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O contexto histórico legal de formação dos trabalhadores técnicos em saúde no Brasil

Eixo 1 - Formação e certificação dos trabalhadores técnicos

II.1 O contexto histórico legal de formação dos trabalhadores técnicos em saúde no Brasil

A discussão em torno da formação dos trabalhadores técnicos em saúde no Brasil eclodiu nos anos 1980 como questão política, sendo incluída na agenda da Reforma Sanitária brasileira (RSB) durante a VIII Conferência Nacional de Saúde, e como questão social, em razão do grande contingente de trabalhadores técnicos com precária qualificação e sem reconhecimento profissional, inseridos nos serviços de saúde.

Em uma origem mais remota, o termo “educação profissional3” já constava como proposta das reformas educacionais defendidas pelo escolanovismo4 nos anos de

3 De acordo com o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (apud Ghiraldelli, 1991, pp. 67-68), "o

divorcio entre as entidades que mantêm o ensino primario e profissional e as que mantêm o ensino secundario e superior, vae concorrendo intensivamente, como já observou um dos signatarios deste manifesto, "para que se estabeleçam no Brasil, dois systemas escolares parallelos, fechados em compartimentos estanques e incomunicaveis, differentes nos seus objetivos culturaes e sociaes, e, por isto mesmo, instrumentos de estratificação social. (...) Ao espírito novo que já se apoderou do ensino primario não se poderia, porém, subtrahir a escola secundaria, em que se apresentam, collocadas no mesmo nivel, a educação chamada "profissional" (de preferencia manual ou mecanica) e a educação humanistica ou scientifica (de preponderancia intellectual), sobre uma base comum de tres anos. A escola secundaria deixará de ser assim a velha escola de "um grupo social", destinada a adaptar todas as intelligencias a uma forma rijida de educação, para ser um aparelho flexivel e vivo, organizado para ministrar a cultura geral e satisfazer ás necessidades práticas de adaptação á variedade de grupos sociaes" .

4 O movimento da Escola Nova, ou escolanovismo, preconizava a instituição de "métodos ativos" de ensino-aprendizagem, valorizava os estudos da psicologia experimental, colocando a criança, e não mais o professor, como centro do processo educacional. Tal movimento acompanhava a história de sua época, pois, com o processo de modernização, a urbanização e a industrialização do país nos anos de 1920, vários estados brasileiros promoveram reformas educacionais baseadas nos princípios da Pedagogia Nova (Ghiraldelli, 1991),

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1920 e 1930. A escola era vislumbrada como espaço privilegiado para o desenvolvimento de práticas e conteúdos de saúde visando a formação de futuros trabalhadores.

Durante o Estado Novo (1937-1945), o ensino técnico era organizado com bases nas leis orgânicas de Ensino, promulgadas pelo Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema. Há a preocupação com a formação de quadros profissionais para a indústria, o comércio, a agricultura, a formação de professores e a saúde. Nesta época foi aprovada a legislação para a área de enfermagem através do Decreto–Lei n° 8.778/1946 que regulou a formação técnica dos práticos de enfermagem e a Lei n° 775/1949 que regulou a formação dos auxiliares de enfermagem, para o então incipiente e pouco desenvolvido mercado de trabalho hospitalar.

A partir da segunda metade da década de 1960, a política educacional brasileira e especialmente aquela ligada à educação profissional em saúde tomou novos rumos. A Lei n° 4.024/61 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB) legalmente permitiu no Brasil a educação técnica em saúde. As reformulações na educação técnica foram acompanhadas pelo processo de reconhecimento, na área da saúde, da formação de técnicos pelo Ministério da Saúde em 1966. A Lei n° 5.692/1971 reformulou o ensino de primeiro e segundo graus no país – hoje ensino fundamental e ensino médio, respectivamente – implantando a profissionalização compulsória, a terminalidade profissional, atrelada a esse último grau de ensino. A área da saúde também sofreu essa institucionalização.

O conceito de ‘educação tecnológica’ na educação brasileira foi parcialmente apropriado pelas formulações liberais e tecnicistas de políticas educacionais mais recentes, especialmente a partir da década de 1970, cujo momento importante foi a criação dos primeiros centros federais de educação tecnológica, em 1978. É importante ressaltar que à época, a saúde não era objeto destas instituições. Especificamente na área da saúde, os cursos de enfermagem foram organizados a partir de 1972.

