REVISÃO DA LITERATURA
O CONSUMO DE SUBSTÂNCIAS TÓXICAS E A AUTO‐ESTIMA
A auto‐estima é algo de importante para a maioria das pessoas. Mesmo sem saber exactamente o que significa o conceito, ninguém fica indiferente
quando escuta algum tipo de apreciação relativamente aos seus atributos. Este é, provavelmente, um dos conceitos psicológicos que mais rapidamente se popularizou e que eventualmente ganhou maior utilização tanto pelos psicólogos como pelo cidadão comum. Os profissionais, cuja actividade se centra na relação com os outros, têm evidenciado os seus esforços no sentido de melhorarem os níveis de auto‐estima daqueles com quem trabalham, na medida em que, às eventuais oscilações nesta dimensão psíquica dos cidadãos, tendem a estar associadas alterações afectivas (Baumeister, Campbel, Krueger, & Vohs, 2003).
Para Luthanen e Crocker (2005), quando falamos de auto‐estima deveremos ser cautelosos e criteriosos no uso do conceito, de forma a não confundirmos, por exemplo, auto‐estima elevada com “egotism” (sentimento de grandiosidade). Estes autores sugerem que algumas das inconsistências evidenciadas no âmbito da investigação se prendem a este tipo de confusão conceptual. Eles argumentam que, por exemplo, quando o indivíduo sente os seus sentimentos de “grandiosidade” ou de importância ameaçados a sua auto‐ estima não é necessariamente afectada negativamente. Assim, por vezes, sugere‐se que os indivíduos com alta auto‐estima consomem menos bebidas alcoólicas, mas, na realidade, poderá ser ao contrário.
O fascínio com a investigação sobre a auto‐estima teve o seu maior impacto na década de 1970 e ao longo das últimas décadas foi possível acumular o saber suficiente para que se possa recorrer ao conceito de uma forma mais rigorosa. Baumeister et al. (2003), definiram a auto‐estima alta e baixa como:
“(…) an accurate, justified, balanced appreciation of one’s worth as a person and one’s successes and competencies, but it can also refer to an inflated, arrogant, grandiose, unwarranted sense of conceited superiority over others. By the same token, low self‐esteem can be either an accurate, well‐founded understanding of one’s shortcomings as a person or a distorted, even pathological sense of insecurity and inferiority” (p. 2).
Face à definição apresentada, e aceitando‐a, torna‐se evidente que a auto‐estima não é, em si, uma realidade, mas sim, uma percepção. Mais ainda, a auto‐estima é um construto cultural. Assim sendo, em Portugal, cujo sistema de valores socioculturais é de inspiração Judaico‐Cristã, é de esperar que os índices de auto‐estima sejam mais baixos que, por exemplo, em outros países cujas orientações não privilegiem a humildade e o crescimento espiritual, tal como o conhecemos nesta tradição. Por exemplo, o facto de, algumas gerações atrás, se reprimir nos mais jovens o “culto” de hábitos associados à moda, como por exemplo a maquilhagem das jovens, é uma expressão dessa tradição. Hoje os valores culturais são diferentes e reflectem uma outra forma de estar.
Com o projecto iniciado na Califórnia por Vasconcellos na década de 1980, popularizou‐se a ideia que, com a melhoria dos níveis de auto‐estima da população, seria possível resolver um conjunto de problemas sociais, nomeadamente, as questões da gravidez precoce, o abuso de drogas e o baixo rendimento académico. No entanto, os resultados das investigações realizadas ao longo destes anos parecem levantar algumas reservas quanto à forma como a auto‐estima tem sido estudada. Assim, importa reforçar os estudos em que a auto‐estima é definida como uma variável independente, como nos parece ser sugerido por Smelser (1989).
Ao contrário do que é proposto pelo grupo de estudo da auto‐estima da Califórnia, que afirma que o consumo se deve a baixos níveis de auto‐estima, sugerimos que, em parte, o aumento do consumo de bebidas alcoólicas é uma consequência das condições de vida que os indivíduos vivenciam presentemente: insegurança quanto ao trabalho e um conjunto de outras incertezas associados à biografia normal (Harnett et al., 2000), tal como prescrita pelo sistema sociocultural em que cada um vive.
