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CAPÍTULO III: AUTORIA HANEKE: O virtuosismo da forma como dispositivo

3.2 MARCAS AUTORAIS

3.2.4. Plano sonoro intradiegético

Nos filmes de Haneke encontramos apenas a presença de um plano sonoro intradiegético. Todos os sons que compõem o filme se constroem como um componente narrativo a mais no relato, servindo hora como contraponto, hora como reafirmação da imagem, sendo, portanto, um importante elemento de análise. Nenhum som, seja qual for, é incorporado se não é considerado fundamental para a narração. Para Haneke, a trilha sonora do filme, isto é, os diálogos, os sons e a música, têm de ser precisos e servir para confirmar o fato representado, e não como ocorre em alguns casos, para disfarçar as possíveis carências de roteiro. O som em seus filmes se converte em um fator de grande importância. Hernández (2009), ao analisar o som sugestivo que Haneke emprega em O Sétimo

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Continente, chama o diretor de “gourmet do som” (p.43). Em muitas ocasiões, os sons

cumprem o objetivo de retratar os personagens, estabelecendo uma relação de referência com o discurso pretendido. Pensemos, por exemplo, nos aparelhos tecnológicos de Benny.

Os trabalhos de Haneke se caracterizam por abster-se de música, a não ser que esta esteja diretamente relacionada com a ação. Dentre os sete filmes selecionados para a análise, somente em quatro encontramos a presença de música. Estes são O Vídeo de

Benny, Código Desconhecido, Violência Gratuita e A Professora de Piano. A música é

sempre utilizada para participar da narrativa construindo o universo diegético do filme51. Michel Chion (1993) define este tipo de música como “música de tela”, a qual se refere como a música que provém, direta ou indiretamente, do lugar e do tempo da ação narrativa. De todos os filmes de Haneke, A Professora de Piano é o único no qual a trilha sonora, quer dizer, a música, tem um papel verdadeiramente insubstituível. A música de piano se converte em um elemento narrativo independente. Em uma personagem a mais do relato, uma espécie de dimensão paralela. Na entrevista feita por Sharrett, Haneke faz uma referência à música deste filme dizendo que:

“É necessário compreender primeiro que neste filme vemos uma situação bem austríaca. Viena é a capital da música clássica e é, portanto, o centro de algo muito extraordinário. A música é muito encantadora, mas, como o que está ao redor, pode converter-se em um instrumento de repressão, especialmente porque a música clássica se torna um objeto de consumo” 52.

O som do piano está presente em todo o filme representando o paradoxal sentido

existencial da pianista. Por um lado, invoca a rigorosa disciplina na qual a protagonista se sente presa, ao mesmo tempo em que nos mostra seu interior atormentado. Por meio das primorosas peças de Schubert, o compositor favorito de Erika, Haneke cria uma alegoria que simboliza os desejos da pianista. A música é o único lugar no mundo onde Erika se sente tranquila já que, como aponta Haneke, “a música transcende o sofrimento para além das causas específicas” 53.

51 Isto é algo excecional já que, como assinalam Aumont e Marie (2002), “a música do filme é principalmente extradiégética (p.207) [tradução nossa].

52 Disponível em: http://www.kinoeye.org/04/01/interview01.php [tradução nossa] 53

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Recordemos o caso de Código Desconhecido. Aqui encontramos a presença de música diegética em três momentos do filme, interferindo de modo diferente na narrativa. A primeira música, a música d,os tambores tocada pelos meninos surdo-mudos, contribui dando maior valor de significação à cena. A segunda, aquela que nos mostra uma festa na Romênia, está encarregada simplesmente de acompanhar a imagem. E a terceira, outra vez os tambores, porém agora tocados pelos meninos na rua, representam as personagens principais perambulando solitárias pelas ruas de Paris. A música dos tambores podia ser incluída no filme como uma linguagem de signos alternativa à incomunicabilidade das palavras. Contudo, a música não é o mais significativo da trilha sonora de Código

Desconhecido, um filme que pretende representar a incomunicabilidade por meio de

palavras.