Em 1976, Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde (PPREPS), constituído por 16 projetos, 11 de treinamento e desenvolvimento de Recursos Humanos, sob a responsabilidade das secretarias estaduais de saúde, já carregava a ideia (implícita) de introdução de processos formativos nos serviços de saúde.

Historicamente, as iniciativas do Estado brasileiro voltadas para a profissionalização dos trabalhadores na saúde sempre foram coadjuvantes do trabalho

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desenvolvido pelas instituições privadas de ensino que iam em busca das demandas de mão-de-obra na área da saúde oferecendo cursos mais aligeirados.

Até os anos de 1980, não era incomum a abertura de escolas de formação técnica anexas a hospitais públicos e privados que tinham por finalidade formar trabalhadores técnicos (sobretudo os de enfermagem) que respondessem às necessidades da assistência médico-hospitalar.Muitas dessas escolas desenvolveram cursos profissionalizantes com exigência de escolaridade equivalente ao atual ensino fundamental, mas predominavam os cursos rápidos de treinamento.

Configurou-se, então, no exercício profissional, um grande número de práticos de saúde5 legalmente reconhecidos e, de outro lado, uma miríade de trabalhadores que atuavam nos serviços de saúde sem reconhecimento profissional – como os denominados atendentes de enfermagem e/ou outros práticos.

Na segunda metade da década de 1980, esse “mercado educativo” fica proibido na área de enfermagem, devido à pressão realizada pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen). Criado em 1973, o Cofen proibiu a contratação de atendentes após a aprovação da Lei do Exercício Profissional (Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986), estabelecendo o ano de 1996 como prazo para que só exercessem a profissão de enfermagem as seguintes categorias: enfermeiros, técnicos de enfermagem e auxiliares de enfermagem6.

A partir de então, a tendência é a da extinção dos práticos de saúde como categoria profissional e da eliminação da incorporação de leigos nos serviços de saúde. Contudo, ao nos debruçarmos sobre as estatísticas na saúde, observamos que no início dos anos 1980, do total de trabalhadores em atividade nos estabelecimentos hospitalares no Brasil, aproximadamente 35% eram de nível superior e 65%, de nível médio e elementar.7 Nesse último grupo, os trabalhadores de nível elementar – aqueles que haviam cursado somente as quatro primeiras séries do atual ensino fundamental – representavam quase 70% e, deles, a maioria era de atendentes de enfermagem. Os

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Denomina-se "práticos de saúde" aquele conjunto de profissionais que aprenderam sua profissão no "exercício do fazer". Ou seja, eram pessoas que trabalhavam na área e que, através da observação e da prática, iam aprendendo o ofício sem passarem por um processo formal de ensino.

6A primeira Lei do Exercício Profissional da Enfermagem (Lei nº 2.604, de 17 de setembro de 1955), revogada em 1986, estabelecia seis categorias profissionais na área: enfermeiro, obstetriz, auxiliar de enfermagem, enfermeiro prático ou prático de enfermagem, parteira e parteira prática.

7 O assim chamado nível elementar designava, na época, os trabalhadores que detinham o ensino primário (que significava a conclusão de quatro anos de escolaridade), que atualmente equivale ao primeiro segmento do ensino fundamental (atualmente constituído por cinco anos de escolaridade).

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trabalhadores de nível elementar constituíam um contingente expressivo de trabalhadores incorporado aos serviços de saúde públicos e privados com precária ou nenhuma qualificação específica; ao mesmo tempo, no plano social, esses trabalhadores não possuíam identidade profissional. Ambos os problemas eram consequência de um modelo de assistência à saúde que privilegiava, e ainda privilegia, a mercantilização da saúde e a industrialização da doença (Lima, 2010).

