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Desejo, poder e valor subjetivados: o objeto como ícone de status.

No documento MUSEOLOGIA E PATRIMÓNIO (páginas 177-190)

3 Museologia – Exposições – Disseminação de informação

7 Desejo, poder e valor subjetivados: o objeto como ícone de status.

O desejo é mola de relações e mentor de transformações, e os objetos estão incluídos nessa dinâmica, pois o desejo é uma dimensão essencial na relação sujeito/objeto. Desejo e paixão por objetos nutrem-se na rivalidade e nos obstáculos apresentados para a posse, e pela possibilidade de superá-las. Neste quadro surge o colecionador, que exibe suas conquistas, através de objetos adquiridos como troféus confirmadores da sua competência e seu poder, valorizando-se diante dos outros indivíduos.

Essa é também uma das facetas dos museus, quando entendidos e elaborados como espaços de ostentação de poder e força, enquadrando-se aqui os museus relacionados ao colonialismo e imperialismo, pois seus acervos refletem a penetração, rapina e exploração de povos e suas culturas materiais. Tais museus apresentam-se como espaços do sequestro, da dilapidação de objetos que, retirados dos sistemas culturais dos grupos de origem, são referência de momentos de domínio e violência de grupos hegemônicos europeus em relação a outros povos explorados. Em seus acervos, o poder se apresenta como elemento preponderante na coleta, armazenagem e exposição de objetos.

No entanto, museus podem ser entendidos e concebidos como espaços de encontros de referências, de explicitação de abordagens sobre determinadas questões. Espaço de encontros de abordagens, de proposições, em que se possibilitem questionamentos, sínteses, novas referências, mudanças de posição. Espaço que forneça subsídios para a transformação de ideias, indivíduos, conceitos e práticas da sociedade.

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Devem configurar-se como instituições que funcionem como local de diálogos interculturais, em que se apresentem visões diferenciadas acerca de um mesmo problema, uma mesma questão, e em que seja permitido o falar e o escutar, em que se estimulem diálogos.

Importa para a construção desses diálogos considerar que os objetos se enquadram em sistemas de significações, portanto, o poder dos objetos depende das construções, das leituras nas quais eles se enquadram. Quando consideramos que há relação direta entre a produção de significados e os objetos existentes percebemos que os objetos provocam novas situações que, por sua vez, provocam o surgimento de novos objetos. Há uma relação direta entre realidade e objetos, entre sujeitos que constroem objetos e os objetos que “constroem” sujeitos, com suas posturas, novas abordagens, novos desejos, bem como novos gestos, novas formas de pensar e de agir. Assim, a força do objeto não reside em si mesmo, na sua materialidade. Ainda que sua materialidade apresente as características formais que poderão contribuir para as diversas interpretações possíveis, a interpretação desta materialidade é realizada a partir de categorias que são estabelecidas, pré-existentes.

É importante considerar, também, que os objetos são testemunhos dos gestos que lhes deram origem, bem como das condições tecnológicas e necessidades existenciais a eles relacionadas. Neles estão contidos os processos, os passos tecnológicos, mas também as relações que se estabeleceram a partir deles, bem como as pressões sociais que os definiram, os moldaram e os estruturaram. Sua forma transcende seus limites, revela bem mais do que o simples olhar pode captar. Em si o objeto é mudo, é necessário o olhar, que é interpretativo e cultural, para que seja compreendido e valorizado.

Tal entendimento exige que enquadremos os objetos em sistemas de significação, de uso, de correlações. É preciso que, permanentemente, nos reapropriemos dos objetos e, através deles, construamos as imagens e referências a eles relacionadas. Um berimbau solitário, evocando a imagem de uma roda de capoeira, os sons metálicos, a ginga, a malandragem, a esperteza, a resistência de um grupo étnico, e que também pode evocar o Mestre de capoeira Pastinha e tantos outros. Um único objeto evoca os mais diversos significados e entendimentos, e uma vez que os objetos não falam por si, nós é que construímos os seus textos, mobilizando-os daqui para lá,

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introduzindo-os em nossos contextos simbólicos. Nessa construção simbólica, de quebra-cabeças montados com peças que poderão deslocar-se em diversos sentidos, dependendo dos interesses e intimidades de cada um com os objetos e as relações possíveis de se estabelecerem, a relação objeto e contexto é complementar e interdependente.

