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Em seu História do estruturalismo, F. Dosse apresenta a obra As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas, de M. Foucault, do seguinte modo:

Como se viu, o acontecimento editorial do ano [1966], a melhor venda do verão, é incontestavelmente Les mots et les choses de Michel Foucault. Se Sartre pôde dizer que essa obra era esperada, nem por isso o seu sucesso causou menos surpresa ao editor [...]. Michel Foucault é carregado pela onda estruturalista e sua obra apresenta-se como a síntese filosófica da nova reflexão levada a efeito há uma quinzena de anos. Mesmo que o autor [M. Foucault] se distancie mais tarde do rótulo estruturalista, que considera infamante, situa-se, porém, de imediato, em 1966, no cerne do fenômeno: “O estruturalismo não é um método novo; é a consciência desperta e inquieta do saber moderno” (DOSSE, 2007, p. 425).

Sobre a frase final dessa passagem, “o estruturalismo não é um método novo; é a consciência desperta e inquieta do saber moderno”, talvez uma mais das famosas investigações do livro As palavras e as coisas, a que se refere ao quadro As meninas, de Velásquez, pode servir de índice para se entender a mudança de posicionamento de M. Foucault quanto ao estruturalismo:

Todas as linhas interiores do quadro [...] apontam para aquilo que é representado mas está ausente. Ao mesmo tempo objeto – por ser o que o artista representado está em via de recopiar sobre a tela – e sujeito – visto que o pintor tinha diante dos olhos

ao se representar no seu trabalho era ele próprio, visto que os olhares figurados no quadro estão dirigidos para esse lugar fictício da personagem régia que é o lugar real do pintor, visto finalmente que o hóspede desse lugar ambíguo [...] é o espectador cujo olhar transforma o quadro num objeto, pura representação dessa ausência essencial (FOUCAULT, 2002, p.424).

Ao analisar a obra foucaultiana, em O discurso filosófico da modernidade, J. Habermas, pesquisador contemporâneo da reconhecida Escola de Frankfurt, tece o seguinte comentário:

Em As palavras e as coisas (1966), Foucault examina as formas modernas do saber (ou epistemes) que estabelecem para as ciências o horizonte intransponível de conceitos fundamentais. [...] Foucault centra o seu interesse nos dois limiares históricos de transição do Renascimento para o Classicismo e da época clássica para a modernidade22 (HABERMAS, 2000, p. 361).

Nesse sentido, ainda de acordo com esse autor, a análise da obra de Velásquez pontuaria o momento da passagem da época clássica para a moderna:

[Na época clássica] Graças à sua autonomia, o signo serve à representação das coisas a despeito de si mesmo: nele se encontram a representação do sujeito e o objeto representado, formando uma ordem na corrente das representações. A linguagem se desfaz em sua função de reproduzir a realidade, como diríamos hoje em dia, e restitui ao mesmo plano tudo o que é, em geral, representável – a natureza dos sujeitos representados não é diferente daquela dos objetos representados. Em seu “quadro”, a natureza dos sujeitos representados não goza, portanto, de nenhum privilégio sobre a natureza das coisas. [...] É exatamente isso o que caracteriza ao mesmo tempo os limites da forma não reflexiva do saber da época clássica. O saber é completamente dependente da função representativa da linguagem sem poder abarcar o próprio processo da representação, a operação de síntese efetuada enquanto tal pelo sujeito da representação. Foucault destaca esse limite em sua surpreendente interpretação do famoso quadro As meninas, de Velásquez (Ibid., p. 363-364).

Além disso, o quadro de Velásquez também serve para demonstrar, mas de modo necessário, a relatividade histórica do “homem” enquanto objeto dado a um conhecimento epistemológico:

No pensamento clássico, aquele para quem a representação existe, e que nela se representa a si mesmo, aí se reconhecendo por imagem ou por reflexo, aquele que trama todos os fios entrecruzados da “representação em quadro” –, esse jamais se encontra lá presente. Antes do fim do século XVIII, o homem não existia. Não mais

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Grosso modo, o termo episteme designa a maneira particular de como se articula o saber de um período histórico. De acordo com a perspectiva “arqueológica” empreendida por Foucault (2002) essa articulação do saber não reside, contudo, na filosofia ou na ciência, mas em um “solo”, ou um “espaço” epistêmico que as condiciona e por isso, principalmente, a episteme também designa uma espécie de estrutura impensada pelas disciplinas que ela determina. Quando há passagem de uma episteme para outra, ocorre uma ruptura, uma reconfiguração do saber de uma determinada época.

que a potência da vida, a fecundidade do trabalho ou a espessura histórica da linguagem. [...] Mas não havia consciência epistemológica do homem como tal. A

epistémê clássica se articula segundo linhas que de modo algum isolam um domínio

próprio e específico do homem (FOUCAULT, 2002, p. 425).

Somente a partir da época moderna,

Quando a história natural se torna biologia, quando a análise das riquezas se torna economia, quando sobretudo a reflexão sobre a linguagem se faz filologia e se desvanece esse discurso clássico em que o ser e a representação encontravam seu lugar-comum, então no momento profundo de tal mutação arqueológica, o homem aparece em sua posição ambígua de objeto para um saber e de sujeito que conhece: [...] espectador olhado, surge ele aí, nesse lugar do Rei que, antecipadamente, lhe designavam Las Meninas, mas donde, durante longo tempo, sua presença real foi excluída (Ibid., p. 430).