Entre as décadas de 1970-1990, existiu uma fraca regulamentação das profissões técnicas de nível médio (GIRARDI e CARVALHO, 2005). Em grande parte dessas profissões, apenas os requisitos educacionais são regulados, o que conferiu às mais diversas instituições o direito de conceder certificados e diplomas, e aos trabalhadores a autorização de praticar determinados atos e de exercer certas atividades. No levantamento efetuado sobre a legislação relativa aos trabalhadores de nível médio, 43 profissões de saúde, 33 (77%) obtiveram a regulamentação educacional na década de 1970 e 10 (23%) no final da década de 1980 ou no início dos anos 1990. Tais regulamentações, em sua maior parte, foram emitidas na forma de pareceres do antigo Conselho Federal de Educação (CFE), que, dentre outras funções, definia o currículo mínimo profissional e autorizava a abertura de cursos, estabelecendo cargas horárias mínimas, níveis de escolaridade e conteúdos do ensino. O certificado e/ou diploma era emitido para os alunos que cumprissem as exigências profissionalizantes, baseadas, na época, na Lei nº 5.692/1971. Por sua vez, dentre as 43 profissões relacionadas, apenas 8 (18%) possuíam alguma regulamentação profissional específica, mas sujeita às restrições estabelecidas pelas profissões de nível superior correlacionadas. São elas: auxiliar e técnico de enfermagem, técnico em radiologia médica, visitador sanitário, técnico em ótica, massagista, técnico em segurança do trabalho e técnico em prótese dentária. Essas profissões técnicas são regulamentadas por conselhos profissionais que, na sua maioria, se institucionalizaram a partir das profissões de nível superior correlatas, as quais detêm importante papel tanto na definição de suas atribuições quanto na fiscalização do exercício profissional, configurando um acirrado campo de disputa.

Entretanto, isso não significou o desaparecimento dos trabalhadores sem formação adequada nos serviços de saúde, o que vai justificar, a criação do Projeto de Profissionalização dos Trabalhadores da Área de Enfermagem (Profae), do Ministério da Saúde (MS), no final dos anos 1990, e a abertura de escola privada para a (re)qualificação dos práticos de radiologia em técnicos de radiologia nos anos 2000, por

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exemplo. Em ambos os casos, o aprendizado se desenvolvia através do acompanhamento do trabalho médico e de outros práticos e/ou o treinamento em serviço (organizado, por sua vez, por médicos e enfermeiros). Não podemos desconsiderar, no entanto, que a criação de conselhos profissionais responsáveis pela fiscalização do exercício profissional foi um dos motivos para a progressiva extinção dos práticos de saúde e, ao mesmo tempo, para a subordinação legal dos trabalhadores técnicos aos profissionais de nível superior.

Com a Lei nº 7.044/1982, a profissionalização obrigatória foi extinta. Porém, devido à necessidade de ainda se efetivar a qualificação profissional de inúmeros trabalhadores inseridos nos serviços de saúde com pouca ou precária formação, cria-se o Projeto de Formação em Larga Escala de Pessoal de Nível Médio e Elementar8. Tal projeto tnha como objetivo mais amplo "qualificar e habilitar, por via supletiva, com

avaliação no processo, trabalhadores de nível médio e elementar engajados na força de trabalho ou em processo de admissão para o trabalho em saúde" (Pereira, 2002, p. 42).

Com metodologia do ensino supletivo o Projeto Larga Escala buscava validar as diferentes etapas de uma educação continuada para os trabalhadores.

É importante ressaltar que o Projeto em questão traçou uma estratégia que gerou bons frutos para as décadas seguintes na educação em saúde, a saber: a imprescindibilidade da implementação de um centro formador, reconhecido pelo sistema de ensino, em cada estado brasileiro (Pereira, 2002). Assim nasce, na década de 1980, os Centro Formadores de Recursos Humanos de Nível Técnico para a Saúde (Cefor), como espaço estável e permanente de validação dos processos de capacitação e se instituicionaliza também a formação profissional em saúde no âmbito das secretarias estaduais de Saúde. Este Projeto, portanto, é a gênese da constituição de uma rede de escolas técnicas de saúde, atualmente denominada Rede de Escolas Técnicas do Sistema Único de Saúde (RET-SUS), vinculadas, em sua maioria, às secretarias municipais e estaduais de Saúde dos diversos estados brasileiros e voltadas para a profissionalização dos trabalhadores técnicos já inseridos nos serviços de saúde.

Os anos 1980 representam, assim, uma inflexão nessa trajetória de mercantilização e empresariamento que até então prevalecia tanto na política de saúde quanto na política de educação – e mais especificamente na formação dos trabalhadores

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Este Projeto ficou mais conhecido como Projeto Larga Escala e foi instituído no início dos anos 1980, a partir da realização de um acordo de cooperação técnica entre o Ministério da Saúde (MS), o Ministério da Educação e Cultura (MEC), o Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) e a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas).