Museus devem ser pensados como instituições voltadas para a exploração do sensorial, como um caminho para a cognição, entendendo-se que não se trata de compreensão de conteúdos de forma intuitiva, casual, mas sim de aprendizados pelos sentidos, despertando as memórias e referências sobre o mundo em que vivemos, ou ainda, trazer novidades, revelando outros modos de viver e enfrentar o mundo. Exposições museológicas devem informar sobre a criatividade, sobre a conformação ou reação, sobre diversidade e pluralidade culturais.

Logo, a abordagem do museu não pode estar dissociada do entendimento do sentido ou sentidos dos objetos, incluído em um sistema que implica outros elementos, como as palavras, as ideias e as imagens. Entendimento que deve considerar, também, que o arranjo cênico – a expografia dos objetos nesse espaço específico e fetichizado - , não se dá de forma aleatória, mas em uma lógica que é a das composições imagéticas e da articulação das partes com o todo. Portanto, a exposição reflete, ou deveria refletir, um conceito, uma mensagem, uma intenção, normalmente pedagógica. Nesse sentido, museus afirmam-se como espaços didático-pedagógicos nos quais exploram-se os sentidos, as sensibilidades, buscando-se provocar a reflexão, a interrogação, o aprendizado, o conhecimento. Locais que devem privilegiar o aprendizado através de estímulos que toquem o corpo e os sentidos.

Referências

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A ESPIRITUALIDADE INDÍGENA NA PAUTA DA

DESCOLONIZAÇÃO DA MUSEOLOGIA – A RESSACRALIZAÇÃO

DO MUSEU E AS CURADORIAS [INUSITADAS]

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Marília Xavier Cury

Universidade de São Paulo, Brasil https://orcid.org/0000-0002-4661-9525 1 Introdução

A etimologia da palavra museu sugere o templo das musas, filhas de Mnemósine e Zeus. Também considera Museu o filho de Orfeu, que por sua vez é filho de Apolo, e sua missão poética no mundo (Guimarães & Barbanti, 1991, p. 8), ou seja, divindades, mitologias e o sagrado no museu. Nesse sentido, Teresa Scheiner defende:

Cela devrait être l’un des tâches de la muséologie que de penser le musée à par- tir de son origine mythique, en tant qu’instance de manifestation des muses, ce qui permettrait de le comprendre dans son inépuisable pouvoir, comme ce qui advient, se manifeste, se détache de l’ordinaire.68 (Scheiner, 2018, p.

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Muitas outras concepções interligam/desligam o sagrado e o museu.

Num sentido amplo na museologia, no patrimônio, no turismo e outros campos, o pensar o sagrado é restritivo em termos de

67 Artigo reestruturado e ampliado de La museología y lo sagrado – La

ressacralización del museo, Cury, 2018a.

68 Deveria ser uma das tarefas da museologia pensar no museu a partir

de sua origem mítica, como um exemplo de manifestação das musas, o que permitiria compreendê-lo em seu poder inesgotável, como acontece , manifesta, se destaca do comum.

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arquitectura monumental ou pela oferta de certos objetos pelo museu por aquilo que o público busca massivamente, isso está no plano da gestão neoliberal, no marketing e no controle estatístico, perspectivas muito distantes do sagrado como saberes.

As concepções das artes sacras são limitadas, como também as categorias patrimoniais dos lugares, os objetos e as práticas. Também as categorias como patrimônio religioso móvel e imóvil, tangível e intangivel (Aulet, Mundet & Vidal, 2017) não alcançam a discussão proposta, como ainda as funções religiosa e cultural ou turística (Crous, Aulet & Kanaan, 2017).

