• Nenhum resultado encontrado

Na obra de Marina Colasanti, o conto de fadas é o gênero que os pesquisadores destacam como responsável por inovações tanto temáticas quanto estruturais. Para Perdigão (1993, p.2/4), “o trabalho literário infantil de Marina Colasanti se insere no grupo de contos maravilhosos” e realiza uma “irreverência reverente” em relação aos contos tradicionais. A irreverência, nesse caso, diz respeito

ao olhar que não teme, mesmo conhecendo e respeitando a tradição, introduzir modificações nos contos maravilhosos, tanto a nível do narrado quanto da narração: a recorrência de protagonistas femininas, a sinteticidade narrativa, a opção pela linguagem poética. Na verdade, é uma irreverência reverente, uma vez que não traz em si o olhar irônico e paródico que caracterizará muitos textos atuais que se debruçam sobre a tradição dos contos maravilhosos a fim de usá-la como alegoria para falar de situações atuais (PERDIGÃO, 1993, p.4).

A ruptura com os costumes de uma época que, conforme informado por López (2009), não valorizava a fantasia nos textos voltados para crianças demonstra a inovação temática da obra da autora. A pesquisadora afirma que “Marina Colasanti aceitou o desafio implícito de um contexto social que bania a fantasia e que fazia tudo o possível por mostrar às crianças a realidade tal qual era, negando-lhes o direito de navegar pelo irreal” (LÓPEZ, 2009, p.420), e trouxe as fadas de volta à sociedade, com todos os benefícios que o simbólico provoca no desenvolvimento humano, em especial no desenvolvimento das crianças.

A renovação estrutural vem da mudança da concepção de texto estabelecida por Marina. Segundo Góes (1998 apud DIAS, 2007, p.102), os contos de Marina Colasanti “são resgates de formas em paráfrases da estrutura dos contos de fadas”, sobretudo porque têm um autor definido.

Nos trabalhos citados anteriormente, os pesquisadores buscam, de início, classificar os contos de Marina Colasanti como contos maravilhosos ou contos de fadas. Em seguida, retomam, com base na observação estrutural e nas análises realizadas, os elementos da narrativa, como espaço, tempo, personagens, problema, foco narrativo, ações, clímax e desfecho.

Em Oliveira (2007), os elementos básicos da narrativa estão organizados em um gráfico (Figura 1) que ilustra a ordem em que são introduzidos nas histórias e a complicação crescente por que o problema inicial passa, até atingir o clímax. Em nossas descrições dos elementos da narrativa baseadas na perspectiva de pesquisadores da área de Literatura, seguimos a ordem dos elementos como proposta na figura que segue.

Figura 1 – Elementos básicos da narrativa (OLIVEIRA, 2007, p. 91)

Dessa forma, o tempo é o primeiro elemento que destacamos nos contos de fadas da autora. Conforme Perdigão (1993, p.114) observa,

embora não ocupando um papel de destaque na maioria das narrativas, o tempo na obra maravilhosa de Marina Colasanti é trabalhado de acordo com a necessidade do conto, podendo servir somente como pano de fundo, virar protagonista ou vir marcado regularmente, corporificando um ritmo gradual na vida.

Beluque e Fernandes (2011), assim como Gomes (2012), analisam a passagem de tempo no conto A moça tecelã. Para os primeiros, “a passagem do tempo pode significar o conflito central que envolve o conto, que corresponde à cena inicial simples e tranquila da protagonista, seguida pela alteração do ritmo de vida com a chegada do companheiro e, novamente, o retorno à tranquilidade no final do conto” (BELUQUE; FERNANDES, 2011, p.178). Para o segundo, “na perspectiva estética, o leitor percebe que o espaço e o tempo da narrativa mudam a partir da chegada da companhia masculina” (GOMES, 2012, p.20).

