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Proveniência e Caracterização da Amostra Estudada

A amostra, colocada sob foco neste estudo, provém duma intervenção de Arqueologia preventiva realizada pela Dryas Arqueologia Lda., em 2006, durante o projeto de instalação de uma Unidade de Cuidados Continuados de Saúde em Faro, integrada na Rede Nacional de Saúde (Neves et al., 2010). No decorrer do acompanhamento arqueológico da obra, foi identificada uma necrópole Moderna e Contemporânea, localizada nos edifícios e logradouro da Santa Casa da Misericórdia de Faro (figura2), inserida no contexto da ação caritativa desta instituição (Corga e Ferreira, 2010; Neves et al., 2010).

Figura 2. Enquadramento do edifício da Santa Casa da Misericórdia na malha urbana da cidade

de Faro (Corga e Ferreira, 2010: 517).

A atividade assistencial do Hospital de Todos os Santos terá ocupado o local a partir do século XVI. O espaço sepulcral (figura 3), ativo até ao século XIX, seria entretanto reorganizado e alargado quando as Misericórdias assumiram o monopólio da administração da caridade e procederam à reformulação do hospital e à criação dos recolhimentos femininos (Corga e Ferreira, 2010; Ferreira et al., 2005). Assim, a intervenção caritativa da Misericórdia deixa de dizer respeito apenas à 7ª obra corporal de caridade (o enterro dos finados), mas passa também a articular com os poderes públicos (que lhe delegaram a administração de importantes dispositivos, como a esmola, os recolhimentos e as rodas dos expostos) e os seus esforços de regulação da pobreza (Corga e Ferreira, 2010).

Figura 3: Planta dos edifícios da Santa Casa da Misericórdia com a localização da necrópole

(adaptado de Corga e Ferreira, 2010: 520).

Apesar da intensa ocupação e das múltiplas reutilizações e cortes registados, numa lógica que não respeita necessariamente os enterramentos mais antigos, foi possível escavar e registar 81 inumações de indivíduos de diferentes faixas etárias, cuja distribuição espacial não obedece a nenhuma organização racionalizada, atualmente percetível (Corga e Ferreira, 2010).

Em todos os enterramentos intervencionados na necrópole, os sujeitos foram colocados diretamente no covacho aberto na terra, em decúbito dorsal e envoltos num sudário. Apesar de ser evidente o curto intervalo entre alguns enterramentos, não se identificaram quaisquer vestígios de inumações coletivas em fossas tipo vala comum. Depositados sem caixão, os mortos eram acompanhados por ornamentos relacionados com o vestuário (alfinetes, fios prateados), objetos de cariz religioso (contas em osso) e alguns vestígios de prováveis numismas (Corga e Ferreira, 2010).

De um modo geral, as características deste espaço e a sua relação com o edificado remetem para uma necrópole de utilização intensiva, onde se diferenciam pelo menos três fases de constituição da necrópole: 1) três enterramentos de adultos em orientação canónica cristã; 2) um grande ossário, inumação de indivíduos de várias idades e ambos os sexos, com orientação Sul-Norte, possivelmente em obediência ao eixo maior de terreno disponível por pressão urbana e rentabilização da área; 3) 51 inumações exclusivamente de indivíduos não adultos, sob a mesma orientação Sul-Norte (Corga e Ferreira, 2010). Esta

última fase merece uma atenção particular, visto estarmos perante não adultos com idades à morte inferiores aos 12 anos, cuja maioria se encaixa nas faixas etárias abaixo dos 2 anos. Estudos preliminares não exaustivos, com o objetivo de avaliar o potencial científico da amostra, procuraram confirmar a distribuição etária dos indivíduos definida em campo e identificar evidências de lesões, sem descriminar frequências nem relacionar com patologias anteriormente determinadas no meio científico. Estes revelaram padrões de crescimento limitado, de relação estreita com evidências de carácter patológico, sobretudo as indicativas de carências nutricionais e de contacto com agentes infeciosos (Corga e Ferreira, 2010; Ferreira et al., 2005). Tais lesões verificaram-se em variados ossos do crânio (frontal, parietal, occipital, temporal, esfenoide e mandíbula), nos ossos de maiores dimensões do esqueleto apendicular (úmero, fémur, tíbia, etc.) e nos ossos da bacia (como o ilium).

De notar, ainda, o estado incompleto da maioria dos esqueletos, fruto não só da fragilidade biológica própria de restos mortais tão jovens e a sua consequente dificuldade de preservação, como também da própria manipulação dos esqueletos no contexto de inumações posteriores. Ainda que o decúbito dorsal perdure como a posição de depósito mais praticada, são raros os casos de decúbito lateral direito (indivíduos 11 e 26), frequentemente com difícil visualização das posições do crânio e dos membros superiores e inferiores, por fragmentação parcial ou total dos mesmos. Nos casos passíveis de identificação da posição do crânio, todos se encontravam centrados, sendo exceção os indivíduos 43 e 58, cujos crânios se encontravam dispostos sobre a face esquerda. Relativamente aos membros, a variação é maior, quando visível o posicionamento, contudo denota-se nos superiores uma tendência para serem cruzados sobre o abdómen e nos inferiores o mesmo para forma fletida, sobre um dos lados (Corga e Ferreira, 2010). Esta última disposição era expectável tendo em conta a elevada frequência de recém-nascidos ou idades próximas na amostra, fase em que as crianças ainda apresentam alguma dificuldade na distensão dos membros, após 9 meses de posição fetal. A mencionada orientação Sul-Norte, surge com exceções nos casos dos sujeitos 13, 15, 20, 30, 31, 34 (Sudoeste-Nordeste), 36 (Sudeste-Noroeste) e 29 (Norte-Sul), possivelmente por pequenos erros durante o tratamento funerário.

A nível de contexto arqueológico, foram notadas uma reduzida frequência e escassa diversidade de espólio funerário, associadas à ausência de vestígios de mobiliário fúnebre. Apenas foram identificados, durante o levantamento das ossadas focadas neste trabalho, alguns botões nos indivíduos 1 e 4, numismas no 29, vestígios de alfinete no 31, alguma cerâmica nos 3 e 58, utensílio em pedra no 63 e moeda no 64. Várias peças ósseas, em 6 esqueletos, apresentavam áreas com uma coloração esverdeada, típica de contacto

prolongado com metal (exemplo na figura 4). Estes dados constituem observações relevantes para a caracterização socioeconómica dos indivíduos aqui enterrados (Corga e Ferreira, 2010). Neste sentido, uma abordagem paleobiológica, fortemente integrada em fontes históricas e registos arqueológicos, da população inumada é essencial para uma visão fundamentada acerca do funcionamento e evolução da ação caritativa da Misericórdia.

Figura 4: Coloração esverdeada na extremidade distal da diáfise do rádio direito do indivíduo

16 (norma anterior).

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