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técnicos em saúde – em razão do processo de redemocratização da sociedade brasileira. É um período de luta e de organização de diversos movimentos sociais envolvendo operários, camponeses, mulheres, jovens, camadas médias, intelectuais e setores da burguesia e que tem como resultado a transformação da crescente pressão social nas mobilizações em torno das Diretas-já, no ano de 1984, e do processo constituinte, que culmina com a aprovação da Constituição Federal (CF) em 1988.

No Brasil, a VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS) realizada em 1986, afirma o movimento da Reforma Sanitária, representando um divisor de águas (Paim, 2008) na forma de pensar a política de saúde no país e, principalmente, na diferenciação entre reforma setorial e reforma social, daí consubstanciando-se na criação do Sistema Único de Saúde (SUS).

Em que pese a forte resistência dos interesses privatistas e o embate de forças em torno da proposta de mudança das bases jurídico-legais dos contratos público-privados, o movimento da RSB consegue aprovar um capítulo inédito sobre saúde na história constitucional. Na Constituição Federal (1988) é aprovado o princípio de que “a saúde é direito de todos no Brasil e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação” (CF, 1988, art. 196). Igualmente, aprova o artigo 200, inciso III, que reserva ao Sistema Único de Saúde a competência de “ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde”, particularmente importante para a discussão sobre a formação dos trabalhadores técnicos em saúde.

Outra grande disputa travada no contexto constituinte se dá em torno da inclusão da qualificação para o trabalho como objetivo da educação nacional. De um lado, estavam as entidades nacionais da área de educação, reunidas no Fórum da Educação na Constituinte em Defesa do Ensino Público e Gratuito, e as centrais sindicais, que tentavam assegurar ao trabalhador o direito à sua qualificação dentro do sistema educacional regular ou, mais especificamente, articular a formação geral com a formação técnica no antigo segundo grau de ensino (atual ensino médio), sob a responsabilidade direta do poder público; de outro, estavam o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) – o chamado Sistema S –, interessados em manter a atribuição exclusiva das empresas industriais e comerciais pela formação profissional.

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Essas disputas no campo educacional se exacerbaram a partir da apresentação à Câmara, ainda em dezembro de 1988, do primeiro projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), o qual paulatinamente perde apoio parlamentar e é substituído, configurando a então Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.

No campo da Saúde, o movimento de reformulação conceitual e operacional mais abrangente de seu conceito como parte de uma “totalidade de mudanças” (AROUCA, 1988) que visava a construção do SUS com base nos princípios de universalidade, integralidade e equidade, e nas diretrizes de descentralização, regionalização, hierarquização e participação da comunidade, exige a necessidade de mudanças na formação profissional dos trabalhadores de saúde, de maneira geral, e particularmente dos trabalhadores técnicos.

Esta nova concepção de educação e saúde demonstrava a necessidade de se romper com a concepção marcadamente tecnicista caracterizada pela operacionalização de objetivos e a mecanização do processo de ensino-aprendizagem (RAMOS, 2008) que orientava a formação dos trabalhadores técnicos em saúde a partir dos anos 1970. Essa pedagogia tecnicista, materializada a partir da aprovação da Lei nº 5.692/1971, foi profundamente influenciada pela teoria do capital humano, que traz como ideia central que um acréscimo de treinamento, educação e saúde corresponde, também, um acréscimo na capacidade de produção do trabalhador. O capital humano é, assim, uma “quantidade” de conhecimentos, habilidades e atitudes que, ao serem adquiridas pelo trabalhador, potencializam a sua capacidade de trabalho de forma imediata9.

Os anos 1980, portanto, marcam um momento de mudança nas políticas de saúde e educação, com a construção de novos caminhos e alternativas, na tentativa de alcançar, de um lado, um sistema público de saúde baseado nos princípios de universalidade, integralidade e equidade, e, de outro, uma educação escolar pública, universal, laica, unitária e politécnica ou tecnológica. Em relação à formação dos trabalhadores técnicos em saúde, a perspectiva emanada da lei nº 8.080/1990, era de que ela se integrasse e se organizasse no interior de “um sistema de formação de recursos

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O discurso veiculado por tal concepção é de que, do ponto de vista econômico, o trabalhador se torna um duplo proprietário: da força de trabalho, adquirida pelo capitalista, e de um capital humano – quantidade de educação, treinamento, saúde –, adquirido por ele. De outra parte, o enfoque não só da educação, mas também da saúde pelo prisma do fator econômico leva à redução da concepção de educação, tanto na escola quanto fora dela, a fator da produção, como potencializadora do fator trabalho. Assim, a educação é reduzida à mera função técnica de formação de recursos humanos definida por critérios de mercado e das tecnologias educacionais, desenvolvendo-se a partir daí a perspectiva tecnicista da educação (FRIGOTTO, 1986).

