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CAPÍTULO I CONSTRUINDO UMA FRONTEIRA

1.2 Contestado: inflexão na definição da fronteira

A Guerra do Contestado se deflagrou em território disputado por Paraná e Santa Catarina e envolveu diversos grupos populacionais que habitavam este território. A guerra foi caracterizada por uma intensa mortandade, estima-se que tenha deixado mais de 10 mil mortos, e por emprego de vultuosos recursos do governo brasileiro para reprimir os revoltosos.27 No bojo desta construção, os motivos que levam a eclosão do conflito perpassam pela construção da Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande que previa a expropriação de terras ao largo de 15 km a cada lado da estrada de ferro. Desta forma, milhares de camponeses forma espoliados de suas terras, perdendo assim a possibilidade de produção da subsistência, soma-se a isso, os empregados demitidos após a construção da estrada e os mais variados grupos políticos que se antagonizavam na localidade, que somavam o caldo que iria irromper no Contestado.

As hostilidades têm início após a aglutinação de milhares de caboclos em torno de uma figura messiânica conhecida como Monge José Maria. A figura do monge congregava a espiritualidade desse povo pobre e marginalizado do Contestado, pregando um catolicismo não romanizado e pautado nos elementos naturais. A aglutinação provocou pavor das autoridades estatais, que enviaram forças militares para a dispersão dos caboclos. Devido à forte resistência do povo, as forças policias são auxiliadas pelo exército brasileiro, que se utilizou de armamento de ponta para o extermínio dos rebeldes.

O resultado do Contestado foi um número exorbitante de mortos e pessoas espoliadas de seus mais variados aspectos, inclusive de sua dignidade. O conflito, tachado pela historiografia tradicional e pelas mídias locais do período como um conflito de fanáticos, bandidos e jagunços, se configurou como uma luta incessante pela terra e por um modo de vida

27 MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado: a formação e a atuação das chefias caboclas (1912-1916). Campinas-SP: UNICAMP, 2004, p. 181.

que veio a ser confrontado pelas forças estatais, que visavam transformar a região em um celeiro de progresso. A historiografia do Contestado só veio a ser revisada em tempos recentes, com a inversão do viés da guerra, buscando entender o conflito também pela visão do caboclo, marginalizado nos diversos aspectos de sua vida e muitas vezes esquecido pelo poder do Estado. Trabalhos como o de Paulo Pinheiro Machado, corroboram para essa revisão da guerra e para a colocação do caboclo como figura central do conflito, segundo o autor:

Por muito tempo existiu uma espécie de silêncio público sobre a Guerra do Contestado. Desde o final da guerra até a década de 1980, esse assunto não foi objeto da atenção pública, embora já houvesse uma farta produção de militares e acadêmicos sobre o tema. A partir dos anos 1980, como parte do processo de redemocratização do país, o conflito do Contestado passou, de distintas maneiras, a ser relembrado por movimentos sociais, órgãos de Estado e pesquisadores acadêmicos. No entanto, boa parte da população descendente dos seguidores do monge José Maria ainda apresenta uma memória de guerra fortemente impactada pela versão dos vencedores e pelos ressentimentos do olvido público. Um acontecimento não lembrado é quase algo não acontecido. A vergonha da derrota mistura-se com a sensação de irrelevância pública de uma experiência trágica presenciada.28

O que condiciona o conflito do Contestado a ter se tornado uma trágica experiência, passa pela noção de controle social, higienização e violência estatal pelo qual o Brasil se estruturou no período republicano. Basta lembrar, a extensa carga bélica empregada no conflito e até mesmo os relatos e a visão perpetuada pela imprensa tanto nacional como regional acerca do conflito. Deste modo, o Contestado se tornou um território de fanáticos, jagunços, gente pobre e mestiça, que na ótica do processo civilizatório pelo qual o Brasil procurava seguir, representava um entrave aos objetivos da nação. Muito além de um conflito por limites territoriais, o episódio engendrou uma verdadeira limpeza étnica, pois espoliou, dizimou e dispersou, centenas de caboclos, indígenas, posseiros, entre outros, que habitavam a localidade historicamente por meio de seus ancestrais.

Gente terrível, facínoras, bandidos e fanáticos são alguns dos adjetivos deslindados para caracterizar os elementos constituintes da luta do contestado. Essa visão, ilustra em elevado grau a percepção da elite controladora do país durante a Primeira República em relação aos grupos marginalizados do processo de modernização do país, que se sustentava por um arquétipo repressor em função de modelar o brasileiro ideal para o Estado Nação que se buscava constituir. Deste modo, a missão do exército brasileiro, muito além da garantia de uma paz armada e segurança, se traduz em uma missão civilizatória, a ter de extirpar esse gente considerada “terrível”, contribuindo assim para uma verdadeira higienização social, que via no

28 MACHADO, Paulo Pinheiro. Guerra, cerco, fome e epidemias: memórias e experiências dos sertanejos do Contestado. Topoi, v. 12, n. 22, jan.-jun. 2011. p. 178-186.

