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4 DISCUSSÃO E ANÁLISE DAS HIPÓTESES

4.1 Avaliação da participação do Terceiro Mundo

4.1.1 Contestação e reforma

No início da presente dissertação, lançou-se a hipótese, baseada nos argumentos esgrimidos pelas TWAIL, de que o Terceiro Mundo teria participado da Conferência Diplomática com postura reformista.

Em muitos dos temas tratados pela Conferência, sobretudo no Protocolo I, o Terceiro Mundo de fato aparece como um bloco solidário à causa dos povos sob dominação estrangeira. Em sua primeira participação em uma conferência diplomática dedicada a reformar o Direito dos Conflitos Armados, o Terceiro Mundo manifestou toda sua disposição de colocar esse regime a serviço de uma transformação substantiva da realidade, que pudesse promover a libertação dos povos.

Assim se explica, por exemplo, a posição aguerrida em defesa da participação dos movimentos de libertação nacional na Conferência. Dado que muitos dos Estados presentes haviam, eles próprios, acabado de passar por guerras de libertação, ficou clara a solidariedade com os povos que ainda travavam essa luta. Os Estados recentemente independentes entendiam que os movimentos de libertação teriam não só um justo assento na Conferência mas iriam, também, fazer coro aos seus argumentos, reforçando sua posição no quadro parlamentar da Conferência. Ao mesmo tempo, a restrição da participação aos movimentos reconhecidos por organismos regionais conferia certo grau de controle sobre os grupos que seriam aceitos – o que permitiu, por exemplo, que não fosse atendido o pleito de representantes curdos para participarem da Conferência.357

Também no caso da definição de conflitos armados internacionais, o tema das guerras no exercício do direito da autodeterminação – contra o colonialismo, a ocupação estrangeira e o apartheid – foi tratado como uma das questões centrais da Conferência. Não por outro motivo, esse artigo foi o único a ser submetido à consideração do Plenário já na primeira sessão, em 1974. O objetivo do Terceiro Mundo foi o de conferir legitimidade internacional a essas lutas e aumentar o grau de proteção aos chamados freedom fighters. Esses países rejeitaram o dogmatismo do bloco ocidental, que se apegava a distinções teóricas entre jus in bello e jus ad bellum. Não se tratava, nesse caso, de defender uma distinção teórica, mas de influenciar conflitos com consequências reais para as populações envolvidas. Ao classificar esses conflitos como internacionais, garantiu-se a aplicabilidade de todo o corpo do Direito Internacional Humanitário, submetendo os Estados à observância dessas regras nos casos em que tomassem parte desses conflitos.

Complemento à questão das guerras de libertação foi a postura adotada quanto à definição de combatentes e prisioneiros de guerra. Nesse caso, o Terceiro Mundo empenhou- se para que os integrantes de movimentos de guerrilha fossem tratados como combatentes e,

357 BRETTON, Remarques Générales sur les Travaux de la Conférence de Genève sur la Réaffirmation et le

em caso de captura, como prisioneiros de guerra. De forma realista, reconheceu-se que o recurso a táticas de guerrilha era inevitável no contexto de guerras assimétricas. Segundo essa lógica, não caberia à Conferência tentar mudar essa realidade, mas buscar adaptar as regras humanitárias a ela. Nesse contexto, a relativização de requisitos tradicionais, como a distinção entre o combatente e a população civil, teve um duplo efeito: a um só tempo aumentou a proteção dos movimentos guerrilheiros e incrementou o ônus do Exército repressor, que segue obrigado a respeitar o princípio da distinção no momento de seus ataques.

No caso das normas aplicáveis à ocupação beligerante, o Terceiro Mundo atuou, de forma geral, com o objetivo de aumentar os custos para a Potência Ocupante. Diferentemente do Direito Internacional Humanitário tradicional, que não faz juízo de valor sobre as situações de ocupação, o Terceiro Mundo claramente valorava de forma negativa a ocupação estrangeira – sobretudo tendo em vista o exemplo recente dos territórios ocupados por Israel após a Guerra dos Seis Dias. Assim, a derrogação da cláusula que limitava a aplicação de certas normas apenas ao primeiro ano da ocupação buscou adaptar o Direito dos Conflitos Armados ao caso concreto e aumentar os custos para o ocupante. O mesmo vale para outras normas e para a tentativa – ao final, fracassada – de criar uma competência automática da Comissão Internacional para o Apuramento dos Fatos sobre territórios ocupados. Na prática, o Terceiro Mundo tentava influenciar, de alguma forma, o equilíbrio de forças do conflito árabe-israelense.

Por fim, também no caso da proibição e restrição ao emprego de certas armas convencionais pode-se dizer que houve uma relativa mobilização do Terceiro Mundo. Posto que a participação dessas delegações tenha sido reduzida no Comitê sobre o tema, houve uma tomada de posição quanto a alguns dispositivos concretos, como o rol de graves violações das Convenções de Genebra ou a criação de uma comissão para propor limitações ao uso de certos armamentos. Nesse caso, o Terceiro Mundo atuou de forma contrária à posição dos dois blocos militares da época – razão pela qual suas teses acabariam por não prevalecer.

Todas essas posições do Terceiro Mundo foram vistas, por parte da doutrina, como uma tentativa de politização do Direito Internacional Humanitário. Desde a época, acusava-se que esses países estavam privilegiando objetivos políticos de curto prazo sobre os valores humanitários.358 Alertava-se, então, para o risco de que as grandes potências militares considerassem o resultado negociado inaceitável e não aderissem aos Protocolos, o que

358 HACKER, The Application of Prisoner-Of-War Status to Guerrillas Under the First Protocol Additional to

resultaria em acordos de pouca utilidade prática e em uma fragmentação do corpo normativo do Direito dos Conflitos Armados.359

É inegável que o Terceiro Mundo atuou tendo em vista objetivos políticos. Isso, no entanto, não foi exclusividade dessa Conferência ou do Terceiro Mundo. Pelo contrário: as normas são sempre elaboradas a partir de decisões políticas de distribuir custos de determinadas maneiras, privilegiando essa ou aquela forma de emprego da força armada, em detrimento de outras.

Da mesma forma, não é verdade que esse objetivo político seja necessariamente contrário à proteção humanitária. Em muitos dos casos analisados, a posição política do Terceiro Mundo traduziu-se na defesa de normas que estenderiam o manto protetivo do Direito Internacional Humanitário. É o caso, por exemplo, das posições quanto à ocupação beligerante ou a restrição de certas armas convencionais. Mesmo nos casos mais polêmicos da definição de conflitos internacionais e de combatentes, considerando-se o emprego de táticas de guerrilha um dado da realidade, as normas defendidas pelo Terceiro Mundo e adotadas na Conferência trazem maior proteção nesse tipo de conflito.

Em síntese, pode-se dizer que o Terceiro Mundo agiu, sim, de forma politizada, com vistas a utilizar o Direito Internacional Humanitário como instrumento de transformação da realidade e correção de injustiças. Não se poderia esperar o contrário, considerando-se que, até então, esses países tinham tido pouca ou nenhuma influência na definição dessas regras. Pelo contrário: muito do desenvolvimento do Direito dos Conflitos Armados havia ocorrido sob medida para permitir a guerra contra esses povos. Fica, portanto, comprovada a hipótese de que o Terceiro Mundo atuou com posição reformista, na crença de que as mudanças propostas poderiam colaborar para promover justiça na ordem internacional.