Mas sendo que, de acordo com Habermas (2000, p. 356), Foucault pretendia seguir o projeto nietzscheano de desconstrução da racionalidade, “por meio de uma historiografia que se apresenta como anticiência”, a consciência moderna não é entendida, nesse caso, necessariamente como um “progresso”:

Como se nesse espaço vacante, em cuja direção estava voltado todo o quadro de Velásquez, mas que ele, contudo, só refletia pelo acaso [...] todas as figuras que se suspeitava a alternância, a exclusão recíproca, o entrelaçamento e a oscilação (o modelo, o pintor, o rei, o espectador) cessassem de súbito sua imperceptível dança, se imobilizassem numa figura plena e exigissem que fosse enfim reportado a um olhar de carne todo o espaço da representação (Ibid., p. 430).

Desse modo, se a crítica ao pensamento moderno parece bastante conciliável com o estruturalismo,

O seu projeto de arqueologia das ciências humanas (originalmente a obra deveria ter por subtítulo “Arqueologia do estruturalismo”) é definido por Foucault nesse programa como a expressão da vontade de fazer aparecer a nossa cultura numa posição de estranheza semelhante à maneira como percebemos os nhambiquara descritos por Lévi-Strauss (DOSSE, 2007, p. 426).

A própria investigação histórica das epistemes, por outro lado, acabaria mitigando a expectativa depositada no estruturalismo:

Evidentemente, nesse momento Foucault considerava que só o estruturalismo contemporâneo, a etnologia de Lévi-Strauss e a psicanálise de Lacan eram capazes de “pensar o vazio do homem desaparecido”. O subtítulo Arqueologia do

estruturalismo, originalmente previsto para o livro, não tinha em absoluto uma

intenção crítica. Mas foi preciso desfazer essa perspectiva assim que se tornou claro que o estruturalismo já havia oferecido secretamente o modelo do representacionalismo semiótico para a descrição da forma clássica do saber. Uma

superação estruturalista do pensamento antropocêntrico não significaria, então, uma suplantação da modernidade, mas apenas a renovação explícita da forma de saber proto-estruturalista da época clássica (HABERMAS, 2000, p. 375).

Além da constatação de que o estruturalismo não seria necessariamente uma autêntica superação da consciência moderna, mas uma renovação do saber clássico, outra dificuldade encontrada por Foucault estaria em certo laivo de pensamento moderno que ainda se podia sentir em As palavras e as coisas:

Foucault devia irritar-se com a visível afinidade existente entre sua arqueologia das ciências humanas e a crítica heideggeriana à metafísica da época moderna. As epistemes ou formas de saber do Renascimento, do classicismo e da modernidade assinalam cesuras de época, e, simultaneamente, estágios na formação daquela compreensão do Ser centrada no sujeito que Heidegger analisara com conceitos análogos desde Descartes até Nietzsche, passando por Kant. [...] Por essa razão, Foucault terá de renunciar definitivamente ao conceito de episteme (Ibid., p. 373- 374).

Os pesquisadores sobre a história do estruturalismo assinalam, no percurso de M. Foucault, o mesmo momento de renúncia ao conceito de episteme:

Mas é essa noção de episteme a que formulará o maior número de indagações, não somente aquela, não resolvida, de saber como se passa de uma episteme a outra, mas também a que se apresenta ao próprio Foucault: a partir de que episteme ele fala? Essa noção, onipresente em 1966 em Les mots et les choses, será contestada a tal ponto que não se encontra em toda a obra ulterior de Foucault (DOSSE, 2007, p. 434).

Mas a dificuldade encontrada por Foucault, no dizer de Habermas (2000, p. 375), ante a “exigência estruturalista de que toda formação discursiva tem que ser entendida a partir de si mesma” talvez seja o principal fator envolvido com sua mudança de postura a respeito do estruturalismo.

Tal “exigência estruturalista” não deixaria de se caracterizar como de difícil conciliação com os interesses de prévias pesquisas efetuadas por M. Foucault sobre “práticas de poder” que fundamentariam a racionalidade e o conhecimento. Anteriormente, em História da loucura (1961), Foucault já havia demonstrado que as “práticas institucionalmente consolidadas na organização interna dos estabelecimentos [manicomiais] são a base para um conhecimento da loucura que [...] lhe confere a objetividade de uma patologia elevada a conceito, classificando-a assim no universo da razão” (Ibid., 2000, p. 345-346).

No percurso intelectual de Foucault essa dificuldade conduzirá, posteriormente, o autor a afirmar-se na perspectiva histórica ou “genealógica” debruçada sobre os “dispositivos do poder”:

Foucault contorna essa dificuldade abandonando a autonomia das formas do saber [estruturalismo] em favor de sua fusão em tecnologias de poder e subordinando a arqueologia do saber a uma genealogia que explica a formação do saber a partir das práticas de poder. Essa teoria do poder convém também à solução dos outros dois problemas: Foucault pode, assim, deixar para trás a filosofia do sujeito sem recorrer ao modelo estruturalista ou ao modelo da história do Ser [Heidegger], que (segundo sua própria análise) ainda estão presos seja à sua forma clássica do saber, seja à forma moderna (Ibid., p. 376).

As mudanças ocorridas no percurso intelectual de M. Foucault não interferem, muito pelo contrário, na legitimidade da história do estruturalismo presente em As palavras e as coisas. A possibilidade de se articular, na obra lacaniana, os trabalhos anteriores ao estruturalismo com seu período propriamente estruturalista, mediante a historiografia presente em As palavras e as coisas, o trabalho “mais estruturalista no percurso de Foucault” (DOSSE, 2007, p. 433), não pode ser entendida senão como uma corroboração da hipótese de aberturas epistemológicas presentes na “ciência da personalidade”.