O espaço é o segundo elemento a caracterizarmos. Perdigão (1993, p.114) nota que, nos textos de Marina Colasanti, “podem inexistir quaisquer marcas espaciais; ou o espaço pode vir referido concretamente, com detalhes na descrição; ou as marcas podem apontar para um espaço totalmente maravilhoso”. Essa mesma variação é comentada por Santa Maria (2006, p.67-68), para quem ora há “descrição longa e pormenorizada do ambiente”, ora “a descrição do ambiente é sucinta, indicando o essencial para compor o cenário”. Beluque e Fernandes (2011) constatam ainda que a maioria dos contos de fadas de Marina Colasanti preserva o espaço indefinido, assim como nos contos tradicionais.

Os personagens correspondem ao terceiro elemento que destacamos. A presença de protagonistas femininas é um diferencial entre os contos de fadas da autora e os contos tradicionais, “cujos personagens principais, de forma geral, são masculinos” (MENDONÇA, 2000, p.38). A predominância de personagens femininas como protagonistas e a presença de discussões deliberadas sobre a submissão da mulher ao controle do homem são observações

Tempo Espaço Personagens Evolução do problema Problema Clímax Desfecho

evidenciadas por Mendonça (2000), Silva S. A. (2006), Pedrosa (2008) e Dodo (2010). Segundo os pesquisadores, essas personagens, às vezes, possuem características especiais, como poderes sobrenaturais, controle da natureza, domínio sobre a morte e sobre transformações físicas.

A representação de personagens femininas com características especiais, para Mendonça (2000), indica que as mulheres reais ainda não têm um papel de destaque na sociedade. Para ela, “se há a necessidade de, na ficção, colocar a mulher em situação especial, ligada a uma ideia de poder é porque as mulheres reais estão longe dessa condição” (MENDONÇA, 2000, p.23).

Munida dos símbolos da literatura universal, Marina cria “mulheres que, ora aparecem parodicamente construídas sob a égide da ideologia e do poder dominantes, ou seja, numa perspectiva a partir do olhar masculino sobre o corpo feminino; ora aparecem como transgressoras dos padrões de conduta permitidos socialmente” (GOMES, 2007, p.163) e discute o feminino com seu público leitor.

As discussões em Pedrosa (2008) revelam a importância das personagens femininas na estrutura da narrativa e levam em consideração tanto a montagem da personagem e os estereótipos presentes nessa caracterização, quanto a criação dessa personagem “pelas mãos de uma mulher” (PEDROSA, 2008, p.28). A pesquisadora afirma que Marina Colasanti aproveita-se da estrutura típica da narrativa como estratégia capaz de demonstrar os signos utilizados “ao longo das gerações [mais como] como formas de ocultamento do feminino do que uma reafirmação do imaginário falocêntrico” (PEDROSA, 2008, p.28) e com isso acaba criando a subversão.

Um fato que assemelha a obra da autora aos contos tradicionais é a predominância de personagens adultos. Nas palavras de Santa Maria (2006, p.65),

assim como nos contos de Charles Perrault e dos Irmãos Grimm, há personagens pertencentes ao mundo dos adultos e de jovens que se preparam para adentrar na maturidade, não havendo referências às crianças, fato que aproxima os contos de Marina com os da antiguidade, que também privilegiam adultos e jovens, relegando a presença das crianças a um ou outro conto.

A predominância de personagens adultos nos contos de fadas de Marina Colasanti pode ser um dos motivos pelos quais seus textos agradem à parcela de leitores com mais idade. A abordagem de sentimentos humanos como medo, solidão, desejo, amor, os quais interessam a adultos e crianças (OLIVEIRA, 2013), também pode despertar o interesse de diferentes públicos pelo universo mágico dos contos de fadas da autora.

Para Santa Maria (2006), o interesse do adulto por uma obra supostamente direcionada ao público infantil vem das origens do próprio conto de fadas ou dos contos maravilhosos.

