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2.4 O MODELO FILOLÓGICO E A PSICANÁLISE 73 

2.4.1 O modelo filológico 79 

O filósofo francês P. Ricoeur, que contribuiu para a renovação dos estudos sobre a hermenêutica, quando esta se encontrava em segundo plano, diante da preponderância lingüística do estruturalismo, localiza do seguinte modo a formação do método compreensivo no domínio das ciências humanas:

A necessidade de incorporar o problema regional da interpretação dos textos no domínio mais amplo do conhecimento histórica [...] [resulta da] invenção da história como ciência de primeira grandeza. [...] Antes da questão de como compreender um texto do passado, deve-se colocar uma questão prévia: como conceber um encadeamento histórico? Antes da coerência de um texto, vem a da história,

considerada como o grande documento do homem, como a mais fundamental

expressão da vida. Dilthey é, antes de tudo, o intérprete desse pacto entre

hermenêutica e história. O que chamamos hoje de historicismo num sentido pejorativo, exprime inicialmente um fato de cultura, a saber, a transferência de interesse das obras-primas da humanidade para o encandeamento histórico que as transportou. [Por outro lado,] O tempo de Dilthey é o da completa recusa do hegelianismo e o da apologia do conhecimento experimental. [...] É sobre o fundo desses dois grandes fatos culturais que Dilthey coloca sua questão fundamental: como o conhecimento histórico é possível? De um modo mais genérico: como as ciências do espírito são possíveis? (RICOEUR, 1977, p. 24, grifos do autor).

O modelo filológico, portanto, antes restrito à exegese dos documentos, passa a ser adotado, com W. Dilthey, no domínio das pesquisas sobre as atividades humanas. Apesar da objetividade – a história enquanto “expressão da vida” – desses fenômenos abordados pelas ciências humanas, o fundamento da interpretação do sentido deles residia, nesse período epistemológico, na intuição psicológica, isto é, na simpatia intersubjetiva com outrem:

Essa questão [sobre possibilidade das ciências humanas] nos conduz ao limiar da grande oposição que atravessa toda a obra de Dilthey, entre a explicação da natureza e a compreensão da história. Essa questão é repleta de conseqüências para a hermenêutica, que se vê, assim, cortada da explicação naturalista e relegada ao lado da intuição psicológica. Com efeito, é do lado da psicologia que Dilthey procura o traço distintivo do compreender. Toda ciência do espírito – todas as modalidades do homem implicando uma relação histórica – pressupõe uma capacidade primordial: a de se transpor na vida psíquica de outrem. No conhecimento natural, o homem só atinge fenômenos distintos dele, cuja coisidade fundamental lhe escapa. Na ordem humana, pelo contrário, o homem conhece o homem. [...] A diferença de estatuto entre coisa natural e o espírito comanda, pois, a diferença de estatuto entre explicar e compreender. O homem não é radicalmente um estranho para o homem, porque fornece sinais de sua própria existência. Compreender esses sinais é compreender o homem. Eis o que a escola positivista ignora por completo: a diferença de princípio entre o mundo psíquico e o mundo físico (Ibid., p. 24-25, grifos do autor).

O primeiro momento da reversão ocorrida nos modelos constituintes, portanto, no qual as diferentes “mentalidades”, a primitiva, com L. Lévy-Bruhl, e a mórbida, com Ch. Blondel, está envolvido com a crítica dessa dimensão da compreensibilidade, a saber, a pretensão em transpor-se, o intérprete, no lugar do outro, o interpretado. Essa crítica é superada com um segundo momento da reversão, isto é, quando se toma ciência de que o fator comum a essas diferentes mentalidades reside não mais na possibilidade de transpor-se no lugar do outro, mas no fato de serem regidas por leis inconscientes, “exteriores” às leis da consciência, tanto a do intérprete como a do interpretado. Anteriormente, nesta pesquisa, constatou-se que essa conclusão das reversões epistemológicas antecede, e mesmo prepara, o estruturalismo.

