• Nenhum resultado encontrado

3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA

4.2. Contextualizando o projeto Bom Abrigo e o estranhamento no bairro

A partir do depoimento de um dos entrevistados16 – confirmado por outras entrevistas – foi possível concluir que no bairro Saco Grande o projeto Bom Abrigo foi executado pela prefeitura municipal sem o conhecimento dos moradores. Os moradores não foram consultados pelos órgãos competentes para uma discussão prévia sobre a construção do conjunto habitacional na localidade e só ficaram sabendo do fato quando as obras já estavam em andamento. A partir desse momento, o Conselho dos Moradores do Bairro Saco Grande (COMOSG)17 procurou os órgãos competentes para obter maiores informações sobre o projeto. Entretanto, como já era um fato consumado, a alternativa adotada pelo COMOSG foi negociar com a prefeitura que parte das casas

15 Os nomes dos entrevistados são fictícios, doravante serão grafados em itálico.

16 Daniel foi um dos entrevistados da pesquisa, cuja entrevista foi realizada em 14/01/2004.

17 O COMOSG foi inaugurado em 1980. No capítulo 5 faremos uma breve caracterização sobre esse

(cerca de 40 casas)18 fossem destinadas para moradores do bairro. O conselho dos moradores se encarregou de realizar um cadastro das famílias interessadas e procedeu a entrega das chaves mediante sistema de sorteio. Dessa forma, na composição do conjunto habitacional, grande parte dos moradores veio de outras localidades do município de Florianópolis, principalmente de Via Expressa19, e outra parte foi oriunda da própria localidade.

De acordo com Daniel, Beatriz20 e Gerusa21, os novos moradores vieram para o conjunto habitacional com várias promessas de auxílio por parte da prefeitura, de que receberiam apoio durante o processo de integração ao bairro, de que haveria escola e transporte para as crianças, capacitação profissional para os adultos, entre outras. Todavia, até o momento da transferência das famílias para o conjunto habitacional em 2000, a escola e a creche não haviam sido concluídas e o posto de saúde do bairro não tinha condições de atender o aumento da demanda22.

Os novos moradores foram residir no local na esperança de uma vida melhor, entretanto eles já eram rotulados (cf. Becker, 1977) pela população florianopolitana como “favelados” e viviam em um espaço já segregado. Desta forma, quando chegaram no bairro foram estigmatizados (cf. Goffman, 1988) pelos moradores da localidade, o que contribuiu para um processo de estranhamento. A falta de informação e discussão por parte dos órgãos competentes acarretou em um mal-estar entre os moradores do bairro que, sem maiores conhecimentos, sabiam apenas que pessoas vindas da Via Expressa seriam seus novos moradores e vizinhos23.

Concomitante a isso, ocorreram vários casos de violência no bairro, como mortes24 e situações de agressões na escola25, que demandaram o aumento do

18 Segundo Daniel, o conselho dos moradores negociou com a prefeitura 40 casas, isto equivale a

cerca de 20% do total das 205 residências.

19 Via Expressa é um rótulo dado para algumas comunidades como a Chico Mendes, Nossa Senhora

da Glória e Novo Horizonte situadas no bairro Monte Cristo. Essas comunidades estão localizadas às margens da BR 282, isto é, via que dá acesso à Ilha de Florianópolis. Além de a denominação ter uma associação com a localização espacial dessas comunidades, Via Expressa é também uma representação, geralmente desqualificante, construída pela população florianopolitana sobre essas comunidades, que estigmatizou seus moradores como “favelados”.

20 Entrevista realizada com Beatriz em 21/11/2003. 21 Entrevista realizada com Gerusa em 24/11/2003. 22 Cf. entrevistas com Daniel, Beatriz e Gerusa.

23 Cf. entrevista realizada com Gerusa em 24/11/2003 e com Daniel em 14/01/2004.

24 Segundo os entrevistados jovens e adultos, ocorreram três execuções de jovens no conjunto

habitacional no período de 2002 a 2004. Conforme informação da Polícia Militar obtida no posto policial local, ocorreram no bairro Saco Grande II nesse mesmo período dez mortes, sendo que oito decorrentes de armas de fogo.

25 Segundo uma informante, a polícia foi acionada por várias vezes devido a agressões na escola. Na

policiamento no local. Esses fatos foram divulgados na mídia e, dessa forma, o bairro passou a ser representado como um local violento. Eram comuns entre os moradores já estabelecidos no bairro comentários, geralmente desqualificantes, sobre os moradores das “casinhas da Ângela”26.

Iniciamos a pesquisa em setembro de 2002 e Alice27 passou a ser o principal elo de ligação entre a pesquisadora e os moradores do bairro. Através da informante tive a oportunidade de conhecer e estabelecer contato com outros membros da comunidade. Na ocasião da realização do estudo exploratório, fui informada por Alice que haveria uma atividade festiva para inauguração das novas salas do COMOSG. Nessa ocasião, pude estabelecer os primeiros contatos com as pessoas do bairro, conhecer moradores, voluntários que desenvolviam atividades com crianças e jovens – por exemplo, professoras, a diretora de uma escola, participantes do COMOSG – assim como algumas lideranças do conjunto habitacional.

Os contatos iniciais, portanto, ocorreram com pessoas adultas28 moradoras do

bairro e do conjunto habitacional. Naquele momento, elas relataram alguns problemas da comunidade, como a relação com os moradores do conjunto habitacional, o aumento da violência e da criminalidade – roubos, tráfico de drogas, mortes, entre outros – bem como enfatizaram suas preocupações com os jovens “problemáticos” daquele local29.

Desde o início da pesquisa, procuramos entender de que forma os jovens vivenciavam essa situação de segregação e estranhamento que os adultos faziam referência. Procuramos investigar ainda o tipo de respostas ou de ações desenvolvidas pelos jovens adolescentes moradores do bairro e do conjunto habitacional diante das situações de estranhamento do tipo estabelecidos-outsiders.

A seguir, apresentaremos uma descrição do bairro e dos conjuntos habitacionais, visando delinear as relações de conflito estabelecidas em decorrência da implantação do Projeto Bom Abrigo.

26 Grande parte da população local e municipal representa o Projeto Bom Abrigo com essa expressão,

pois foi a então prefeita do município Ângela Amim que implementou esse projeto.

27 Alice foi minha primeira informante e fui apresentada a ela por minha ex-coordenadora de pesquisa

no NPMS, professora Ilse Scherer-Warren.

28 Nessa atividade festiva percebi uma presença maior de adultos e crianças e menor de jovens

adolescentes.

4.3. CARACTERIZANDO O BAIRRO SACO GRANDE E OS CONJUNTOS

Documentos relacionados