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1.2 CONTEXTOS EM QUE OCORREM DESAPARECIMENTOS E

1.2.2 Contexto familiar

Outra categoria estudada pelo NISMART 1 (Finkelhor et al, 1990) refere-se às crianças e adolescentes que fogem de casa ou de abrigos. As fugas podem ser de um dia com pernoite ou fugas recorrentes. As fugas de casa são categorias diferentes das anteriores e muitas vezes consideradas um problema familiar. Apesar de as fugas constituírem uma ação voluntária da criança ou do adolescente, elas são indicadoras de algum tipo de problema familiar ou institucional, seja pela presença de um ambiente familiar disfuncional ou conflituoso, ou de um ambiente institucional que coloque em risco o bem-estar da criança ou do adolescente. Segundo o NISMART 1, os adolescentes são os que mais fogem e possuem maiores chances de entrar em contato com drogas, praticar atos infracionais, sofrer violência física ou exploração sexual infantil.

No NISMART 2, Hammer et al. (2002) observaram que em 1999 ocorreram 1.682.900 fugas de crianças e adolescentes nos Estados Unidos, sendo que apenas 21% foram reportadas à polícia, 96% dos que fugiram tinham acima de 12 anos, 21% tinham histórico de violência física e sexual, 19% eram dependentes de drogas e 11% haviam cometido atos infracionais. Dalley (2007) relatou que 76% dos casos de desaparecimento no Canadá foram fugas de casa, sendo 58% de meninas e 42% de meninos. Mais da metade das meninas tinha entre 14 e 15 anos e 47% dos meninos também estavam nessa mesma faixa etária. Em 82% das fugas reportadas não se tratavam de um primeiro episódio.

No início dos anos 70, a polícia dos Estados Unidos começou a “deter” temporariamente em abrigos, a criança ou adolescente fugitivo, principalmente aqueles que poderiam se colocar em risco ou a outras pessoas. Na inexistência de abrigos locais, os fugitivos foram colocados em prisões e as organizações de direitos humanos e de serviços sociais se manifestaram contrariamente a este tipo de ação gerando a decretação, em 1974, do Juvenile Justice and Delinquency Prevention Act (JJDPA). Uma das ações do JJDPA foi o Runaway and Homeless Youth Act (RHYA) que provê abrigo, aconselhamento e educação a estas crianças e adolescentes até que os mesmos sejam reunidos com a família de origem novamente. A legislação americana foi citada com o intuito de mostrar como a questão das fugas de casa é um problema que mobilizou o governo devido à sua gravidade.

Há muitos anos a literatura tem mostrado que a violência doméstica (maus-tratos, abuso sexual intrafamilial, violência conjugal, violência psicológica, negligência e abandono) pode facilitar a ocorrência de fugas de casa. No artigo de Janus, Archambault, Brown e Welsh (1995), os autores apontam que o abuso físico praticado em crianças e adolescentes que fogem e ficam nas ruas já foi tema literário de autores como Charles Dickens e Mark Twain. Mas a revisão bibliográfica realizada pelos autores mostrou que este tema tem sido mais estudado, principalmente a partir da década de 80, com pesquisas que enfatizam as incidências de abuso físico ocorrido nas ruas ou em casas, facilitando a fuga. A pesquisa destes autores foi realizada em um abrigo na cidade de Toronto, Canadá, por meio de entrevista com 195 adolescentes que fugiram de casa. A maioria destes jovens já tinha fugido mais de uma vez, suas famílias apresentavam conflitos, principalmente com histórico de maus-tratos físicos que precipitaram a fuga. A idade média do início dos abusos foi de 12 anos, sendo as garotas as que mais sofreram esta violência repetidas vezes, entre os 5 e 10 anos de idade. As agressoras em geral foram mães biológicas, tanto para meninos quanto para meninas, principalmente as mães solteiras. A vulnerabilidade anterior unida à fuga aumenta o risco de o adolescente continuar sendo abusado fisicamente, mas agora pelos “amigos” ou “parceiros” da rua, além de uma possível entrada na marginalidade. Todavia, os resultados deste estudo apontaram que, ainda, a violência física praticada na família foi maior do que a praticada na rua.

