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CAPÍTULO II: A REPRESENTAÇÃO TEATRAL NA OBRA DE MICHAEL HANEKE

2.3. BRECHT EM HANEKE

2.3.3. Contra Catarse e Espetáculo

Na introdução do recente livro dedicado a Michael Haneke, Roy Grundmann (2010) assinala o principal ponto de convergência e divergência entre estes dois autores, Haneke e Brecht. Por um lado, Brecht luta contra a dramática aristotélica e os convencionalismos do teatro de sua época, enquanto Haneke, por outro, pretende desbancar o mainstream e a produção de filmes hollywoodianos. Apesar de existir uma variação do tempo em que se realizam e do campo de ação para o qual foram criadas ambas as propostas, através da questão antes exposta podemos observar que existe uma intenção semelhante entre elas.

Em “Escritos sobre teatro” Brecht (2004) introduz o conceito de dramática não aristotélica para definir um modelo dramático completamente oposto ao proposto por Aristóteles em sua Poética, e que se fundamenta essencialmente na não identificação do espectador com os personagens representados. O princípio da tragédia grega, ao qual se viu aferrada a maior parte da tradição teatral, consiste em um fundamento ético-estético

28 Entrevista de Michael Haneke em Cannes, em 26 de maio de 2009. Disponível em:

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baseado na imitação das paixões humanas como parte essencial da representação. Para Aristóteles, o objetivo da tragédia se fundamenta em um dispositivo social: a catarse29 (kátharsi). A catarse aqui é entendida como o único meio possível para purificar os pecados graças ao sentimento de compaixão que esta produz e que supõe uma aprendizagem sobre o fato representado. Por esta razão, a mimese se apresenta como um elemento necessário para a dramática aristotélica, pois sem ela não se daria a identificação e, portanto, também não se daria a catarse. Assim, a dramática aristotélica se define como aquela que provoca no espectador o ato psicológico da identificação, independentemente dos meios que utilize para isso.

Para combater os convencionalismos na representação, marcados pelo predomínio da identificação,Brechtcria um modelo teatral sobre uma base de oposição à dramática aristotélica. Reprova, em referida proposta, uma falta de espírito científico que enfatize o elemento racional, já que, segundo ele, este é o único meio possível para penetrar nas massas. Para o autor, da dramática aristotélica não derivam verdadeiras emoções senão emoções impuras, equivocadas e pouco verossímeis com a realidade. A identificação é entendida como “um fenômeno social que em determinada época histórica significou um grande avanço”, mas que agora se converteu mais bem em “um obstáculo para a evolução social das artes interpretativas” (Ibid, p.25) e, portanto, em uma técnica poucorealista.

Brechtse refere à dramaturgia clássica aplicada ao cinema como “uma espécie de tráfico de estupefacientes que foi comprovado que como signo de uma época de decadência, exerce uma influência nefasta sobre o público ao criar ilusões sobre a vida real e as situações reais”, afirmando que existe outra forma de representação em que “o mundo que se representa não é um mero mundo desejado, em que o mundo não se representa como deveria ser, senão como é” (ibid, p.130) [tradução nossa]

O homem ignora as ordens que determinam a sua existência. Seus sentimentos, suas paixões e sua consciência, aparecem desconectados em favor de um fundamento de classe baseado nos interesses da classe dominante, de uma superestrutura que torna impossível ter

29 Brecht, em “Escritos sobre teatro” (2004), livro em que desenvolve extensamente este pensamento, define a catarse aristotélica como “a purificação do espectador em relação ao espanto e à compaixão, graças à representação de ações que provocam o espanto e a compaixão” (p. 19).

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uma imagem real do mundo e, portanto, também não serve para realizar uma atuação social. O desejo da classe dominante, na contramão da sublevação dos dominados, é o que impede a aplicação de um parâmetro científico que permita verdadeiramente analisar os problemas sociais. Não obstante, Brecht pensa que “uma atitude do espectador completamente livre, crítica, centrada em soluções puramente terrenais, não constitui uma base para a catarse” (Ibid, p.20). [tradução nossa]

Assim como Brecht, Haneke também se opõe a uma catarse entendida como um recurso que facilita a purgação dos homens. Seus filmes procuram o elemento que conduz à desestabilização do espectador, e não ao perdão ou à compaixão própia da tragédia grega. Conseqüentemente, o estilo e as críticas que emana desses filmes opõem-se às produções americanas, oferecendo uma visão antagônica ao exercício espetacular exigido por essa indústria. Como já mencionado, o filme Violência Gratuita é o melhor exemplo para entender a contradição entre os filmes de Haneke e os filmes americanos. Neste filme, o espectador é condicionado ao longo do filme por uma narrativa sufocante, sem descansos dramáticos ou purificações catárticas. É interessante notar aqui a proposta que a indústria cinematográfica de Hollywood fez ao diretor. A primeira versão de Violência Gratuita é de 1997 e é filmada em alemão. O filme teve tanto sucesso que Hollywood pediu a Haneke uma nova versão em 2007. Tim Roth e Naomi Watts reviveram o pesadelo do casal alemão dez anos depois, mas sem o sonho americano. Este remake produzido em 2007 é uma versão exata de seu predecessor Violência Gratuita, 1997. Haneke não quis mudar nem um só plano, esse foi o seu acordo. Os diálogos são praticamente os mesmos, só há uma variação do tempo e do lugar onde foram filmados. O engraçado aqui é como Haneke conseguiu rir de Hollywood sem que eles mal se dessem conta. Não se pode esquecer que o filme vem com uma profundidade crítica aos modelos de representação dominantes, ou seja, à indústria do entretenimento e a seu classicismo narrativo. Como era de se esperar, a película não teve grande sucesso entre o público americano. Um filme demasiado diferente para um público indiferente.