O silêncio é outro recurso relevante nestes trabalhos. Em muitas ocasiões, encontramos cenas sem diálogos nas quais o silêncio se transforma em um elemento narrativo a mais na história. O silêncio nestes filmes, um silêncio incômodo e angustiante, se converte em uma personagem onipresente que atravessa cada uma das casas das personagens destes filmes. Tomemos por exemplo, a cena de Código Desconhecido que mostra o momento em que o irmão de George volta à casa de seu pai, de onde havia fugido dias antes. Vemos como pai e filho jantam juntos sem dizer uma só palavra durante os três minutos em que dura a cena. Se bem que poderíamos encontrar uma quantidade de exemplos como este na obra de Haneke. O silêncio não somente se constitui como um elemento narrativo muito importante para a construção do filme, como também ajuda a definir o ritmo do relato, a “esculpir o tempo do filme” como diría Tarkovsky. “O silêncio (...) nunca é um vazio neutro; é o negativo de um som que foi ouvido antes ou que se imagina; é o produto de um contraste”. (CHION, 1993, p.51) [tradução nossa]. Nesse contraste notado por Chion se inscreve o temor do discurso que prega Haneke.

Um tipo de silêncio muito comum nos filmes de Haneke, com exceção de Violência

Gratuita, é o silêncio que surge quando as personagens se tornam vítimas da televisão. Este

silêncio com televisão de fundo também é representado em Violência Gratuita, porém neste caso, as personagens não estão muito atentas ao que diz a televisão. Outro silêncio importante é também aquele que se inscreve quando a ação que está dando continuidade ao relato se produz fora de campo. Um exemplo deste silêncio, encontramos na cena do vagão

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de metrô em Código Desconhecido. Os intermináveis segundos de tensão que vivemos, tanto espectadores como personagens, são introduzidos por Haneke na cena graças ao uso desse silêncio. Assim, quando o silêncio vem acompanhado da incorporação do fora de campo, exige presença por se ver inscrito em tal situação. Poderíamos dizer que na obra de Haneke está constatada a seguinte frase de Bresson (1979): "Assegure-se de ter esgotado tudo o que se comunica por meio da imobilidade e do silêncio" ( p. 29)[tradução nossa].

De acordo com Chion (1993), os sons estabelecem “relações verticais simultâneas” muito mais diretas com os elementos narrativos contidos na imagem, que com os demais elementos sonoros. Por conseguinte, todos os elementos que constituem a trilha sonora, tanto os diálogos como a música e os sons, são elementares para a construção narrativa do filme, e devem ser analisados.

Uma vez feito um breve estudo da função que a música desempenha nestes filmes, assim como do tipo de diálogo e de silêncio aos quais recorrem, só nos faltaria, portanto, descrever aqueles sons que foram capturados diretamente ou reconstruídos depois em estúdio.

Haneke mantém também um profundo controle sobre o ambiente sonoro de seus filmes. Não há nada que seja casual nestes filmes, mas ao invés disso, indispensável, e por isso, o som é outro elemento a mais para ser cuidado. Se observarmos atentamente essas obras, podemos notar que existem certos sons que se repetem em cada uma delas. Alguns exemplos são: o barulho do motor do carro e ruídos mecânicos, os aparatos tecnológicos, e o de maior presença, sem dúvida alguma, o som do rádio e da televisão, também conhecidos como “sons on the air” 54. Todos os sons incorporados nestes filmes se manifestam de forma isolada com a finalidade de criar uma sensação ensurdecedora no espectador e assim, potencializar a situação representada. O som é uma ferramenta principal empregada por Haneke para concluir a manipulação no espectador.

A imagem é a distância e o som a manipulação. Isto teria que desestabilizar o espectador. Para mim, sempre é mais eficaz, se quero manipular o espectador,

54 O som “on the air” serve para denominar a “todos os sons presentes em uma cena, mas supostamente retransmitidos eletricamente, por rádio, telefone, amplificação, etc., e que fogem, pois, das leis mecânicas chamadas «naturais» de propagação do som” (CHION, 1993, p.65) [tradução nossa].

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utilizar o som mais que a imagem. Porque a imagem, como sabemos todos, é um truque, o sangue é ketchup e essas coisas.55

Todas estas manifestações estéticas formais, os sons, a música, e claro, os diálogos, e mais todas aquelas que foram expostas ao longo deste capítulo, contribuem com a perfeição de seu discurso. Uma perfeição aterradora por sua relação direta com o real.