Como observa a pesquisadora, “esses contos, originados e transmitidos, primeiramente, pela oralidade, correspondem a uma necessidade de contar histórias existentes em todos os tempos” (SANTA MARIA, 2006, p.63-64), e não é diferente nos dias atuais.

A existência de personagens não nominadas (SANTA MARIA, 2006), ou tipos, conforme classificação de Cândido (2005), também motiva leitores mais experientes. A construção de tipos pode ampliar a identificação do leitor com a construção narrativa e já foi usada por outros autores literários, como José Saramago, em Ensaio sobre a cegueira, Guimarães Rosa, em alguns contos de Primeiras estórias (por exemplo, A terceira margem do rio) e Manuel Antônio de Almeida, em Memórias de um sargento de milícias.

Outra característica que aproxima os contos de Marina Colasanti dos contos tradicionais é que, em ambos, “a construção das personagens [...] se dá de forma simples e direta” (BELUQUE; FERNANDES, 2011, p.176). Apesar disso, as personagens são geralmente retratadas como “intensas, passionais, determinadas quanto aos seus objetivos e sempre em busca de soluções para seus conflitos existenciais” (DODO, 2010, p.23).

O problema, a nosso ver, reside no quarto elemento da narrativa. Nos trabalhos consultados, os pesquisadores, de modo a identificar o conflito presente nos contos de fada de Marina Colasanti, ora se apoiam em uma questão temática voltada às discussões sobre o feminino, ora se embasam em teorias de classificação do gênero textual, o que os leva a discussões sobre as diferenças entre contos maravilhosos e contos de fadas. Tomando como base teórica Propp (2001[1928]), os pesquisadores indicam que o desejo de obter algo, como um amor, por exemplo, é um fator motivacional para o desenvolvimento das narrativas colasantianas e descrevem os caminhos percorridos pelos personagens, identificando as funções conforme os estudos do teórico.

O desfecho é o quinto elemento que destacamos. Como observa Santa Maria (2006), quando lemos um conto de fadas tradicional, geralmente antecipamos um final feliz, característica comum desses textos. No entanto, na obra de Marina Colasanti, podemos ser surpreendidos, uma vez que a autora utiliza, na maioria de seus contos, finais inusitados que acabam por levar o leitor a uma reflexão sobre os temas abordados em suas histórias.

Por fim, destacamos o último elemento, que envolve narrador e foco narrativo. Santa Maria (2006) ressalta que narrador e foco narrativo aproximam a obra da autora dos contos antigos, uma vez que, em ambos os casos, é comum termos um narrador onisciente e o foco narrativo em terceira pessoa, com pouco espaço para os diálogos. Um ponto divergente entre a obra de Marina e os textos tradicionais é que, naquela, “o narrador dá início à trama focalizando a personagem já nos meandros dos acontecimentos” (SANTA MARIA, 2006,

p.66), nestes, além da abertura clássica Era uma vez, há, no início, a apresentação dos personagens.

Além dos elementos da narrativa, a linguagem e os intertextos são aspectos teóricos que recebem destaque nas pesquisas que consultamos sobre os contos de fadas de Marina Colasanti. Para os pesquisadores, a maior parte dos textos da autora é em prosa; no entanto, o cuidado com a linguagem, com a escolha das palavras, com a construção sintática das orações e com as figuras de linguagem faz com que seus textos se aproximem muito de poemas. Nas palavras de Silva S. D. (2006, p.69), “nos arredores dos contos breves de Marina Colasanti, ronda a poesia, na conjugação cuidadosa das palavras, construindo sempre imagens próprias do gênero lírico [...] e construções sintáticas que, embora em forma de prosa, mais lembram versos”. Santa Maria (2006) reforça o tom poético dos textos em prosa. Para ela, “nos contos de Marina Colasanti, o narrador constrói o seu discurso valendo-se dos recursos da linguagem poética. O texto em prosa estrutura-se com frases curtas, ponteadas com rimas e ritmo próprios do discurso poético em versos” (SANTA MARIA, 2006, p.66).