A questão do espetáculo se formula desde diversas perspetivas nos filmes do diretor austríaco passando a ser um tema central em toda a sua filmografia. Brecht, no entanto, não aborda esta questão com tanta magnitude, pois como já foi mencionado, as preocupações da época eram outras e os meios ainda não tinham se desenvolvido o suficiente para

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manifestar esse temível controle social que hoje manipula o homem, conforme falava Adorno.

Os filmes de Haneke levam a marca de Guy Debord e a Internacional Situacionista30. No livro “A Sociedade do Espetáculo” (2008) 31, Debord traça o desenvolvimento da sociedade moderna, regida pelas condições de produção capitalista. Segundo Debord, a sociedade produziu uma “imensa acumulação de espetáculo” com o objetivo de promover um alinhamento social, fazendo com que tudo se converta em mera representação. Este fato levou a que, como bem explicita o autor, “no mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso” (ibid, p.34). A vida social autêntica foi substituída por uma imagem representada da mesma, foi virtualizada, o que levou a uma “evidente degradação do ser em ter” (ibid, p.35),fazendo com que as relações sociais sejam substituídas pelas relações de consumo.

As narrativas dos dois últimos filmes da trilogia, O video de Benny (1992) e 71

Fragmentos de uma Cronologia do Acaso (1994) também trabalham a partir de um

dispositivo de denúncia da sociedade do espetáculo. No primeiro filme citado são mostrados 71 fragmentos, de forma intermitente, da vida cotidiana de um entrelaçado de personagens. Apresenta-se aqui uma sociedade vítima e silenciosa, que contempla o noticiário de cada noite, e cujos valores foram se degenerando rumo à solidão, à incomunicação e à misantropia. Durante todo o filme, o autor nos bombardeia com imagens de catástrofes do mundo, nos moldes de um telejornal, expressando a violência global personificada em tratamentos triviais. Haneke não aponta de forma explícita o culpado por tal empobrecimento, pois sua tarefa consiste em fazer o espectador pensar sobre as causas de tais consequências.

O espetáculo, representado através do personagem principal é, sem dúvida, o tema principal no filme O video de Benny. O protagonista deste filme, Benny, um adolescente, filho de uma família de classe média alta, assassina uma jovem, sem premeditação, após ver repetidamente e à câmara lenta o vídeo caseiro da matança de um porco. Os

30 A Internacional Situacionista foi uma vanguarda artística que surgiu em meados do século XX e cujos componentes, um grupo de artistas e intelectuais, lutavam para derrotar o sistema ideológico contemporâneo da sociedade ocidental, com o objetivo de acabar com a sociedade de classe como sistema opressor.

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“A Sociedade do Espetáculo” (DEBORD, 2008) é um manual teórico que apresenta 221 parágrafos no modelo de sentenças.

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espectadores seguem a cena através do contracampo que se projeta em uma das câmaras de Benny. A curiosidade pelo espetáculo da violência é o detonador da situação. Vemos como Benny, um garoto aparentemente normal, não sabe distinguir o bem do mal devido ao fato de que os filmes violentos que aluga diariamente no videoclube lhe fizeram perder a consciência. A função principal nestes filmes é questionar a manipulação abusiva das formas de representação através de uma reflexão sobre o papel que estas exercem. Sobre a sociedade do espetáculo, Haneke aponta:

As novas tecnologias, tanto de representação dos meios como do mundo político, possibilitam um dano maior a uma velocidade cada vez maior. Os meios contribuem para criar uma consciência confusa através desta ilusão de que sabemos todas as coisas a todo o tempo, e sempre com este grande sentido do imediatismo. Vivemos neste ambiente onde pensamos que sabemos mais coisas mais rapidamente, quando de fato não sabemos nada de nada. Isto nos leva a terríveis conflitos internos, os quais logo criam angústia, a qual por sua vez, produz agressividade, e isto cria violência. É um círculo vicioso32

Tanto a proposta de Brecht como a de Haneke, concebe um mundo distorcido pela feição e o grotesco como postulado, e se contrapõem à falsa beleza como meio de reivindicação artística. Ambos os autores concordam que o espetáculo deve levar uma marca implícita de realidade social, “o espetáculo da realidade”, sem pretender satisfazer os cânones da velha estética. Tratam a questão do espetáculo desde uma perspetiva quase psicoanalítica favorecendo a posição de voyeur do espectador como ferramenta para incorporar a crítica em sua receção.