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2. PRÁTICAS DE LETRAMENTO DIGITAL: SUBSÍDIOS TEÓRICOS

2.2 CONTATO LINGUÍSTICO POR ARTEFATOS TECNOLÓGICOS E

É importante salientar que neste trabalho não consideramos como ambiente apenas fronteiras geográficas e historicamente definidas. Esta acepção renovada, crucial para justificar nosso olhar específico sobre a mediação tecnológica como esfera legítima de atividade linguística, apoia-se em posições conceituais e alguns resultados de estudos empíricos compatíveis com nossa perspectiva (Souza, 2011). Portanto, recuperar situações de

contato linguístico a partir de uma breve retrospectiva histórica parece-nos adequado para iniciarmos a nossa reflexão sobre a questão.

Appel e Muysken (1987, p.5-6) emprestam terminologia da ecologia para identificar cinco situações de contato linguístico. A primeira foi chamada de arquipélago linguístico (linguistic archipelago), referindo-se à situação em que uma diversidade de línguas não relacionadas é falada em uma mesma ecosfera, cada uma com poucos falantes. Os autores salientam que situações como essa são raras atualmente, mas eram muito frequentes na era pré-colonial. Como exemplo, eles apontam a bacia amazônica e o deserto australiano, lugares em que viviam muitos aborígenes. Para a sociolinguística, afirmam os autores, essas situações são caracterizadas como exemplo de bilinguismo extensivo (extensive bilingualism), em que se observava difusão de palavras e elementos da gramática de língua para língua. Um segundo ambiente envolve fronteiras mais ou menos estáveis entre famílias linguísticas. Exemplos são as línguas germânicas e românicas na Suíça e Bélgica, ou as línguas indo-europeias e dravidianas na Índia. O fenômeno relatado para essa situação foi chamado de empréstimo extensivo. O terceiro tipo de situação de contato é resultante da expansão colonial europeia. No colonialismo, variantes de línguas eram abundantes. Como exemplos, temos o inglês, o francês, o português e o espanhol. Uma quarta situação reflete nichos individuais de falantes de línguas minoritárias. Exemplos: gaélico e galês na Grã-Bretanha, frísia nos Países Baixos, basco na França e Espanha. A última situação de contato recuperada pelos autores é de algum modo resultante de movimento migratório reverso: o influxo de povos do pós-colonial nas sociedades industriais de Terceiro Mundo. Como exemplos temos os povos do Caribe que migraram para os Estados Unidos e Europa, América Central, além dos povos do Mediterrâneo que migraram predominantemente para Europa Ocidental.

Ampliando as situações de contato linguístico em consequência da globalização, Crystal (2003, p. xi) argumenta:

Ainda não se tem uma tipologia adequada da notável variedade de situações de contato de línguas que emerge em consequência da globalização, seja fisicamente (ex.: por meio de movimento populacional e desenvolvimento econômico) ou virtualmente (ex.: através da comunicação via internet ou radiodifusão por satélite). (CRYSTAL, 2003, p. xi).23

Para exemplificar estes argumentos, tomemos a situação da China, país em que a língua inglesa não tem status de língua oficial (Crystal, 2003). Um estudo realizado por Gao

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We have as yet no adequate typology of the remarkable range of language contact situations which have emerged as a consequence of globalization, either physically (e.g. through population movement and economic development) or virtually (e.g. through Internet communication and satellite broadcasting).

(2006) evidencia o impacto da língua inglesa no mandarim chinês propiciado pelo aumento do uso do inglês mediado por computador. Sendo assim, nesse contexto a comunicação em rede por meio da linguagem do computador serviu como affordance para facilitar a modificação da língua chinesa na era digital.