Matchinda (1999), em um estudo com 210 crianças que viviam nas ruas de Yaounde, na República dos Camarões, verificou que elas fugiram de casa antes dos 11 anos, sendo que 71,4% tinham famílias instáveis, com pais que estavam separados temporariamente ou permanentemente. As famílias eram de baixa renda, mas a pobreza não foi o fator predominante que levou essas crianças a viverem nas ruas, e sim o autoritarismo familiar e os

maus-tratos físicos praticados pelos pais. Tyler e Tyler (1996), em seu estudo com 101 crianças que viviam nas ruas de Bogotá, na Colômbia, também já tinham observado que a pobreza (7,1%) não foi o fator principal que ocasionou a saída de casa, e sim abusos praticados por familiares (29,3%) e disciplina excessiva (8,5%). Problemas familiares foram citados por 56 crianças (57%) como o principal motivo das fugas.

Crianças e adolescentes que fogem de seus lares ou de instituições, acabam encontrando nas ruas um refúgio e a possibilidade de conviverem com outras crianças e adultos, formando novos vínculos afetivos e laços sociais. Por viverem nas ruas acabam recebendo o rótulo de “criança ou menino (a) de rua”, mas segundo Cosgrove (1990), além desse termo dizer muito pouco sobre essa população, há ainda uma tendência a enquadrá-los em um único grupo de negligenciados, abusados e explorados. O autor propõe uma definição baseada em duas dimensões: o envolvimento da família (um bom indicador da qualidade do ambiente social da criança) e o relacionamento da criança com as normas sociais. Para ele, a criança de rua é qualquer indivíduo menor de idade, cujo comportamento é discrepante com as normas da comunidade e que o apoio maior às suas necessidades não vem da família ou de uma família substituta. Apetkar (1996), ao se reportar à definição de Cosgrove (1990), afirma que ela possui consistência cultural, mas que a noção de comportamento desviante e família susbtituta estão dentro das peculiaridades de cada cultura, portanto não são uma regra universal. Além disso, Apetkar (1996) pergunta-se qual seria o comportamento desviante se a escolha de viver nas ruas para fugir de lares conflitivos e disfuncionais pode, em muitos casos, representar um aspecto saudável, tanto físico quanto emocional para aquele que foge.

Essa é uma questão importante, ou seja, a fuga de casa, dependendo da situação e do histórico familiar, pode ser um sinal de saúde psíquica e não simplesmente de uma atitude impulsiva ou desviante daquele que foge. Daí a importância de que seja analisado o contexto familiar e a história da criança ou do adolescente nesse contexto.

Nesse mesmo artigo, Apetkar (1996), descreveu diversos estudos realizados com crianças e adolescentes que viviam nas ruas de países em desenvolvimento (como países da América Latina, alguns países da África e da Ásia) e verificou que as crianças raramente começavam a ir para as ruas antes dos cinco anos e que a grande maioria era do sexo masculino. Uma das explicações possíveis para isso, segundo esse autor, é o fato de as meninas estarem mais direcionadas aos afazeres domésticos e os meninos serem ensinados a saírem mais cedo de casa para buscar sustento, uma vez que nessas famílias, as mães geralmente cuidam sozinhas da casa e dos filhos. Outra possibilidade seria que as meninas

sejam cooptadas mais cedo para a exploração sexual infantil e por isso habitam o espaço das ruas com menos frequência.

Os números elevados de meninas adolescentes desaparecidas, principalmente porque fugiram de casa em decorrência de violência doméstica, também refletem o fato de que essas desaparecidas possam estar envolvidas nas redes de exploração sexual comercial. Em 2001, no II Congresso Mundial Contra a Exploração Sexual de Crianças ocorrido na cidade de Yokohama, Japão, foram ratificadas modalidades de exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, que se encontram no End Child Prostitution, Child Pornography and Trafficking of Children for Sexual Purpose (ECPAT). São elas: prostituição, turismo sexual, pornografia infantil, tráfico e venda de crianças para propósitos sexuais, casamentos com crianças e casamentos forçados. O que diferencia a exploração comercial sexual infantil de outras modalidades abusivas como a violência doméstica, é a questão do benefício ganho (dinheiro, comida, roupa) por meio de uma troca comercial: o corpo da criança ou do adolescente menor de 18 anos (www.ecpat.net/EI/CSEC_terminology.asp).