49 humanos em todos os níveis de ensino, inclusive de pós-graduação, além da elaboração de programas de permanente aperfeiçoamento de pessoal” (Lei nº 8.080/1990, artigo

27, inciso I).

Se os anos 1980 foram marcados pela virada democrática no país – um período em que a emergente sociedade civil promoveu um processo de abertura a partir de baixo que culminou com a promulgação da nova Constituição Federal em 1988 e a conquista de importantes direitos sociais (COUTINHO, 2006) – os anos 1990, entretanto, foram pautados pelas profundas mudanças no Estado brasileiro, incentivadas na crescente hegemonia da doutrina neoliberal e de suas principais metas, conforme o Consenso de Washington: abertura irrestrita da economia, desregulamentação comercial e financeira, desregulação do mercado de trabalho e enxugamento do Estado, com a privatização das empresas estatais e demissões em massa.

No plano das políticas sociais, assiste-se, no país, à privatização do financiamento e da produção de serviços, à precarização das políticas sociais públicas, com o corte dos gastos sociais, à focalização dos gastos nos grupos mais carentes e à descentralização em nível local. Essas medidas têm início com os governos de Fernando Collor de Mello (1990-1992) e de Itamar Franco (1993-1994), aprofundam-se nos governos Fernando Henrique Cardoso (FHC) (1995-1998 e 1999-2002) e têm continuidade nos governos Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006 e 2007-2010).

Firmava-se a ideia de que o Estado só atuaria naquelas atividades consideradas exclusivas, isto é, naqueles setores que prestassem serviços que só o Estado poderia executar e que só ele tem poder de regulamentar, fiscalizar e fomentar – tais como a segurança pública, a cobrança e a fiscalização dos impostos, a previdência social básica, o subsídio à educação básica, a compra de serviços de saúde, entre outros. As atividades dos setores compreendidos como núcleo estratégico ou aquelas consideradas exclusivas, por serem eminentemente públicas, seriam administradas num misto de gestão burocrática e gerencial. O setor de produção de bens e serviços para o mercado correspondia às empresas estatais que se encontram no interior do aparelho de Estado, e seriam configuradas como atividades econômicas tipicamente voltadas para o lucro e logo privatizadas, guiando-se fundamentalmente pela administração gerencial.

Nesse processo de privatização do Estado e, consequentemente, da conversão dos direitos em serviços, a educação também é afetada. Após a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) em 1996, iniciou-se a reforma

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estrutural e conceitual do ensino médio e da educação profissional. A partir do decreto nº 2.208/1997, a formação profissional passou a ser tratada como um sistema de ensino independente e complementar à educação básica. Mais especificamente, ao ser aprovada, essa legislação reiterou o dualismo no ensino médio, ao determinar que a formação profissional de nível técnico teria uma organização própria e independente da organização desse grau de ensino, abolindo-se, com isso, a possibilidade de integração entre ambas e permitindo-se a oferta da primeira apenas sob a forma concomitante e/ou sequencial10 ao ensino médio. O referido decreto organiza, ainda, a formação profissional em três níveis: básico, técnico e tecnológico. Com a abertura para a criação de cursos básicos, que não estavam sujeitos à regulamentação curricular, a legislação permitiu a rápida expansão do mercado educativo de cursos rápidos, para atender necessidades pontuais do mercado de trabalho11.

Após a reforma estrutural, operou-se a reforma conceitual, baseada no modelo de competências, por meio das Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio – parecer CNE/CEB nº 15/1998 e resolução CNE/CEB nº 3/1998 (Brasil, Ministério da Educação, 1998a e 1998b) – e, posteriormente, das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Profissional – parecer CNE/CEB nº 16/1999 e resolução CNE/CEB nº 4/1999 (Brasil, Ministério da Educação, 1999a e 1999b). A noção de competência se difundiu no Brasil nos anos 1990, associada à apologia da “sociedade do conhecimento” ou da “sociedade pós-industrial”, extensamente veiculada pelos organismos internacionais, principalmente o Banco Mundial.