Esta perspectiva, de algum modo, tem a sua origem na proposta de Mussen, Conger e Kagan (1977). Para estes autores, o uso de drogas pelos adolescentes pode, simplesmente, reflectir uma necessidade de revolta, quer contra as limitações que os adultos lhes procuram impor, quer contra as situações que eles percepcionam na sociedade em geral, assim como, também, pode ter por base a atracção que estes sentem face à possibilidade de experimentar algo novo. Os mesmos autores argumentam que o consumo de outras substâncias como a cocaína e a heroína, ao contrário do que acontece com outras, pode ser a manifestação de uma necessidade de escape e esquecimento da realidade em que se encontram.
Alguns autores têm argumentado que são os indivíduos com baixos níveis de auto‐estima que tendem a aderir a tais práticas. No entanto, a investigação nesta área tem evidenciado que poderá não ser assim. Na realidade, Gerrard, Gibons, Reis‐Bergan e Russel (2000) defendem que o consumo de drogas poder ser resultado de uma maior vulnerabilidade por parte dos indivíduos com alta auto‐estima. Caffray e Schneider (2000), e Gerrard et al. (2000), argumentam que o risco advém do facto destes recorrerem a estratégias cognitivas que tendem a minimizar as eventuais consequências do uso que fazem. Por outras palavras, os indivíduos com a auto‐estima alta tendem a convencer‐se que os aspectos nefastos associados aos comportamentos a que aderem não lhes acontecerão. Face a esta postura cognitiva, ao contrário do que é sugerido pelo grupo da Califórnia, Gerrard et al. (2000) afirmam que os indivíduos com uma auto‐estima alta poderão estar mais em risco do que os que têm uma baixa auto‐ estima.
Para além deste aspecto, o estudo de Gerrard et al. (2000) destaca algumas das estratégias cognitivas a que os jovens recorrem, nomeadamente, as alterações de percepção ao nível da aprovação por parte dos pais relativamente ao consumo. Assim, a aprovação do consumo por parte dos pais conduz a um
maior consumo nos que têm baixa auto‐estima, enquanto os indivíduos com auto‐estima elevada estabelecem uma relação causal inversa, ou seja, se beberem mais os pais aprovam os seus comportamentos. Em suma, quer a baixa quer a alta auto‐estima, de uma forma ou de outra, pode levar ao mesmo resultado diferindo apenas as estratégias cognitivas a que os jovens recorrem para justificar os seus comportamentos (Wiers, Luitgaarden, Wieldenberg, & Smulders, 2005).
São vários os estudos que evidenciam o facto de a auto‐estima, como conceito teórico, não se apresentar com uma capacidade preditiva eficaz relativamente ao consumo de álcool. McGee e Williams (2001), num estudo longitudinal, com jovens com idades compreendida entre os 9 e os 13 anos, verificaram que não existe qualquer relação entre baixos níveis de auto‐estima, no início do estudo (1972 – 1973), e consumo de bebidas alcoólicas no segundo momento de avaliação (1998 – 1999). As únicas relações encontradas foram entre as seguintes variáveis dependentes: problemas alimentares, ideias suicidas e outros comportamentos comprometedores da saúde, de entre os quais destacamos o consumo de tabaco.
Um segundo estudo, que durou cinco anos, realizado por Poikolainen, Tuulio‐Henriksson, Aalto‐Setala, Marttunen e Lonnqvist (2001) com 706 jovens (15 a 19 anos de idade), demonstrou que variáveis como: pais com problemas de consumo, grupo social a que pertence, percepção do grau de apoio social, ansiedade de traço, número de eventos negativos na vida, auto‐estima, média de rendimento escolar, imaturidade, neuroticismo, etc., não evidenciaram capacidade preditiva ao fim dos cinco anos. Os únicos comportamentos que demonstraram ter valor preditivo foram, para ambos os sexos: idade do primeiro consumo e consequente adesão à prática para libertar tensões (relief practice), tanto através do consumo de tabaco como de bebidas alcoólicas.