Seguimos dessacralizando o museu, colocando-o à parte dos saberes do sagrado, como distanciamos a vida dessas dimensões. O artigo contrapõe a generalizações e busca agregar outras visões às discussões sobre museu, musealia, musealidade e musealização - bases para fazer museu nas dimensões da gestão, curadoria e museografia, no bojo da sua função e papel social.

Para François Mairesse: “Desde una perspectiva integradora de la museología, lo sagrado podría considerarse como una de las categorías de la musealidad y viceversa” (2018, p. 18).

Apesar de tal colocação, para o autor, o caráter sagrado pode ser “alterado”, ele nos dá exemplos, como Santa Sofia em Istambul, que recentemente foi revertida a mesquita. Entre 537 e 1453 tratava-se de uma basílica e, depois, entre 1453 e 1931 foi uma mesquita. Em 1935 foi tornada museu. Em 10 de julho de 2020 foi novamente convertida em mesquita pela decisão do presidente da Turquia. Explorando a lógica do Mairesse, o espaço sagrado da ora igreja, ora mesquita foi profanado, quando se tornou museu. Mas, um museu tem esse poder, como o Estado e os gestores públicos de tirar e atribuir a sacralidade a um objeto, lugar ou edificação?

O autor nos apresenta algumas questões museológicas:

¿Cómo, en término de los objetos, se opera la relación entre los objetos, el patrimonio y lo sagrado? En lo referente a su selección, ¿la elección de los objetos (patrimonialización y musealización) se ve influenciada por su carácter sagrado? ¿Cómo se construye o

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deconstruye la noción de sagrado en el museo?” (Mairesse, 2018, p. 19)

A essas questões o autor agrega um contraponto, esvaziando os musealia de seu potencial sagrado, a ver como se coloca:

El museo puede “desacralizar” (cabezas maoríes o fetichistas), pero también sacralizar (obras de arte o nuevas reliquias). Pero a la inversa, la relación que los visitantes y en particular algunas formas de turismo establecen con los objetos de los museos y con los sitios del patrimonio ¿no se acerca a veces a cierta forma de profanación? (Mairesse, 2018, p. 19)

É factível estabelecer uma relação entre sagrado e musealidade, mas as perspectivas apresentadas pelo autor sobre sagrado X profanado e o poder do museu ou no museu de dessacralizar e sacralizar parece um a visão bastante centrada, hegemônica, curiosa ao confundir aquilo que é sacro daquilo que é empossado e adorado no âmbito do museu por seus profissionais. Também, polariza entre sagrado X profano, não vislumbrando outras possibilidades. Por exemplo, o museu, ao promover coleta de remanescentes humanos, profana cemitérios e sepultamentos, mas não tira deles seu poder sagrado ao desrespeitar os mortos e seus lugares de enterramento. O mesmo ocorre com remanescentes humanos como troféus de guerra, apropriação do corpo do outro, uma dominação simbólica, não dessacraliza, mas desrespeita aquilo que é sagrado, a vida humana. Mas, o autor, desconsidera, pois desconhece, isso está claro, que cada objeto tem seu dono, seja o remanescente humano, corpo que ainda pertence no presente a alguém, seja porque os objetos evocam seus artesãos e artistas ou proprietários que, com seus objetos, se relacionaram/relacionam profundamente. O museu e seus profissionais não mudam isso, mas podem se relacionar com tais conceitos espiritualistas simplesmente mantendo uma relação de respeito com os musealia e, consequentemente, com seus donos.

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Teresa Scheiner circula entre o profano e o sagrado e como essas categorias se relacionam no museu, de certa forma reforçando o que Mairesse defende no sentido da capacidade dos museus de operar em ações num eixo sagrado-profano-sagrado:

Il serait alors possible de per- cevoir que la genèse du musée est liée à l’essence profonde du sacré : non pas celle qui se révèle dans les choses sacrées (produit), mais celle qui palpite dans le mouvement continu et qui génère des hiérophanies (processus). Le Musée peut ainsi être perçu comme une manière très spéciale d’Être dans le Monde (... la relation spécifique?), qui incorpore sacré et profane à partir de formes plurielles : différentes façons d’être de la manifestation.69 (Scheiner, 2018, p.