Em um estudo de caso, Lam (2004) investigou práticas discursivas e sociais em uma sala de bate-papo bilíngue cantonês-inglês. A pesquisadora observou como esse ambiente da internet (sala de bate papo) proporcionava um contexto adicional de socialização e aprendizagem de língua inglesa para duas jovens chinesas imigrantes nos EUA. Essas jovens usavam mudanças de código linguístico (code-switching) entre inglês e cantonês para expressar modalidade, transmitir humor e emoção, e marcar papeis sociais e relacionamentos em suas interações. Os resultados do estudo de Sam (Op.cit.) sugerem que a linguagem mediada por mensagem instantânea (MI) é um registro híbrido em vários aspectos, já que a MI incorpora traços da língua falada cantonesa como também do texto escrito inglês. Além disso, os dados sugerem que o uso de marcadores do discurso em cantonês pode ser um modo simples pelo qual a língua cantonesa é incorporada em diálogos em inglês, representando formas globais do inglês usado por adolescentes em ambientes digitais. Em sua conclusão, a autora sugere que formas híbridas como as vistas ajudam a criar “uma identidade étnica coletiva” para imigrantes chineses. Depreende-se do estudo de caso relatado pela autora, que as participantes souberam buscar propiciamentos no ambiente digital para o desenvolvimento de suas habilidades comunicativas em língua inglesa. Segundo Lam (2004) “as garotas me contaram que se sentiam mais confortáveis falando inglês depois de iniciar interações na sala de bate papo”.24

Como nos mostra Crystal (2008, citado em Warschauer, 2010, p. 494), o uso de frases muito semelhantes àquelas usadas em mensagens instantâneas (MI) são bem antigas. Por exemplo, IOU (I owe you) é conhecida desde 1618. O que muda é apenas o tipo de mídia usado para a comunicação.

Conhecer novos modos de contato linguístico que se distinguem do seu sentido histórico e tradicional - ou seja, aqueles que têm a migração ou imigração como pré-condição - parece trazer novos encaminhamentos para os estudos de bilinguismo (APPEL e MUYSKEN, 1987, p.5-6). Pressupõe-se que a investigação sobre as possibilidades de explorar se as tecnologias constroem situação de bilinguismo contextual ou societário pode nos ajudar a esclarecer quem são os indivíduos usuários e suas diferenças em idade, gênero, raça e classe, dentre outras variáveis (GAO, 2006).

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“The girls pointed out that they felt more comfortable speaking English after joining the chat room” (Lam,

Essa concepção pressupõe que língua é interação, englobando o fato dos usuários dela se valerem de outros recursos não-linguísticos e outros ambientes (meios) para se comunicar, inclusive com interface, como acontece na linguagem da internet, ou ainda por gestos, como a língua dos sinais para surdos.

Portanto, é pertinente admitir, como enfatiza Coscarelli (2009, p. 13), que a distinção entre digital e não-digital, real e virtual não faz mais sentido. Nas palavras da autora, “não há motivo para separarmos o espaço digital do espaço da vida real, como se o digital e o “real” fossem dois ambientes diferentes e desvinculados. Não são e não precisam ser” (COSCARELLI, 2012, p.9). As TICs disponibilizam vários mecanismos de comunicação (chat, SMS, jogos online, dentre outros) e encorajam experiências de linguagem entre pessoas de línguas diferentes, possibilitando aumento do contato linguístico. Do mesmo modo, os hipertextos ampliam a interação dos seus leitores com novas aprendizagens e culturas. Em seu sentido sociológico, o contato linguístico se verifica quando duas ou mais línguas são usadas de modo alternado pelos mesmos indivíduos para atender as suas necessidades comunicativas. O espaço do contato está, portanto, em seus usuários (Cf. WEINREICH, 1967, p. 1). Ainda que o ambiente virtual pós-moderno não era realidade no momento em que Weinreich (Op.cit.) formulou o seu pensamento sobre o papel do contexto (físico e socioeconômico) como elemento que propicia o contato, sua ideia se aplica ao momento atual de interação mediada pelos artefatos tecnológicos. A seguir, ao descrever o crescimento do acesso ao computador e suas redes, busco recuperar algumas questões relacionadas à desigualdade de acesso a este artefato do ponto de vista social.