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Contexto de redefinição em tempos A.C (i.e., antes da COVID 19)

No documento MUSEOLOGIA E PATRIMÓNIO (páginas 76-81)

Apesar das mudanças de tempos e vontades, desde sempre identificadas, mas com uma rotação e uma reciclagem mais rápidas do que nunca (vd. Lipovetsky, 1983 e Bauman, 2000), os novos perfis de visitantes e viajantes continuam a entender os espaços museológicos como repositórios de memórias, reveladoras de identidades comunitárias perenes (vd. Cadavez, 2015, e Cadavez, 2017). Eventualmente, talvez o património e os objetos expostos possam constituir artimanhas para combater e iludir as frustrações resultantes de rotinas globais demasiado líquidas e velozes, características de paradigmas vários da pós-modernidade, e que se refletem também nas práticas de observação, frequentemente preterida a favor de uma interação cada vez mais procurada como garantia e sinónimo de experiências autênticas e essenciais, tão ao gosto das gerações que começam a ganhar terreno nos diversos mercados de consumo, incluindo no cultural.

Esta solidez que se identifica no que foi patrimonializado constitui, pois, uma representação alegadamente fixa de memórias,

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autenticidades e tradições 4, variáveis que continuam a atrair os

olhares do Outro, servindo, como é sabido, de motivação para que o turismo se tivesse tornado na indústria forte que conhecíamos antes da pandemia. Em situações como aquela que (ainda) atravessamos à data da redação deste ensaio, i.e., de confinamento e distanciamento físico, o valor simbólico do património torna-se ainda mais importante para efeitos de coesão comunitária e de comunhão de símbolos constitutivos de grupos que, entre outros, nos recordam as conceptualizações de Benedict Anderson (2000). Neste âmbito, urge evocar Luís Raposo, presidente do ICOM Europa, quando referiu que “os museus e o património cultural em geral constituem (…) de longe, a principal marca identitária, agregadora não somente dos europeus como atractiva de visitantes de todo o mundo” (Raposo, 2020a).

A Declaração do Funchal dava nota, no ano de 2018, de que nas últimas duas décadas o número global de museus deverá ter duplicado, com a abertura de novos museus todos os dias. Estima-se que na década actual serão construídos, em diferentes países, duas dúzias de novos centros culturais centrados em museus, com um investimento de cerca de 250 mil milhões de dólares (U.S.), e só na China está prevista a criação de 500 novos museus em cada ano. (ICOM, 2018)

Ou seja, o que, independentemente da motivação, foi patrimonializado e adquiriu, por isso, um patamar inquestionável de representação cultural é quase sempre, para o bem ou para o mal, um símbolo importante, apropriado em diversos contextos, por exemplo, como representação de poder. Recorde-se, neste âmbito, que em janeiro de 2020, antes de também o mundo ocidental entrar em confinamento, temia-se globalmente as intenções de o presidente Donald Trump agenciar uma anunciada destruição de património cultural iraniano, como retaliação por ataques a cidadãos ou interesses norte-americanos, ou como o património cultural tem sido alvo de

4 A propósito da origem e do papel desempenhado pelas “tradições”

nos imaginários de visitantes e comunidades importa sempre revisitar Hobsbawm (2000).

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ataques em diversas situações de conflito, como sucedeu em Dubrovnik, no ano de 1991, por ação das milícias sérvias, em 2012, no caso do mausoléu de Timbutku alvo dos Salafistas, ou aquando do ataque ao Museu Nacional Bardo, na Tunísia, no ano de 2015. Estas são incursões que inquietam as diversas comunidades, mesmo aquelas que se encontram cultural ou geograficamente distantes, precisamente pelo significado simbólico associado às diversas representações patrimoniais, o que faz com que qualquer ataque perpetrado contra um alvo patrimonial adquira uma conotação e uma representatividade extremas.

