judaico‐Cristã, é de esperar que os índices  de  auto‐estima  sejam  mais  baixos  que,  por  exemplo,  em  outros  países  cujas  orientações não privilegiem a humildade e o crescimento espiritual, tal como o  conhecemos nesta tradição. Por exemplo, o facto de, algumas gerações atrás, se  reprimir  nos  mais  jovens  o  “culto”  de  hábitos  associados  à  moda,  como  por  exemplo  a  maquilhagem  das  jovens,  é  uma  expressão  dessa  tradição.  Hoje  os  valores culturais são diferentes e reflectem uma outra forma de estar. 

Com  o  projecto  iniciado  na  Califórnia  por  Vasconcellos  na  década  de  1980, popularizou‐se a ideia que, com a melhoria dos níveis de auto‐estima da  população,  seria  possível  resolver  um  conjunto  de  problemas  sociais,  nomeadamente, as questões da gravidez precoce, o abuso de drogas e o baixo  rendimento  académico.  No  entanto,  os  resultados  das  investigações  realizadas  ao longo destes anos parecem levantar algumas reservas quanto à forma como a  auto‐estima  tem  sido  estudada.  Assim,  importa  reforçar  os  estudos  em  que  a  auto‐estima  é  definida  como  uma  variável  independente,  como  nos  parece  ser  sugerido por Smelser (1989). 

Ao contrário do que é proposto pelo grupo de estudo da auto‐estima da  Califórnia,  que  afirma  que  o  consumo  se  deve  a  baixos  níveis  de  auto‐estima,  sugerimos que, em parte, o aumento do consumo de bebidas alcoólicas é uma  consequência  das  condições  de  vida  que  os  indivíduos  vivenciam  presentemente:  insegurança  quanto  ao  trabalho  e  um  conjunto  de  outras  incertezas associados à biografia normal (Harnett et al., 2000), tal como prescrita  pelo sistema sociocultural em que cada um vive.  

Esta  perspectiva,  de  algum  modo,  tem  a  sua  origem  na  proposta  de  Mussen,  Conger  e  Kagan  (1977).  Para  estes  autores,  o  uso  de  drogas  pelos  adolescentes  pode,  simplesmente,  reflectir  uma  necessidade  de  revolta,  quer  contra  as  limitações  que  os  adultos  lhes  procuram  impor,  quer  contra  as  situações que eles percepcionam na sociedade em geral, assim como, também,  pode  ter  por  base  a  atracção  que  estes  sentem  face  à  possibilidade  de  experimentar  algo  novo.  Os  mesmos  autores  argumentam  que  o  consumo  de  outras  substâncias  como  a  cocaína  e  a  heroína,  ao  contrário  do  que  acontece  com  outras,  pode  ser  a  manifestação  de  uma  necessidade  de  escape  e  esquecimento da realidade em que se encontram.  

Alguns autores têm argumentado que são os indivíduos com baixos níveis  de auto‐estima que tendem a aderir a tais práticas. No entanto, a investigação  nesta  área  tem  evidenciado  que  poderá  não  ser  assim. Na  realidade,  Gerrard,  Gibons, Reis‐Bergan e Russel (2000) defendem que o consumo de drogas poder  ser  resultado  de  uma  maior  vulnerabilidade  por  parte  dos  indivíduos  com  alta  auto‐estima.  Caffray  e  Schneider  (2000),  e  Gerrard  et  al.  (2000),  argumentam  que  o  risco  advém  do  facto  destes  recorrerem  a  estratégias  cognitivas  que  tendem  a  minimizar  as  eventuais  consequências  do  uso  que  fazem.  Por  outras  palavras,  os  indivíduos  com  a  auto‐estima  alta  tendem  a  convencer‐se  que  os  aspectos  nefastos  associados  aos  comportamentos  a  que  aderem  não  lhes  acontecerão. Face a esta postura cognitiva, ao contrário do que é sugerido pelo  grupo  da  Califórnia,  Gerrard  et  al.  (2000)  afirmam  que  os  indivíduos  com  uma  auto‐estima alta poderão estar mais em risco do que os que têm uma baixa auto‐ estima. 