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Tanto Mairesse quanto Scheiner e outros teóricos do campo museal (museólogos, historiadores, arqueólogos e outros) partem do fundamento de que ao entrar no museu os musealia adquirem um outro estatuto, o estatuto do objeto como documento. O estudo do objeto documento, no entanto, não é fechado, é aberto a múltiplas interpretações, intenções, ideologias, hegemonias e relações de poder. Matías Cornejo (2018) coloca a questão do sagrado pela ótica dos atores sociais70 referentes aos musealia, ao tratar da exposição,

fazendo a crítica às limitadas e restritas formas de apresentação da escultura Hoa Hakananai'a no Museu Britânico: “Accordingly, it seems to be the case that Living and Dying room curators have preferred

69 Seria então possível perceber que a gênese do museu está ligada à

essência profunda do sagrado: não aquilo que se revela em coisas sagradas (produto), mas aquilo que pulsa em movimento contínuo e que gera hierofanias (processo). O Museu pode assim ser percebido como uma maneira muito especial de estar no mundo (... a relação específica?), que incorpora o sagrado e o profano a partir de formas plurais: diferentes modos de ser da manifestação.

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“neutrality” or “objectivity” much more comfortable and safe than consulting challenging communities such as the Rapa Nui”71 (Cornejo

González, 2018, p. 89).

Prossegue a sua clara argumentação, revelando a provável falta de fé dos curadores, por isso não veem a fé inerente à situação relacionada a um objeto que tem sua origem:

In this connection, Hoa Hakananai’a has not only suffered a biased omission of its condition as a religious object, but also, when recognized, its faith has been considered as a dead faith, discarding any attempt for re- activating or reconnecting the object with its source community, by, for instance, asking themselves what the statue means for them now. In other words, it might be argued that the power to interpret this moai has been the exclusive patrimony of Western white academic parties instead of the culture that created it and gave it spiritual or “metaphysic” meaning.”72 (Cornejo González, 2018, p. 90)

71 Consequentemente, parece que os curadores da sala Vivendo e

Morrendo preferem a “neutralidade” ou a “objetividade” muito mais confortáveis e seguras do que consultar comunidades desafiadoras como a dos Rapa Nui.

72 Nesse sentido, Hoa Hakananai'a não apenas sofreu uma omissão

tendenciosa de sua condição de objeto religioso, mas também, quando reconhecida, sua fé foi considerada uma fé morta, descartando qualquer tentativa de reativar ou reconectar o objeto com sua comunidade de origem, perguntando, por exemplo, o que a estátua significa para eles agora. Em outras palavras, pode-se argumentar que o poder de interpretar esse moai tem sido o patrimônio exclusivo dos partidos acadêmicos ocidentais brancos, em vez da cultura que o criou e lhe deu um significado espiritual ou “metafísico".

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Trazemos para discussão a visão do sagrado desde o ponto de vista indígena e como isso afeta o trabalho com objetos desses povos tradicionais no museu.

Há pressupostos para a argumentação que vimos construir, para o entendimento de uma museologia que respeita o sagrado. O primeiro, os indígenas vivem o sagrado. Segundo, a espiritualidade faz parte do cotidiano indígena, mas é outra realidade com normas próprias que orientam a vida individual e social. Terceiro, a espiritualidade implica em um sistema de comunicação complexo na qual o Pajé tem um papel central. Quarto argumento, ao passo que os territórios indígenas sejam espaços sagrados – de práticas, cultos, lutas, violência, opressão, extermínio, resistência, conquistas – também as florestas e lugares de culto, os museus são sagrados e consagrados. O Pajé Barbosa afirmou sobre os objetos indígenas em museus – tudo é sagrado (Barbosa, Pitaguary, Elias, Pereira, Marcolino & Marcolino, 2020). O Jorge Garcia escolheu um museu para batizar uma menina indígena e também liderou uma apresentação de dança tradicional em contestação a colocações que o incomodaram profundamente no museu, lugar onde a hegemonia se manifesta constantemente, como a representação restrita e muitas vezes estereotipada do “outro”. A Kujá Dirce Jorge sabe que os remanescentes humanos em museus são seres humanos e devem ser respeitados pela equipe de profissionais e público de visitantes.