Contudo, no interior do desenvolvimento das idéias filosóficas, a fenomenologia inaugura um método que ultrapassa as dificuldades da perspectiva inicial, psicológica, de W. Dilthey. A modalidade fenomenológica mais sofisticada, no âmbito dessa discussão sobre a

objetividade e a compreensão, parece residir na perspectiva de M. Heidegger. De acordo com P. Ricoeur, há um radical deslocamento operado na perspectiva heideggeriana: “Não se trata do ser-com um outro, que duplicaria nossa subjetividade, mas do ser-no mundo. [...] A questão mundo toma o lugar da questão outrem. Ao mundanizar, assim, o compreender, Heidegger o despsicologiza” (Ibid., p. 32, grifos do autor). O mesmo autor ainda considera necessário distinguir a perspectiva heideggeriana da sartreana:

Uma pequena expressão separa Heidegger de Sartre: sempre já [...]. O que importa, aqui, não é o momento existencial da responsabilidade ou da livre-escolha, mas a estrutura de ser a partir da qual há um problema de escolha. O ou ... ou então ... não é primeiro, mas derivado da estrutura do projeto-lançado (Ibid., p. 33, grifos do autor).

Mas isso não implica que a modalidade heideggeriana de filosofia fenomenológica se propusesse a alcançar uma positividade científica, ou a abordar a anterioridade do “mundo” a partir da “exterioridade” dos modelos científicos.

Além disso, é preciso ressaltar outro aspecto do deslocamento, operado M. Heidegger sobre os fundamentos das ciências humanas em W. Dilthey. Retomando-se as análises de P. Ricoeur, esse autor considera que a perspectiva de M. Heidegger desloca a problemática epistemológica para a ontologia:

Será que [com a fenomenologia ontológica de M. Heidegger] não eliminamos a aporia diltheyana de uma teoria do compreender, condenada alternadamente a opor- se à explicação naturalista e a rivalizar com esta em objetividade e cientificidade? Será que não a superamos ao subordinar a epistemologia à ontologia? A meu ver, a aporia não está resolvida; foi simplesmente deslocada e, assim, agravada; não se encontra mais na epistemologia, entre duas modalidades de conhecer, mas situa-se

entre a ontologia e a epistemologia tomadas em bloco. Com a filosofia

heideggeriana, não cessamos de praticar o movimento de volta aos fundamentos, mas tornamo-nos incapazes de proceder ao movimento de retorno que, da ontologia fundamental, conduziria à questão propriamente epistemológica do estatuto das ciências do espírito. Ora, uma filosofia que rompe o diálogo com as ciências só se dirige a si mesma (Ibid., p. 36, grifos do autor).

Pode-se relacionar a seguinte passagem de M. Heidegger com as considerações acima formuladas por P. Ricoeur:

A analítica existencial da pre-sença [dasein, “ser-aí”] está antes de toda psicologia, antropologia e, sobretudo, biologia. [...] As delimitações da analítica existencial face à antropologia, psicologia referem-se somente à questão ontológica de princípio. “Do ponto de vista epistemológico”, essas investigações são necessariamente insuficientes já pelo simples fato da estrutura de ciência destas disciplinas – o que nada tem a ver com a “cientificidade” daqueles que trabalham para o seu desenvolvimento – ter-se tornado cada vez mais questionável. Por isso, são

necessários novos impulsos, oriundos de uma problemática ontológica36 (HEIDEGGER, 2005, p. 81-82, grifos do autor).

Mas, de qualquer modo, embora no período da “unidade da psicologia” e da “ciência da personalidade” a referência fenomenológica mais imediata, para ambos os projetos, fosse a de M. Scheler e, no domínio psicopatológico, de K. Jaspers, a adoção dos diferentes modelos, biológico ou sociológico, apresenta-se divergente já desde o ponto de vista filosófico, e não propriamente científico.

A “unidade da psicologia” não escapa, ao adotar o “personalismo”, da seguinte advertência de M. Heidegger: “A falta de fundamentos ontológicos, entretanto, não pode ser compensada inscrevendo-se a antropologia e a psicologia numa biologia geral” (Ibid., p. 86, grifos do autor). Por outro lado, a “ciência da personalidade” parece acompanhar as seguintes considerações heideggerianas:

A etnologia já pressupõe em si mesma uma analítica suficiente da pre-sença [dasein, “ser-aí] que lhe serve de guia nas pesquisas. Mas como as ciências não “podem” nem devem esperar pelo trabalho ontológico da filosofia, o desenvolvimento não há de assumir a forma de um “progresso”, mas sim de uma re-petição e purificação ontológica, mais transparente do que tudo o que se descobriu onticamente (Ibid., p. 88, grifos do autor).