Para  além  deste  aspecto,  o  estudo  de  Gerrard  et  al.  (2000)  destaca  algumas das estratégias cognitivas a que os jovens recorrem, nomeadamente, as  alterações de percepção ao nível da aprovação por parte dos pais relativamente  ao  consumo.  Assim,  a  aprovação  do  consumo  por  parte  dos  pais  conduz  a  um 

maior  consumo  nos  que  têm  baixa  auto‐estima,  enquanto  os  indivíduos  com  auto‐estima  elevada  estabelecem  uma  relação  causal  inversa,  ou  seja,  se  beberem mais os pais aprovam os seus comportamentos. Em suma, quer a baixa  quer  a  alta  auto‐estima,  de  uma  forma  ou  de  outra,  pode  levar  ao  mesmo  resultado  diferindo  apenas  as  estratégias  cognitivas  a  que  os  jovens  recorrem  para  justificar  os  seus  comportamentos  (Wiers,  Luitgaarden,  Wieldenberg,  &  Smulders, 2005). 

São  vários  os  estudos  que  evidenciam  o  facto  de  a  auto‐estima,  como  conceito  teórico,  não  se  apresentar  com  uma  capacidade  preditiva  eficaz  relativamente  ao  consumo  de  álcool.  McGee  e  Williams  (2001),  num  estudo  longitudinal,  com  jovens  com  idades  compreendida  entre  os  9  e  os  13  anos,  verificaram que não existe qualquer relação entre baixos níveis de auto‐estima,  no início do estudo (1972 – 1973), e consumo de bebidas alcoólicas no segundo  momento  de  avaliação  (1998  –  1999).  As  únicas  relações  encontradas  foram  entre as seguintes variáveis dependentes: problemas alimentares, ideias suicidas  e  outros  comportamentos  comprometedores  da  saúde,  de  entre  os  quais  destacamos o consumo de tabaco.  

Um  segundo  estudo,  que  durou  cinco  anos,  realizado  por  Poikolainen,  Tuulio‐Henriksson,  Aalto‐Setala,  Marttunen  e  Lonnqvist  (2001)  com  706  jovens  (15 a 19 anos de idade), demonstrou que variáveis como: pais com problemas de  consumo,  grupo  social  a  que  pertence,  percepção  do  grau  de  apoio  social,  ansiedade  de  traço,  número  de  eventos  negativos  na  vida,  auto‐estima,  média  de  rendimento  escolar,  imaturidade,  neuroticismo,  etc.,  não  evidenciaram  capacidade  preditiva  ao  fim  dos  cinco  anos.  Os  únicos  comportamentos  que  demonstraram ter valor preditivo foram, para ambos os sexos: idade do primeiro  consumo e consequente adesão à prática para libertar tensões (relief practice),  tanto através do consumo de tabaco como de bebidas alcoólicas. 

Um  terceiro  estudo  (Hill,  Shen,  Lowers,  &  Locke,  2000),  aclamado  pela  sua  extensão  de  variáveis  estudadas,  assim  como  pelo  seu  rigor  científico,  também  demonstrou  que  a  auto‐estima  não  tem  capacidade  preditiva.  Neste  estudo,  com  uma  amostra  de  125  sujeitos,  cujo  acompanhamento  resultou  em  683 avaliações, ficou demonstrado que a idade do primeiro consumo tende a ter  valor preditivo, assim como o facto de se pertencer a um sistema familiar onde  há  vários  casos  de  alcoolismo.  Este  facto  estará  na  base  de  uma  exposição  intensa  às  bebidas  e  aos  comportamentos  modelo  oferecidos  pelos  pais  e  familiares, daí que, a idade do primeiro consumo tenda a ocorrer mais cedo, na  medida em que o acesso às bebidas está particularmente facilitado. 

