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I O contexto histórico dos processos de “wrongful birth” (“nascimento indevido”) e de “wrongful life” (“vida indevida”) e o seu tratamento na jurisprudência

No documento Responsabilidade Civil Profissional (páginas 153-156)

A jurisprudência norte-americana

Ao que parece, a expressão wrongful birth (nascimento indevido) foi utilizada, paralelamente à de

wrongful life (vida indevida), pela primeira vez em 1963, por um Tribunal norte-americano - por

contraposição à ideia-conceito de wrongful death (o tipo de indemnização correspondente ao que, no Direito português, se designa por dano morte) - numa decisão de um Tribunal de recurso do 555 In “Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica” cit., p. 694.

Estado do Illinois557 (proferida numa acção intentada por uma criança saudável, mas que era filho ilegítimo, reclamando uma indemnização com fundamento nessa sua condição), a qual recusou a atribuição da indemnização aí peticionada. Neste caso, uma criança nascida de perfeita saúde, com o único senão de ser filho de mãe solteira, visto que o pai abandonara a mãe durante a gravidez, demandou o pai reclamando deste uma indemnização, com fundamento na circunstância de o pai, ao abandonar a mãe, ter originado que o seu nascimento tivesse ocorrido num contexto de ilegitimidade jurídica558. O Tribunal rejeitou a pretensão do demandante com o argumento de que, se uma tal pretensão lograsse obter ganho de causa, os tribunais seriam inundados com milhares de processos instaurados por pessoas que simplesmente nasceram em condições por elas consideradas desfavoráveis559.

Foi também nos EUA, num tribunal de New Jersey, que, em 1967, uma mulher deduziu um pedido de indemnização contra o médico que não a informou dos riscos que uma rubéola ocorrida no início da gravidez poderia trazer – e, neste caso, efectivamente causou – ao feto (se bem que o aborto fosse, à época, ilegal no Estado de New Jersey, já não o era no vizinho Estado de New York, pelo que a demandante poderia aí ter interrompido legalmente a sua gravidez, impedindo assim o nascimento duma criança que padecia de graves malformações)560561. Tratou-se do primeiro processo em que um progenitor formulou uma pretensão indemnizatória contra o médico responsável pelo errado

diagnóstico pré-natal.

É esta a configuração típica dos processos de wrongful birth: uma acção de indemnização movida

pelos progenitores, em seu próprio nome, contra o médico, com fundamento no facto de este os ter

privado duma informação vital que, eventualmente, poderia ter conduzido à interrupção da gravidez562.

Este cenário pode ter na sua origem várias causas: i) ou o médico não efectuou os exames adequados; ii) ou, embora os tenha realizado, interpretou-os erroneamente; iii) ou, pura e simplesmente, não comunicou os resultados aos progenitores563.

O que releva, nestes casos ditos de “nascimento indevido” (“wrongful birth”) é que o erro médico conduziu a um nascimento indesejado. Não obstante a concepção ter sido desejada pelos progenitores, «verificou-se um nascimento na sequência de um erro médico (…em sentido lato) que retirou à mãe a oportunidade de tomar uma decisão informada e tempestiva sobre a continuação ou

557 Trata-se da decisão Zepeda v. Zepeda, acessível on-line no seguinte endereço:

http://www.leagle.com/decision/196328141IllApp2d240_1238/ZEPEDA%20v.%20ZEPEDA .

558 Cfr. VERA LÚCIA RAPOSO in As wrong actions no início da vida (wrongful Conception, wrongful birth e wrongful life) e a

responsabilidade médica (publicado in Revista Portuguesa do Dano Corporal, nº 21, 2010, pp. 61-99 [p. 67]).

559 VERA LÚCIA RAPOSO, ibidem.

560 Trata-se da decisão Gleitman v. Cosgrove [acessível on-line no seguinte endereço: http://www.leagle.com/decision/19677149NJ22_160/GLEITMAN%20v.%20COSGROVE].

561 Cfr. VERA LÚCIA RAPOSO in As wrong actions no início da vida (wrongful Conception, wrongful birth e wrongful life) e a

responsabilidade médica cit., loc. cit., pp. 67-68.

562 Cfr. VERA LÚCIA RAPOSO in As wrong actions no início da vida (wrongful Conception, wrongful birth e wrongful life) e a

responsabilidade médica cit., loc. cit., pp. 63-64.

563 Cfr. VERA LÚCIA RAPOSO in As wrong actions no início da vida (wrongful Conception, wrongful birth e wrongful life) e a

a interrupção da gravidez, afirmando os demandantes que, se não fosse o evento lesivo, a criança nunca teria nascido»564.