mundo do caboclo do Contestado uma verdadeira ameaça para todos os valores congregados pela idealização de um Brasil moderno. Sendo assim, compartilho da visão de Geller:

O contestado constitui-se em uma “fronteira interna”, onde em uma extremidade está a sociedade cabocla, e na outra, a sociedade urbana. Com distintas inserções na história, as duas sociedades entram em rota direta de colisão, com a deflagração sertaneja como o seu principal resultado. Do caboclo ao capitalista, passando pelo coronel fazendeiro, o contestado é um espaço de diversidade; para o observador urbano o caboclo e sua sociedade constituem-se em uma verdadeira fenda no tempo.29

Essa fronteira interna, corporificada pelo caboclo do Contestado atenta contra a idealização do Estado-nação moderno em voga no país, onde todas as barreiras internas devem ser suprimidas, com o fim de assegurar as balizas da nação em um sentido coeso. Assim, o modo de vida, as crenças, o vestir, o falar, o comer, em suma o ethos caboclo representariam uma janela temporal para a nação, que apresentava uma paisagem do passado arcaico brasileiro, já defasado e símbolo do atraso.

É neste mesmo cenário, que se pode engendrar a construção da ferrovia São Paulo- Rio Grande, a estrada de ferro ligaria as cidades de Itararé (SP) e Santa Maria (RS), adentrando a região marginal ao território contestado. O empreendimento, idealizado desde o Império Brasileiro, se configurou como um marco no projeto de modernização e integração econômica brasileira, buscando levar o progresso para regiões, como já anteriormente discutido, consideradas os sertões do país. Entretanto, o processo de construção da ferrovia, se moldou através de uma faceta autoritária e despótica, símbolo da imagem perpetuada pelas elites controladoras do país. Tal disposição se mostra a partir das concessões feitas a companhia norte americana responsável pela construção, a Brazil Railway Company, que previa a concessão de 15 quilômetros de cada lado da estrada de ferro para a exploração da companhia, fato que desalojou antigos ocupantes da terra que não possuíam títulos legais de posse das mesmas.30

Esses desalojados representaram a imagem da situação de miserabilidade, da qual boa parte da população camponesa do interior do Brasil era submetida, agora então, espoliados de seu bem maior, o acesso à terra que lhes garantia sobrevivência, a situação piora. Esta configuração, atrelada a demais elementos marginalizados que se produziram através da construção da ferrovia, gerou um cenário latente de descontentamento social e flagelo. Neste panorama, é que se destaca a presença mística dos monges errantesna região, praticantes de um

29 GELLER, Odair Eduardo. O Contestado entre Santa Catarina e o Paraná: uma questão de limite territorial

nos limites da Nação. 2006. 129f. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de Passo Fundo (UPF). Passo Fundo. p.46.

30 VALENTINI, Delmir José. Atividades da Brazil Railway Company no Sul do Brasil: A Instalação da

catolicismo não romanizado e repleto de rituais populares, outra característica utilizada para depreciar a figura do caboclo do Contestado, lhe prestando a pecha de fanáticos ignorantes.

Ao analisar essas figuras religiosas, percebe-se a canalização de um anseio popular, uma maneira das mulheres e dos homens sertanejos do Contestado demonstrarem seu modo inverso a lógica suplantada pelos grandes coronéis e pelos governos, como trata Pinheiro Machado:

Mais do que entender que os sertanejos reagiram a uma agressão externa, é importante considerarmos que eles não podiam ter sido mais explícitos na formação de um projeto rebelde, de um novo modelo de sociedade. A resistência e a negação do mundo dos coronéis e da empresa ferroviária norte-americana se desenvolveu na invenção de algo absolutamente novo- a “Cidade Santa”. O novo é inventado dentro de um espaço cultural, dentro de uma tradição.31

A tradição do elemento do Contestado configurada por seu modo de produção, sua mística e crença religiosa, e diversos componentes inerentes a miscelânea de tipos que compunham o movimento e que reagiram a supressão provocada pelo Estado, representaram assim uma afronta. No fim, os conflitos foram sangrentos e duraram até início de 1916, quando o último líder caboclo foi preso, Adeodato. Milhares de homens, mulheres e crianças haviam sido dizimados, o exército que pela primeira vez havia usado aviação em conflito, dispensando grandes recursos para manter o status quo dos coronéis locais e assegurar o poder do Estado e os interesses capitalistas sobre a região. Aos sobreviventes coube a dispersão pelas matas da região e ainda a continuidade da violência por parte agora dos jagunços das grandes fazendas, que apesar do fim oficial do conflito, continuaram a perseguir os caboclos da região. Desta forma, a Guerra do Contestado foi evento singular para se entender o processo de expansão da fronteira do “progresso” capitalista para a região, já que a intensa perseguição aos caboclos abriu caminho para que as terras fossem ocupadas pelos migrantes descendentes de europeus, considerados elemento puro do trabalho e o elo para o progresso.