Os indígenas nos alertam, temos de saber onde colocar os objetos em reserva técnica, ainda, se os manipulamos ou falamos sobre os objetos – evocamos outras dimensões, alguns profissionais têm permissão para trabalhar com os objetos, outros não.

Sabemos o que seja sagrado e como identificá-lo dentro e fora do museu? A reflexão museológica proposta se faz em diálogo com indígenas envolvidos com a curadoria em museus tradicionais e autogestionados - os museus indígenas.

Para se chegar às questões propostas, um percurso museológico é apresentado, para construção de um entendimento de como o sagrado e a espiritualidade estão no museu.

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2 A pesquisa museológica e os indígenas no museu

A museología está comprometida com a descolonização. Refletir sobre o sagrado é uma busca de outros pontos de vista e os indígenas têm um espaço importante a ocupar com trabalhos colaborativos73. A participação faz parte dos desafios museológicos.

Hoje praticamos a curadoria compartilhada, requalificação de coleções e outras ações que introduzam múltiplas vozes e as autorrepresentações, não como abertura dos museus, mas como movimento de grupos para garantir seus direitos à memória (Nora, 2009) nos museus. A apropriação dos museus por distintos grupos é um processo já legitimado, e particularizamos os indígenas no Brasil e os processos de “indigenização” dos museus74. Ante tantas obrigações, os museus devem informar aos grupos sobre as coleções coletadas no passado, é um direito dos indígenas ter acesso aos objetos de seus ancestrais. Na pesquisa, tratamos de atuar com a requalificação das coleções, para construir a narrativa de acordo com os objetivos indígenas – falar de si mesmos, ser os pesquisadores de suas culturas e se autorrepresentar no presente, pois resistem, (re)existem e estão situados em seus lugares/territórios/terras indígenas/aldeias.

A pesquisa museológica contínua com indígenas permite a construção da confiança, trabalho difícil por adentrar em camadas sobrepostas de mais de 500 anos de opressão e violência contra esses povos no Brasil, ainda hoje ativas como, ainda hoje, o genocídio, mas também o etnocídio, como modus operandi da hegemonia para apartar, diminuir, estigmatizar e perseguir os povos indígenas, distanciando-os de seus direitos humanos universais. Devemos também lembrar a histórica relação entre museu e indígenas representada pelos gabinetes de curiosidade, mas fortemente construída pelo poder colonialista no século XIX, ainda presente nas estruturas de trabalho e de pensamento museais, considerando um campo interdisciplinar. Em

73 Andrea Roca (2015b) apresenta uma discussão sobre a

complexidade dos processos de colaboração com os indígenas.

74 Andrea Roca ((2015a), em pós-doutorado, desenvolveu discussão

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outros termos e nessa ótica, o museu não é um lugar confiável, por enquanto.

Em se tratando do sagrado no museu, os indígenas vêm nos ensinando com os saberes da espiritualidade. Os saberes e práticas espirituais dos indígenas são mantidos pela tradição, mas a espiritualidade matem a tradição, um vai e vem que fortalece a resistência e refaz a existência.

Há muito que os museus tratam do sagrado e conhecem a espiritualidade relacionada a certos objetos, mas a ideia de patrimônio e musealização segue revalidando a apropriação dos objetos sagrados alheios, muitas vezes esvaziando a musealidade do seu valor sacro e atribuindo outros valores - manifestação de poder sobre aquilo que é especial e sensível e que pertence ao “outro”. Com a espiritualidade indígena como eixo, nos distanciamos criticamente de certas concepções colonialistas, para quebrar paradigmas. Para tanto, não

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