Em linha com esta ligação quase umbilical entre comunidades e património, que se materializa, não raras vezes, na criação ou na mera visita a monumentos, sítios ou museus, a época pré-COVID-19 não questionava o que a já evocada Declaração do Funchal afirmava sobre o facto de que “os museus podem gerar benefícios económicos importantes em domínios como o emprego, o turismo, o investimento e a reabilitação urbana, pelo que devem ser considerados pelas autoridades públicas como catalisadores do desenvolvimento económico local” (ICOM, 2018). Esta questão tem motivado diversos estudos e documentos, nomeadamente sob o formato de códigos de ética, que enfatizam o modo como o património pode e deve ser uma mais valia que auxilie ao desenvolvimento de facto sustentável das comunidades que os acolhem, na medida em que podem, por exemplo, promover o aumento das taxas de empregabilidade e atitudes de respeito e tolerância culturais (vd. Global Code of Ethics for Tourism, 2001). Mais uma vez, cumpre evocar a Declaração do Funchal que defende que os “cidadãos deverão ser mais sensibilizados para a importância cultural dos museus nas suas vidas e encorajados a participar activamente na sua promoção e salvaguarda” (ICOM, 2018).

Neste quadro, o aumento da criação de espaços museológicos no início do milénio terá sido o resultado de uma

apetência crescente pela cultura que acompanha o desenvolvimento económico e, também, do reconhecimento geral do importante papel que os museus assumem nos dias de hoje, ao contribuírem de forma significativa para a economia urbana e para a inclusão social. Mas isto acontece também porque os museus

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souberam responder de forma eficaz às necessidades de uma sociedade em transformação. (ICOM, 2018)

Em suma, nas décadas mais recentes a gestão dos espaços de exibição parece ter tido como meta atingir patamares de inclusão e de acesso dito democrático, com o propósito último de albergar diversos agregados e grupos populacionais e sociais, não negligenciando, por exemplo, os encontros interculturais e os movimentos migratórios que caracterizaram a primeira década do século XXI.

Na conversa promovida pela Museummatters no Dia Internacional dos Museus, Maria Isabel Roque recordou, em diálogo com Niloofar Yazdkhasti, que o património é aquilo que fica, i.e., o sólido, os objetos, o saber e a identidade que têm de ser transmitidos e que deverão ser alvo de uma nova forma de comunicação com o público (Roque, 2020, 18 de maio - a), que eventualmente terá de incluir algumas das estratégias adotadas durante o confinamento. Esta asserção de Roque reflete mais um sinal claro da necessária redefinição de “museu”. Já em 2013, acautelando a importância da preservação e da salvaguarda de património cultural material e imaterial, a Declaração de Lisboa alertava para o facto de que os museus começavam a ter outros propósitos no âmbito das suas rotinas de gestão e de programação; a saber, a oferta não só de cultura e de conhecimento, mas igualmente de serviços públicos e atividades sociais, pelo que deveria usar novas linguagens e diferentes meios para atrair audiências diversas, de modo a promover a compreensão do património e a oferecer serviços educativos. Desta forma, fortalecer-se-ia identidades culturais, apoiar- se-ia a coesão social e desenvolver-se-ia a mediação intercultural

(ICOM, 2013). Anos depois, no Funchal, insiste-se na ideia de que os museus devem alargar os públicos, bem como

centrar-se na incentivação do trabalho em rede e incluir exposições itinerantes, partilha de serviços (restauro, inventário, digitalização, seguros, marketing/publicidade, etc.), assim como de recursos (investigadores, outro pessoal, etc.) e maior uso das novas tecnologias (em especial no campo da digitalização e principalmente no registo 3D e realidade virtual ou aumentada).(ICOM, 2018)