O filósofo B. Ogilvie (1988), ao analisar a formação do conceito de sujeito no percurso de J. Lacan, destaca como na “ciência da personalidade”, que adota o modelo sociológico, a antropologia utilizada deve estar para além do realismo ingênuo do objeto.37 Nesse sentido, não só a J. Lacan, mas também a D. Lagache, a fenomenologia servia para o questionamento de uma concepção ingênua do fato psicológico, como expressa a posição de J-P. Sartre, em 1939, sobre a positividade procurada pela psicologia de então:

A psicologia, na medida em que se pretende uma ciência, não pode fornecer senão uma soma de fatos heteróclitos, a maior parte dos quais não tem nenhuma ligação entre si. Que há de mais diferente, por exemplo, que o estudo da ilusão

       36

Sobre esse mesmo assunto, M. Heidegger ainda comenta, em outra passagem: “Indicando-se na psicologia, antropologia e biologia a falta de uma resposta precisa e suficientemente fundada, do ponto de vista ontológico, para a questão do modo de ser deste ente que nós mesmos somos, não se pretende emitir um julgamento sobre o trabalho positivo destas ciências” (HEIDEGGER, 2005, p. 87, grifos do autor).

37

J. Lacan, em artigo posterior à tese, e após indicar a pertinência da análise dos escritos dos pacientes para o entendimento da paranóia, afirma: “Podemos conceber a experiência vivida paranóica e a concepção do mundo que ela engendra como uma sintaxe original [...]. O conhecimento dessa sintaxe nos parece uma introdução indispensável à compreensão [...] aos problemas do estilo [...], problemas sempre insolúveis para uma antropologia que não estiver liberada do realismo ingênuo do objeto” (LACAN, 1987, p. 380). Esse realismo ingênuo impede a apropriação das estruturas fenomenológicas do mundo do paranóico: “toda objetivação é, com efeito, eminentemente precária numa ordem fenomenal que se manifesta como anterior à objetivação racionalizante” (Ibid., p. 378).

estroboscópica e o do complexo de inferioridade? Esperar o fato é, por definição, esperar o isolado, é preferir, por positivismo, o acidente ao essencial, o contingente ao necessário, a desordem à ordem; é transferir ao futuro, por princípio, o essencial: “é para mais tarde, quando tivermos reunido um grande número de fatos”. Os psicólogos não se dão conta, com efeito, de que é tão impossível atingir a essência amontoando os acidentes quanto chegar à unidade acrescentando indefinidamente algarismos à direita de 0,99 (SARTRE, 2006, p. 16-17, grifos do autor).

Com a busca das “essências”, a fenomenologia opõe-se ao positivismo que anteriormente embasara a psicologia, mas isso não implica abandonar a dimensão dos fenômenos, como indica ainda J-P. Sartre:

Foi por reação contra as insuficiências da psicologia e do psicologismo que se constituiu, há cerca de trinta anos, a fenomenologia. Seu fundador, Husserl, foi tocado inicialmente por esta verdade: há incomensurabilidade entre as essências e os fatos, e quem começa sua investigação pelos fatos nunca conseguirá recuperar as essências. Se busco os fatos psíquicos que estão na base do homem que conta e calcula, nunca conseguirei reconstituir as essências aritméticas de unidade, de número e de operações. Sem no entanto renunciar à idéia de experiência (o princípio da fenomenologia é ir “às coisas mesmas”, e a base de seu método é a intuição eidética [intuição da essência]), é preciso, pelo menos flexibilizá-la e dar lugar à experiência das essências e dos valores; é preciso inclusive reconhecer que somente as essências permitem classificar e inspecionar os fatos (Ibid., p. 20).

Contudo, não se deve confundir essa dimensão fenomênica acerca das expressões de outrem, apreendidas já no método compreensivo de W. Dilthey, com a objetividade dos modelos científicos, a ser investigada nesta pesquisa. Quando apresentadas as críticas do estruturalismo à perspectiva fenomenológica, ressaltou-se a diferença entre a analítica filosófica e a das ciências humanas diante do saber empírico.