A fuga de casa como um dos fatores de risco para a entrada na exploração sexual também foi estudada por Estes e Weiner (2005) em uma pesquisa realizada conjuntamente nos Estados Unidos, Canadá e México. Foram feitas entrevistas com crianças e adolescentes em situação de rua, devido a fugas de casa ou expulsões, que eram sexualmente explorados; crianças sexualmente exploradas, mas que estavam abrigadas; pedófilos, agenciadores ou exploradores sexuais (cafetões e cafetinas); polícia federal, estadual e municipal; representantes de serviços sociais governamentais e privados e representantes de ONGs internacionais. Os dados também foram coletados por meio de questionários. Na avaliação desses dados os autores observaram a existência de quatro categorias de risco para o envolvimento de crianças e adolescentes na exploração sexual, ou seja, a) aqueles que não vivem com a família de origem porque fugiram de casa ou de instituições, expulsos ou sem teto, b) aqueles que estão na exploração e que vivem com a família, c) meninas que pertencem a gangues e grupos de transexuais e d) grupos de crianças domésticas e estrangeiras envolvidas na exploração sexual que ocorre nas fronteiras entre os países estudados. Estes e Weiner (2005) constataram que aqueles pertencentes à categoria (A) tinham o maior risco de envolvimento na exploração sexual quando comparados aos das outras categorias.

Biehal e Wade (2000; 2002), da University of York, no Reino Unido, há alguns anos estudam o problema dos jovens que fogem. Em um de seus artigos, fizeram um estudo entre os jovens que fugiram de casa e os que fugiram de abrigos ou de outras instituições. Realizaram ainda, uma revisão das pesquisas mais recentes sobre o tema da fuga de casa e

definiram como “running away” tanto crianças e/ou adolescentes que vivem nas ruas sem o consentimento de seus pais ou responsáveis, quanto aquelas que foram forçadas, pelos pais ou responsáveis, a deixar suas casas. Os autores se apoiaram em dois estudos ingleses, o Still Running, que envolveu todo o Reino Unido e estudou jovens que deixaram seus lares ou foram forçados a fazer isso, e o estudo chamado Going Missing que estudou jovens sob responsabilidade do governo e que fugiram do local em que moravam ou que se ausentaram sem consentimento, pernoitando fora. Foram considerados fugitivos os que tinham menos de 16 anos e viviam com suas famílias e menores de 18 para os abrigados. A partir destas pesquisas, os autores levantaram que 1 em 9 jovens fugiu, pelo menos uma vez antes dos 16 anos; que os tutelados pelo Estado apresentam mais probabilidade de fugir do que os que moram com suas famílias; que a média de idade para a primeira fuga é aos 13 anos, mas muitos começaram antes dos 11; que poucos se distanciam da área local de sua residência ou abrigo; e muitos ficam com amigos ou conhecidos, sendo que de um quarto a um terço dormem ao relento; que há uma forte associação entre as fugas e a permanência na escola e que a maioria dos conflitos familiares envolve abuso físico ou sexual, negligência ou rejeição familiar. Quanto aos riscos, o primeiro episódio de fuga pode ser mais arriscado do que as fugas múltiplas, mas os que reincidem também estão sujeitos a riscos, apesar de serem considerados “problemas”, a reincidência pode provocar risco de depressões, uso de drogas e desligamento da escola; o fugitivo reincidente pode vir a se tornar um adulto sem-teto no futuro; os que fogem estão mais sujeitos aos abusos físicos e sexuais, principalmente quando dormem nas ruas; estão mais sujeitos a praticar infrações, principalmente os tutelados. Os que fogem de casa estão sujeitos a abuso ou depressão quando reincidem, principalmente antes dos 11 anos; podem permanecer longe da família por longos períodos e um quinto destes jovens foi forçado a deixar sua casa.

As expulsões de casa configuram outra categoria estudada pelo NISMART 1 (Finkelhor et al, 1990) e referem-se às situações onde a família pede ou obriga a criança ou adolescente a deixar o lar, ou quando é levada para longe e o responsável não permite que ela retorne para casa. Se ela fugir, a família não faz nenhum movimento no sentido de procurá-la. Também nessa categoria configuram as situações de abandono ou deserções. A maioria dos expulsos são os adolescentes mais velhos e as crianças com menos de quatro anos. Muitas vezes esta categoria é confundida com a categoria referente às fugas, no entanto, a pesquisa mostrou que os expulsos vivenciaram situações de maior violência e conflito na família do que os que fugiram de casa e apresentam menor probabilidade de voltar para casa. E, por fim, há outra categoria de situações que não se enquadram nas anteriores, onde as crianças e adolescentes

podem ter desaparecido por se perderem e não conseguirem voltar para casa, ou estar desaparecidos por terem se machucado ou se acidentado e ainda não terem sido localizadas. Geralmente, o tempo do desaparecimento é curto, mas podem ocorrer situações de maior ou menor gravidade.

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