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No atual contexto de liquidez e velocidade, e logo no início do ano que iria marcar de forma indelével todas as práticas sociais, incluindo, naturalmente, as de fruição do património, nomeadamente em espaços museológicos, Luís Raposo, em “Os desafios dos museus em 2020”, refletia acerca dos reptos, que, à época, se associavam aos museus, e insistia na discussão da própria essência de “museu” (vd. Raposo, 2020a), sendo que tinham passado apenas quatro meses sobre a reunião de Quioto que adiara um encontro agendado para para Paris, em junho de 2020, a retoma da discussão sobre a redefinição de “museu”, no sentido de se estabilizar respostas a questões como o que são e para que servem os museus, numa época em que estes espaços devem preocupar-se com o perfil dos novos visitantes que começam a procurá-los, e no que as características desses novos visitantes podem significar, ou exigir, em termos de ajustes necessários de formatos museológicos mais canónicos e sólidos. Mais, segundo Raposo a redefinição deverá igualmente considerar uma ligação mais próxima e óbvia às comunidades, no sentido de estimular uma maior interação entre espaço museológico e comunidade com a finalidade de proporcionar uma verdadeira relação de sustentabilidade social e de partilha (Raposo, 2020a), de que o projeto Um Museu Entre Vizinhos desenvolvido pela Fundação Calouste Gulbenkian é um excelente exemplo.

Nos três anos anteriores ao encontro de Quioto decorreram, em todo o mundo, inúmeros e entusiasmados debates sobre esta redefinição, mas que, tal como o que sucedeu no Japão, onde houve 269 propostas para a nova definição, foram também inconclusivos. Contudo, a reunião de 2019 parecia já, pelo menos, encaminhar-se num dado sentido que era o de que os museus deixassem de ser vistos como meras instituições de conservação de coleções e passassem a ser entendidos como espaços multidisciplinares, cujo principal foco seria os direitos humanos.

O confinamento e as rotinas de distanciamento físico, por um lado, e a demissão da presidente do grupo de trabalho, por outro, adiaram a reunião de Paris para um encontro virtual em julho, no qual, contudo, a questão da redefinição de “museu” não constou sequer da agenda, pois que, nestes tempos por enquanto atípicos, e apesar de essa questão ter ganho ainda mais relevância, talvez se tenha tornado, ao mesmo tempo, mais difícil de sustentar e discutir. Aconteceu,

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entretanto, em março um encontro que agregou diversos comités e em cujas atas Luís Raposo declarou que a definição que se estabelecer deverá ser breve e clara, focar-se nas características distintas dos museus, atribuindo maior ênfase àquilo que os une; o que ecoa, afinal, a Declaração do Funchal que já referia que os “museus promovem e comunicam valores universais”(ICOM, 2018), apesar de ancoragens locais, regionais ou nacionais.

A Declaração do Funchal (ICOM, 2018) evoca o número 466 do Eurobarómetro, divulgado pela União Europeia, para elucidar que mais de 80% dos europeus exprimem a importância e o orgulho, que atribuem ao património cultural; cerca de dois terços declaram que a presença de património cultural pode influenciar a escolha do seu destino de férias; mais de metade visitou museus ou assistiu a acontecimentos culturais ligados a museus e monumentos ao longo dos últimos doze meses; quase oito em dez pessoas consideram que o património cultural ou as actividades ligadas ao património cultural criam emprego; nove pessoas em dez pensam que o património cultural da Europa devia ser ensinado nas escolas, na medida em que nos remete para a nossa história e para a nossa cultura; e mais de três quartos instam as autoridades públicas a que atribuam maiores recursos ao património cultural europeu.” (ICOM, 2018).

A afirmação anterior surge-nos, nesta fase de desconfinamento gradual, ensombrado pelos avisos constantes de que teremos de atravessar uma segunda fase de pandemia, como um alerta que não podemos ignorar e que nos convida a ponderar sobre aquilo que se passou e que foi agenciado por grande parte dos museus nestes tempos de distanciamento físico, convidando-nos, em simultâneo, a tentar prever o cenário pós-COVID-19 no que ao mundo dos museus diz respeito.

4 E, de repente, a COVID-19

No dia 1 de maio de 2020 Márcia Branco escrevia no Jornal Universitário do Porto que “[s]e as pessoas não podem ir ao museu, o museu vai às pessoas” (Branco, 2020). Na verdade, o fervilhar museológico internacional de que Luís Raposo falara no início do ano (Raposo, 2020b) foi substituído por um outro tipo de fervilhar remoto

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