• Nenhum resultado encontrado

4. METODOLOGIA

4.1 Contextualização do objeto empírico

Nas últimas décadas, com a popularização da internet banda larga e da internet móvel, as plataformas digitais têm ocupado um espaço cada vez maior na vida dos sujeitos, marcando profundamente as formas de produção e consumo da cultura no contexto contemporâneo. Em nossa história recente, pudemos vivenciar e observar a ascensão de diversas redes sociais online, que trazem propostas de reconfiguração dos modos de viver e experimentar o mundo.

O fenômeno das redes sociais online pode ser situado no contexto da Web 2.0, terminologia cunhada por Tim O’Reilly em 2006 para descrever uma lógica de navegação online própria de meados dos anos 2000, em que os sites deixaram de apresentar dinâmicas informativas unilaterais e passam a estimular a arquitetura da participação, valorizando o engajamento dos usuários entre si e com os conteúdos. No entanto, para além das nomenclaturas que demarcam fases referentes aos usos e apropriações na internet nos últimos anos, a ação de engajar-se em ambientes virtuais por meio da produção ou replicação de conteúdos parece ter se consolidado como uma prática cultural.

O YouTube foi criado e aprimorado nesse espaço-tempo cultural e, hoje, aparece como a segunda plataforma digital mais acessada do mundo, sendo a preferida entre os

brasileiros42. Burgess e Green (2009) apontam como principal motivo para a ascensão do YouTube a mudança de sua lógica de funcionamento inicial, representada por seu primeiro slogan (Your Digital Video Repository), em que os usuários viam e utilizavam o site como um depósito de vídeos a serem compartilhados em pequena escala e manualmente, para uma outra lógica que permaneceu até 2012, também exemplificada em seu slogan: “Broadcast Yourself”.

No modelo do broadcast yourself, segundo Burgess e Green (2009), a plataforma conquistou popularidade a partir da viralização de vídeos caseiros hospedados no site e, posteriormente, ao ser utilizada como forma de distribuição de conteúdo das principais empresas de mídia do mundo. Sendo assim, é possível afirmar que a mudança da lógica de funcionamento do YouTube possibilitou que qualquer pessoa com acesso à internet, com os mais variados propósitos e munida de qualquer tipo de câmera, pudesse compartilhar seus vídeos com pessoas de várias partes do mundo.

Também por esse histórico, Burgess e Green (2009, p. 13) afirmam que o YouTube é uma força a ser levada em consideração no contexto da cultura popular contemporânea, se tornando “útil para a compreensão das relações ainda em evolução entre as novas tecnologias de mídia, as indústrias criativas e as políticas da cultura popular”. Os autores defendem, ainda, que o potencial democrático de participação cultural possibilitado pelo YouTube é uma janela que dá a ver os tensionamentos políticos e econômicos que atravessam a nossa sociedade. Ao convocar e dar visibilidade para diferentes discursos, valores e práticas culturais que não têm – ou não teriam – vez em outros espaços, o YouTube pode facilitar a emergência de reivindicações e pautas das chamadas minorias e de grupos sociais que, muitas vezes, ficam à margem das mídias tradicionais. Exemplo disso são as estatísticas divulgadas pelo YouTube Insights em 201743, que mostram que a busca pelo termo “Feminismo” sofreu um aumento de 56% em relação ao ano anterior, bem como os termos “LGBT”, que cresceu 208% e “Moda Plus Size”, que cresceu 78%.

Para este trabalho, nos interessam particularmente os vídeos que tratam de “Moda, Beleza e Estilo de vida”, que, segundo dados do mesmo estudo do YouTube Insights, estão no topo das buscas no site, sendo visualizados por 76% das brasileiras com acesso à internet. E, mais especificamente, o conteúdo voltado para o cuidado com os cabelos crespos e cacheados, que, segundo o estudo, é um dos assuntos mais buscados pelas mulheres cacheadas com a

42 Segundo o Global Digital Report publicado pela agência We Are Social em parceria com a plataforma de mídia HootSuite, em janeiro de 2019. Disponível em: < https://wearesocial.com/blog/2019/01/digital-2019-global-internet-use-accelerates>. Acesso em janeiro de 2019.