Embora ambas se distanciem do domínio empírico, as ciências humanas, com os modelos científicos, buscam, ao contrário da filosofia, a inteligibilidade desse distanciamento em uma “exterioridade” ao sujeito do conhecimento. Na abordagem desse assunto há pertinência em demonstrar o posicionamento de C. Lévi-Strauss, presente na sua obra Tristes trópicos, de 1949, cujas passagens teóricas, mas também autobiográficas, ilustram a diferença entre essa “exterioridade” positiva e o método fenomenológico. Ao comentar as referências iniciais que o mantiveram na busca de um ponto de vista objetivo na abordagem dos fenômenos humanos, C. Lévi-Strauss indica a geologia e o marxismo, mas também a psicanálise:

Os três [geologia, psicanálise e marxismo] demonstram que compreender consiste em reduzir um tipo de realidade a outro; que a realidade verdadeira nunca é a mais patente; [...] Em todos os casos coloca-se o mesmo problema, que é o da relação entre o sensível e o racional, e o objetivo é o mesmo: uma espécie de super-

propriedades. Assim, pois, eu era rebelde às novas tendências da reflexão metafísica tais como estas começavam a se esboçar. A fenomenologia me desagradava, na medida em que postula uma continuidade entre a vivência e o real. Concordo em reconhecer que este envolve e explica aquela, eu aprendera com minhas três professoras [geologia, psicanálise e marxismo] que a passagem entre as duas ordens é descontínua; que para alcançar o real é necessário, primeiramente, repudiar a vivência, ainda que seja para reintegrá-la em seguida numa síntese destituída de qualquer sentimentalismo (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 55-56, grifos do autor).

Portanto, diante desse respaldo da fenomenologia durante as décadas de 30 e 40, e com a evidente assimilação de seus princípios por D. Lagache e J. Lacan, o fato de que esses autores não se bastaram com a psiquiatria fenomenológica, já em destaque com K. Jaspers – e mesmo sob a influência mais ou menos direta da ontologia heideggeriana, nas obras de psiquiatras como L. Binswanger e E. Minkowski – significa antes um posicionamento epistemológico do que um anacronismo positivista.

Não por desconhecerem os fundamentos fenomenológicos, mas por buscarem um ponto de vista objetivo adequadamente co-extensivo aos fenômenos psíquicos, a “unidade da psicologia” e a “ciência da personalidade” persistem na manutenção de uma postura científica ao lado do respaldo então contemporâneo da fenomenologia. A manutenção nesses dois projetos, por exemplo, de um ponto de vista causal, aspecto a ser abordado nesse capítulo, quando a fenomenologia indicava ser tal procedimento um dispêndio desnecessário para a dimensão compreensiva, como se observa no comentário seguinte de J-P. Sartre, não pode ser entendido como um mero desconhecimento epistemológico:

De nossa parte, não rejeitamos os resultados da psicanálise quando são obtidos pela

compreensão. Limita-nos a negar qualquer valor e inteligibilidade à sua teoria

subjacente da causalidade psíquica. Por outro lado, afirmamos que, na medida em que o psicanalista se serve da compreensão para interpretar a consciência, mais valeria reconhecer francamente que tudo o que se passa na consciência só pode receber sua explicação da própria consciência (Ibid., p. 54, grifos do autor).

O mais correto é conceber sob esse aparente anAcronismo de D. Lagache e de J. Lacan um consciente posicionamento a respeito da necessidade de diferenciar-se a perspectiva científica da perspectiva filosófica. Nesta pesquisa, portanto, tais considerações sobre as implicações do inconsciente no contexto filológico permitem contextualizar adequadamente as perspectivas objetivas de D. Lagache e de J. Lacan a serem investigadas.

Em primeiro lugar, a perspectiva objetiva diante de outro sujeito, a ser investigada, tanto na “unidade da psicologia” como na “ciência da personalidade”, não se refere apenas à consideração das expressões e sinais de outrem, posto que o método compreensivo dessa modalidade já se encontrava seriamente questionado pelas críticas decorrentes da reversão

epistemológica, período este que melhor caracteriza os trabalhos iniciais de D. Lagache e J. Lacan. Em segundo lugar, as perspectivas científicas desses dois autores, aparentemente anacrônicas e de difícil conciliação com os métodos fenomenológicos então em destaque, mantinham-se fiéis à necessidade de uma objetividade “exterior” à analítica filosófica. Observando-se como se posicionaram a “unidade da psicologia” e a “ciência da personalidade” diante das problemáticas que lhes eram contemporâneas, é possível avaliar qual delas estava mais aberta aos princípios epistemológicos do estruturalismo. Há que se iniciar essa avaliação da “unidade da psicologia” e da “ciência da personalidade” a partir das influências, decorrentes da obra G. Politzer, que se encontravam no cenário francês em que elas surgiram.