A par destas acções de indemnização intentadas pelos progenitores, em seu próprio nome, contra

o médico, com fundamento num erro médico que originou um nascimento indesejado – os típicos

processos de “nascimento indevido” (“wrongful birth”) -, existem ainda as acções propostas com

fundamento no facto de ter nascido uma criança indesejada – nomeadamente, por ter nascido com

uma grave deficiência – mas em que o demandante é a própria criança em questão, que reclama

uma indemnização por ter nascido. Estas últimas são as hipóteses designadas por “vida indevida”

(“wrongful life”)565.

O que distingue, portanto, as acções ditas de “nascimento indevido” (“wrongful birth”) das acções designadas por “vida indevida” (“wrongful life”) é a identidade do demandante: i) nas primeiras, são os pais quem pede uma indemnização por danos próprios (sejam eles danos patrimoniais – por exemplo, encargos com o sustento da criança -, sejam danos morais, resultantes, uns e outros, do

nascimento de um filho não desejado); ii) nas segundas, é a própria criança (por si ou representada

por outrem em seu nome, dado tratar-se muitas vezes dum menor e/ou incapaz) que nasce com graves deficiências físicas e/ou mentais – não detectadas pelos médicos ou sobre as quais estes não informaram convenientemente os pais - que reclama para si uma indemnização pelos danos que ela

mesma sofreu por ter nascido nestas condições.

Embora, numa fase inicial, a jurisprudência norte-americana tivesse rejeitado as pretensões indemnizatórias por “wrongful birth” e, sobretudo, por “wrongful life”566, essa tendência inverteu-se e, actualmente, existe nos EUA uma forte corrente jurisprudencial favorável à satisfação destes pedidos de indemnização, tanto os de wrongful conception567 como os de wrongful birth568.

564 PAULO MOTA PINTO in Indemnização em Caso de “Nascimento Indevido” e de “Vida Indevida” (“Wrongful Birth” e

“Wrongful Life”) (publicado in Lex Medicinae – Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 4 – nº 7 – 2007, pp. 5-25 [p. 6]).

565 PAULO MOTA PINTO, ibidem.

566 Segundo informa VERA LÚCIA RAPOSO (in As wrong actions no início da vida (wrongful Conception, wrongful birth e

wrongful life) e a responsabilidade médica cit., loc. cit., p. 68), a 1ª vez que, nos EUA, um tribunal superior acolheu um pedido de indemnização por “wrongful birth” foi em 1978 – coincidentemente ou não depois da aprovação da legislação que legalizou o aborto -, no caso Becker v. Schwarz, numa hipótese em que um médico não informou os progenitores dos perigos acrescidos de síndroma de Down em gravidezes de mulheres de idade avançada.

567 Nestes processos de wrongful pregnancy ou wrongful conception – que, em língua portuguesa, poderiam ser designados

por “de concepção indevida” -, independentemente da ocorrência ou não dum nascimento, «verifica-se uma gravidez indesejada em resultado de um erro médico (lato sensu), ou é concebido um feto com uma deficiência genética depois de os pais não terem sido informados – ou de terem sido incorrectamente informados – sobre os seus riscos genéticos» (PAULO MOTA PINTO in Indemnização em Caso de “Nascimento Indevido” e de “Vida Indevida” (“Wrongful Birth” e “Wrongful Life”) cit., loc. cit., p. 5). Aqui, «o dano consiste na concepção de uma criança em situações nas quais era supostamente garantido tal não acontecer, em virtude de uma interrupção da gravidez mal sucedida, defeitos do método anticoncepcional, uma esterilização mal efectuada, em suma, os casos em que se viola o que por vezes se chama de “direito dos pais ao planeamento familiar” ou direito à não reprodução» (VERA LÚCIA RAPOSO in As wrong actions no início da vida (wrongful Conception, wrongful birth e wrongful life) e a responsabilidade médica cit., loc. cit., p. 66).

568 Cfr., neste sentido, VERA LÚCIA RAPOSO in As wrong actions no início da vida (wrongful Conception, wrongful birth e

Diversamente, a indemnização por wrongful life continua a suscitar muita controvérsia, estando a jurisprudência dividida e havendo mesmo Estados que aprovaram legislação que exclui expressamente estas pretensões indemnizatórias569570.

Esta é, de resto, a posição prevalecente, dum modo geral, não apenas na jurisprudência norte-

americana, como na jurisprudência inglesa, alemã e holandesa: «de um modo geral, no direito

comparado, a posição dominante tende a reconhecer aos pais o direito à indemnização para reparar os danos, patrimoniais e não patrimoniais, por eles sofridos (wrongful birth), mas rejeita-se a indemnização pedida pela criança (representada pelos pais na menoridade) por ter nascido com malformações (wrongful life)»571.

C.II. A jurisprudência europeia

No documento Responsabilidade Civil Profissional (páginas 153-156)

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