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Contextualização Histórica dos Enjeitados

O processo da assistência pública portuguesa moderna encontra raízes nas políticas governamentais do último século da dinastia de Avis a partir de dois movimentos distintos — a reestruturação hospitalar e a criação das Misericórdias—, que depois se fundiriam criando uma matriz operativa que haveria de vigorar até ao século XX (Abreu, 2000).

Foi no ambiente de intervenções de Afonso V, continuadas por D. João II e D. Manuel I, que no Verão de 1498 surgiu em Lisboa a primeira Santa Casa da Misericórdia: uma confraria em tudo semelhante às suas congéneres e, como elas, assente em valores religiosos e num léxico assistencial exclusivamente caritativo que privilegiava o auxílio aos cativos, o primeiro grande sector de intervenção social das Misericórdias (Guimarães Sá, 1997; Abreu, 2000). A caridade estruturava-se em torno do cumprimento das catorze obras de misericórdia, pelas quais respondiam as Misericórdias (Guimarães Sá, 1997; Araújo, 2000). A criação desta em Lisboa abriu caminho à disseminação destas confrarias não apenas na metrópole mas também no império, tonando-se nas principais instituições de assistência em termos locais (Araújo, 2000, 2007; Guimarães Sá, 2001).

A formação destas instituições surgiu sob forte controlo eclesiástico, suprimido posteriormente, nas décadas finais do séc. XVI, deixando as Misericórdias do país totalmente subordinadas aos desígnios das elites dominantes (Abreu, 2000; Araújo, 2000). A sua integração nas Misericórdias colocava-as num dos círculos de poder local, onde se geriam importantes recursos materiais, que lhes acrescentavam prestígio e lhes possibilitavam gerir redes de clientela. Pertencer a uma Misericórdia significava a pertença a um grupo de poderosos. Esta era a compensação terrena mais imediata. A compensação espiritual seria feita mais tarde, depois da morte, precisamente no momento em que Deus julgaria, recompensando as esmolas e os serviços prestados aos pobres (Araújo, 2000; Guimarães Sá, 2001). Embora instituições laicas de proteção régia, estatuto alcançado no Concílio de Trento, as Misericórdias mantinham uma forte ligação à Igreja Católica (Abreu, 2000; Araújo, 2007),

não apenas por alguns dos seus irmãos serem seus membros, mas também pela forte ação desenvolvida em torno dos mortos (Araújo, 2007).

Criadas num contexto de profunda renovação espiritual, as Santas Casas conferiam grande significado à prática de enterrar os mortos e à oração pelos vivos e defuntos. O lugar que os rituais fúnebres ocupavam nestas instituições atravessa duas obras de misericórdia: uma espiritual e outra corporal, conferindo-lhe, desta forma, grande importância. Não foi por acaso que em algumas destas confrarias os irmãos declaravam ser o enterro dos mortos a sua principal função. Estes rituais de solidariedade estavam associados ao princípio de que a boa morte nunca seria um ato solitário e precisava do auxílio de todos, ajudando a alma a fortalecer-se perante a presença de Deus (Guimarães Sá, 1988b, 1997, 2001; Araújo, 2007).

Outra face da intervenção das Santas Casas revela-se na assistência às crianças, que colocava um problema fulcral, inerente às situações em que as crianças necessitavam de auxílio e ao próprio estatuto jurídico das mesmas. Por exemplo, existia uma ambiguidade entre as crianças expostas e as crianças ditas desamparadas (Guimarães Sá, 1997). As primeiras não tinham pais conhecidos e, segundo as Ordenações Filipinas, a sua criação estava a cargo das Câmaras. As segundas eram crianças cujo contexto familiar se tinha desintegrado e precisavam de assistência, normalmente, casos de pais conhecidos sem dinheiro para alimentar os filhos, casos de um ou dois progenitores mortos ou, ainda, crianças de rua sem enquadramento familiar. As Misericórdias admitiam alguma obrigação em ajudar crianças desamparadas mas não possuíam obrigação legal de acudir os expostos (Guimarães Sá, 1997; Araújo, 2000). Porém, entre as leis e a prática houve alguma diferença, visto que não podiam evitar ter de arcar com as despesas dos numerosos cadáveres de crianças que eram abandonadas nas cidades e que provavelmente correspondiam a expostos, nem podiam impedir que os pais das crianças a quem recusavam ajuda material as abandonassem (Guimarães Sá, 1997). Isto ocorreu sobretudo durante os finais do século XVI e os primeiros anos do século seguinte, período em que as Misericórdias passaram a ter à sua responsabilidade a criação de enjeitados (Guimarães Sá, 1997; Araújo, 2000). Assim, embora a criação dos expostos fosse inteiramente financiada pela Câmara da cidade, era à Misericórdia que cabia a sua administração (Guimarães Sá, 1985, 1988a, 1988b, 1997; Araújo, 2000), situação com resultados conflituais devido à falta de pagamento frequente por parte das Câmaras (Guimarães Sá, 1997).

O modo de receção destas crianças consistia num mecanismo – roda dos expostos ou roda dos enjeitados – utilizado para abandonar (“expor” na linguagem da época) recém- nascidos que ficavam ao cuidado de tais instituições de caridade. O dispositivo, em forma de

tambor ou portinhola giratória, embutida numa parede, era construído de tal forma que aquele que expunha o infante não era visto por aquele que o recebia, ajudando a manter o anonimato da mãe e aumentando as hipóteses de sobrevivência do bebé (por não aborto, infanticídio ou abandono noutro local) (Guimarães Sá, 1988a; Fonte, 2004; Franco, 2010). Esse modelo de acolhimento ganhou aceitação por toda a Europa, principalmente a católica, a partir do século XVI. A roda também foi muito usada em Portugal, com o surgimento das irmandades da Misericórdia, sendo a Santa Casa de Lisboa pioneira na utilização deste instrumento (Fonte, 2004; Franco, 2010). Como foi mencionado, essas irmandades eram dirigidas pelas principais famílias locais, que se uniam para tentar aliviar o sofrimento dos mais pobres. Elas acolhiam, batizavam, registavam e encaminhavam as crianças para as amas-de- leite contratadas (Guimarães Sá, 1988a; Fonte, 2004; Franco, 2010). Também as vestiam e enterravam num campo santo, caso viessem a falecer (Fonte, 2004; Franco, 2010).

Num quadro em que se modificavam rapidamente os conceitos de assistência e as atitudes face às instituições ou aos seus utilizadores, assume particular significado o facto de, no século XIX, se registar uma evolução do abandono anónimo, legal e completamente despenalizado jurídica e socialmente, materializado pela “roda”, para uma responsabilização dos pais em relação aos próprios filhos (Guimarães Sá e Cortes, 1992). Com efeito, a partir da segunda metade do século XIX crescem as vozes contra as “rodas” e esse descontentamento obtém expressão política no decreto de 1867, através do qual as “rodas” são extintas (Guimarães Sá, 1988a; Guimarães Sá e Cortes, 1992).

3. Material

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