43Moda e Beleza. YouTube Insights, 2017. Disponível em: < https://www.thinkwithgoogle.com/intl/pt-br/youtubeinsights/2017/moda-e-beleza/>. Acesso em junho de 2019.

finalidade de aprender mais sobre técnicas, tratamentos e produtos que auxiliem nesse processo.

No cenário atual, em que muito se fala sobre inclusão de minorias em produtos comunicacionais, sobretudo na publicidade de cosméticos, essa demanda tem produzido resultados em alguma medida. Como demonstrado no segundo capítulo, grandes marcas do segmento estão lançando produtos específicos para o cabelo crespo e cacheado e produzindo campanhas estreladas por mulheres que não atendem ao padrão beleza hegemônico, ou seja: mulheres negras, gordas, trans, pessoas com deficiência, dentre outras identidades invisibilizadas que, no entanto, conquistaram visibilidade nas redes sociais online, sobretudo no YouTube.

Nesse contexto, é possível afirmar que os modos de representar e falar do cabelo crespo e cacheado em campanhas publicitárias também estão sofrendo transformações, posto que, como vimos anteriormente, características negativas tem sido historicamente associadas aos cabelos de pessoas negras, enquadrando-os como um problema a ser resolvido pela indústria de cosméticos. Não são raros os exemplos de campanhas publicitárias de produtos capilares que prometem “domar” os fios crespos e cacheados, como demonstramos no segundo capítulo, ou de maquiagens e cremes que prometem embranquecer ou clarear a pele de quem os usa.

Por isso, estudar as formas de interação discursiva construída entre as marcas e a trajetória das mulheres escolhidas para representá-las nesses espaços, assim como os embates entre valores e representações de mulher negra e de cabelos crespos e cacheados que tomam forma na publicidade de cosméticos femininos mostra-se relevante para o campo da comunicação. Nosso trabalho tem como intenção demonstrar, a partir da análise dos cruzamentos discursivos e imagéticos presentes nos vídeos analisados, duas outras questões importantes para o campo: a verificação da consolidação de novas estratégias de marketing nos ambientes virtuais e o fortalecimento de perspectivas críticas acerca da (re)configuração de padrões estéticos femininos – sobretudo as representações de mulher negra historicamente construídas e suas atuais pertinências ou incongruências.

Nesse sentido, acreditamos que o movimento de compartilhamento de um padrão de beleza acontece por meio da circulação de discursos, que é um fenômeno primordialmente social. Da mesma forma que podemos definir o discurso como resultado de interações sociais, também podemos defini-lo como um elemento fundamental da configuração dessas relações comunicacionais estabelecidas entre indivíduos (JAURÉGUI; VIEIRA, 2014).

Nossa proposta situa a compreensão dos discursos a partir de uma visada foucaultiana, onde, para além de entender os significados que emergem das palavras, investigamos os processos nos quais “os discursos se formam ao longo do tempo a partir de inúmeras interrelações pontuais que se estabelecem entre os enunciados e entre eles e seus referentes” (JAURÉGUI; VIEIRA, 2014, p. 73). Portanto, para compreender o discurso hegemônico em torno da beleza feminina, que determina quais as características fenotípicas são desejáveis ou não, precisamos entender, para além de quem o produz, quais são os sintomas sociais que permitem a materialização de tal discurso nas práticas comunicacionais que o reafirmam, a exemplo do racismo.

Deste modo, consideramos o estudo da publicidade de cosméticos como um lugar frutífero de compreensão das questões raciais que permeiam o discurso do belo. Ao optarmos por centralizar a pesquisa nas campanhas publicitárias de produtos para cabelos crespos e cacheados essas questões podem aparecer de maneira ainda mais forte, pois se trata de dar visibilidade a uma pauta política de valorização da estética negra que tem novamente os cabelos crespos e cacheados como desejáveis, e que desestimula o uso de técnicas e produtos para alisá-los.