Essa característica dos textos colasantianos também está presente entre as constatações de Dias (2007, p.105), para quem os contos têm “uma linguagem bem construída, sendo o recurso da repetição marca importante para reforçar a construção dos sentidos por parte do leitor”. Nessa direção, Pedrosa (2008, p.12) destaca “a poeticidade da linguagem e a forma como, aos poucos, se dá a inserção de elementos maravilhosos”; Medeiros (2009, p.13) assinala que, “numa visada geral, a sua escrita é narrativa, mas também é poética”; Rocha (2010, p.10) observa “a presença do maravilhoso tecido junto à poeticidade de suas narrativas”; Beluque e Fernandes (2011, p.177) realçam “a forma de utilização da linguagem, marcada pela aguçada sensibilidade no manejo com as palavras” e Gomes (2012, p.21), salienta que “do título do conto à metáfora da tecelã, percebe-se uma estrutura literária polifônica e plurivocal”.

Outro aspecto teórico abordado por diferentes pesquisadores é a intertextualidade. Sobre a utilização de elementos de textos tradicionais – como mitos, contos maravilhosos e lendas – na composição das narrativas, os estudiosos chegaram a um certo consenso. Para eles, o estilo próprio de Colasanti é justamente a reconstrução às avessas dos elementos tradicionais “por meio da inserção de questionamentos e de dilemas psicológicos enfrentados pelo homem contemporâneo” (ROCHA, 2010, p.10).

Marina Colasanti consegue, com o uso dos mitos, mostrar que os temas abordados por civilizações há milhares de anos ainda fazem parte de nossas vidas, “como se ela usufruísse do passado para relatar o real presente” (RODHEN, 2012, p. 332). Temos, com isso, a

contemporaneização do mito ancestral e sua modernização, uma vez que, com a “nova roupagem, ele se torna nova narrativa simbólica, não com os fins da primeira, que seriam os de proferir uma visão de mundo adequada a sua época e que representaria uma realidade pré- científica” (FACCIN, 2013, s.p.), mas com finalidades estéticas e ideológicas contemporâneas.

Faccin (2013) atribui a sensibilidade estética e a presença de um conteúdo literário universal na obra de Marina Colasanti à trajetória geográfica da autora, suas mudanças para países distintos. As leituras realizadas ao longo de sua vida certamente contribuíram para a presença de um conteúdo literário universal em suas obras, ela mesma admite usar fragmentos desses textos em suas histórias, em uma construção intertextual e, algumas vezes, intersemiótica e sinestésica (COLASANTI, 2014, 2012a).

Silva S. D. (2006, p.69) observa que a intertextualidade que permeia toda a obra da autora “exige do leitor uma vasta leitura”. Nessa direção, Rodhen (2012, p.334) afirma que “Marina Colasanti, para incorporar suas temáticas contemporâneas, utiliza o recurso da intertextualidade e nos mostra o quanto o passado, presente e futuro literário se entrecruzam pelas narrativas”. Descobrir o modo como isso acontece nas narrativas colasantianas é, certamente, um desafio para leitores e pesquisadores da área.

Nesta seção, caracterizamos os contos de fadas de Marina Colasanti conforme estudos realizados no campo da Literatura. Verificamos o predomínio da temática feminina nos contos da autora e a atenção maior dos pesquisadores com a descrição e com a análise das personagens femininas. Notamos que a comparação com contos de fadas tradicionais é comum na caracterização estrutural dos contos de fadas da autora, e que, em todos os trabalhos consultados, os pesquisadores se baseiam nos elementos da narrativa para proceder às análises. Na última seção deste capítulo, afastamo-nos da obra da autora para tratar de características mais gerais dos contos de fadas, embasados ainda em pesquisas da área da Teoria Literária e da Literatura. Dessa forma, buscamos os subsídios necessários para a análise que empreenderemos mais adiante.