Para Buysse (1997) os adolescentes que possuem muitos factores de risco  na  sua  família  (conflitos,  falta  de  suporte,  hábitos  de  consumo  excessivo,  alcoolismo,  etc.)  e  problemas  na  sua  vida  escolar  desenvolvem,  geralmente,  sentimentos  de  solidão,  podendo  o  adolescente  desenvolver  comportamentos  anti‐sociais, caso a sua família também possua comportamentos desviantes. Isto  é  importante  em  relação  ao  uso  de  substâncias,  pois,  segundo  Sigurdsson  e  Gudjonsson  (1996),  diversos  estudos  têm  encontrado  resultados  consistentes  que comprovam a existência de características anti‐sociais da personalidade que  diferenciam os indivíduos consumidores de substâncias (álcool/drogas) dos que  não consomem. Aparentemente, o uso de drogas está mais relacionado com as  características  anti‐sociais  da  personalidade  do  que  com  o  consumo  frequente  de álcool, embora ambos sejam importantes precursores dessas características.  

Segundo Alsaker (1995), quando um adolescente tenta adoptar um papel  adulto  fá‐lo  procurando  seguir  as  regras  que  pensa  serem  “privilégios  dos  adultos”,  entre  as  quais  está  o  consumo  de  álcool.  Para  esta  autora,  como  o  consumo,  e  por  vezes  o  abuso  de  álcool,  nalguns  países,  é  algo  normal  nos  adultos,  isto  pode  acarretar  problemas  de  socialização  negativos  para  o  adolescente  na  sua  procura  de  um  papel  adulto.  Esse  pode  ser  o  caso  de 

Portugal,  onde  o  consumo  de  álcool  é  um  costume  entre  a  nossa  população  e,  em  algumas  regiões,  desde  a  tenra  idade,  não  sendo  alvo  de  reprovação  social  explícita. 

Entre  outras  implicações,  os  estudos  agora  referidos  levantam  algumas  reservas  a  outros  que,  no  passado,  argumentaram  a  favor  de  uma  maior  predisposição  genética  para  o  consumo.  Por  exemplo  Nastasi  (1995)  defende  que,  ao  consumo  de  álcool,  estão  associados  múltiplos  factores  de  risco  no  decorrer  da  adolescência.  Na  sua  argumentação  avança  com  as  seguintes  classificações:  pessoais  e  interpessoais.  Os  factores  de  risco  pessoais  são  definidos  como  predisposições  genéticas  e  bioquímicas;  atitudes  favoráveis  ao  consumo de substâncias; indiferença quanto à qualidade do rendimento escolar  obtido;  comportamentos  e  manifestações  afectivas  desviantes  na  forma  de  hiperactividade, alterações do humor e experimentação precoce de drogas.  

Como  factores  de  risco  interpessoais,  considera,  relações  interpessoais  pobres,  caracterizadas  por  alienação  e  rebelião,  envolvimento  familiar  caracterizado  por  conflitos,  deficientes  relações  entre  o  jovem  e  os  pais  e  a  existência  de  normas  tanto  de  familiares  como  de  colegas  que  suportam  o  consumo  de  substâncias. Em  relação  a  este  último  factor,  a  investigação  mais  recente  (Baumeister  et  al.,  2003;  Bijttebier,  Goethals,  &  Ansoms,  2006)  tem  vindo  a  confirmar  as  propostas  avançadas  por  Nastasi  (1995)  e  Luhtanen  e  Crocker  (2005),  que  concluiram  que  os  jovens  envolvidos  no  consumo  com  os  pares  que  consomem  substâncias  (álcool,  drogas,  etc.)  têm  maiores  probabilidades de consumir do que os jovens que têm pais consumidores.  

No presente estudo, procurámos responder às questões: 1‐ Que relação  há  entre  auto‐estima  e  consumo  de  bebidas  alcoólicas?  e  2‐  Há  diferenças  ao  nível dos motivos para o consumo nos diferentes grupos? 

No documento O consumo de bebidas alcoólicas como lazer (páginas 91-98)