Um terceiro estudo (Hill, Shen, Lowers, & Locke, 2000), aclamado pela sua extensão de variáveis estudadas, assim como pelo seu rigor científico, também demonstrou que a auto‐estima não tem capacidade preditiva. Neste estudo, com uma amostra de 125 sujeitos, cujo acompanhamento resultou em 683 avaliações, ficou demonstrado que a idade do primeiro consumo tende a ter valor preditivo, assim como o facto de se pertencer a um sistema familiar onde há vários casos de alcoolismo. Este facto estará na base de uma exposição intensa às bebidas e aos comportamentos modelo oferecidos pelos pais e familiares, daí que, a idade do primeiro consumo tenda a ocorrer mais cedo, na medida em que o acesso às bebidas está particularmente facilitado.
Para Buysse (1997) os adolescentes que possuem muitos factores de risco na sua família (conflitos, falta de suporte, hábitos de consumo excessivo, alcoolismo, etc.) e problemas na sua vida escolar desenvolvem, geralmente, sentimentos de solidão, podendo o adolescente desenvolver comportamentos anti‐sociais, caso a sua família também possua comportamentos desviantes. Isto é importante em relação ao uso de substâncias, pois, segundo Sigurdsson e Gudjonsson (1996), diversos estudos têm encontrado resultados consistentes que comprovam a existência de características anti‐sociais da personalidade que diferenciam os indivíduos consumidores de substâncias (álcool/drogas) dos que não consomem. Aparentemente, o uso de drogas está mais relacionado com as características anti‐sociais da personalidade do que com o consumo frequente de álcool, embora ambos sejam importantes precursores dessas características.
Segundo Alsaker (1995), quando um adolescente tenta adoptar um papel adulto fá‐lo procurando seguir as regras que pensa serem “privilégios dos adultos”, entre as quais está o consumo de álcool. Para esta autora, como o consumo, e por vezes o abuso de álcool, nalguns países, é algo normal nos adultos, isto pode acarretar problemas de socialização negativos para o adolescente na sua procura de um papel adulto. Esse pode ser o caso de
Portugal, onde o consumo de álcool é um costume entre a nossa população e, em algumas regiões, desde a tenra idade, não sendo alvo de reprovação social explícita.
Entre outras implicações, os estudos agora referidos levantam algumas reservas a outros que, no passado, argumentaram a favor de uma maior predisposição genética para o consumo. Por exemplo Nastasi (1995) defende que, ao consumo de álcool, estão associados múltiplos factores de risco no decorrer da adolescência. Na sua argumentação avança com as seguintes classificações: pessoais e interpessoais. Os factores de risco pessoais são definidos como predisposições genéticas e bioquímicas; atitudes favoráveis ao consumo de substâncias; indiferença quanto à qualidade do rendimento escolar obtido; comportamentos e manifestações afectivas desviantes na forma de hiperactividade, alterações do humor e experimentação precoce de drogas.
Como factores de risco interpessoais, considera, relações interpessoais pobres, caracterizadas por alienação e rebelião, envolvimento familiar caracterizado por conflitos, deficientes relações entre o jovem e os pais e a existência de normas tanto de familiares como de colegas que suportam o consumo de substâncias. Em relação a este último factor, a investigação mais recente (Baumeister et al., 2003; Bijttebier, Goethals, & Ansoms, 2006) tem vindo a confirmar as propostas avançadas por Nastasi (1995) e Luhtanen e Crocker (2005), que concluiram que os jovens envolvidos no consumo com os pares que consomem substâncias (álcool, drogas, etc.) têm maiores probabilidades de consumir do que os jovens que têm pais consumidores.
No presente estudo, procurámos responder às questões: 1‐ Que relação há entre auto‐estima e consumo de bebidas alcoólicas? e 2‐ Há diferenças ao nível dos motivos para o consumo nos diferentes grupos?